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A cidade do governo dos homens: O advento do social e a destruição da esfera pública na modernidade
Gustavo Chaves de França Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da UFBA Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador.
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RESUMO O presente trabalho pretende discutir de que forma a destruição da esfera da esfera pública – do comum – estava no projeto inicial da modernidade e dura até os nossos dias. Discutiremos de que modo o urbanismo está inserido nesse processo de construção da cidade moderna não mais como pólis – local da esfera pública e da política –, mas como metrópole, espaço de ação do governo dos homens e politização da vida através da tomada da vida pelo poder. Através de Hannah Arendt tentaremos nos aproximar da ideia do fim da esfera pública pelo advento do social e o nascimento das ciências comportamentais. Utilizaremos ainda o conceito foucauldiano de biopolítica, observando de que modo o nascimento de um pensamento sobre a cidade está ligado à um poder sobre a vida. Com esse arcabouço teórico, dialogando com Giorgio Agamben, será possível constatar de que modo já não vivemos na cidade como lugar da ação política, mas que nossas cidades se tornaram espaços de controle da vida homem.
PALAVRAS-CHAVE: Biopolítica; urbanismo; economia política; pólis; metrópole
Introdução Inserido no debate acerca da captura do espaço público e produção de cidades no mundo contemporâneo, este artigo tem por objetivo analisar de que modo o a modernidade tem papel decisivo no desaparecimento da esfera pública e na consequente despolitização do mundo. No primeiro momento analisaremos, através de Hannah Arendt, de que forma, desde os gregos até os nossos a esfera pública foi diminuindo sua importância até ser totalmente diluída naquilo que foi chamado de social – um espaço confuso entre público e privado –, analisando o modo como as ciências do comportamento nascentes pertencem a essa nova estratégia de poder que se consolida na modernidade.
Seguindo as leituras de Michel Foucault acerca da virada do poder na modernidade e de como esse novo poder se relaciona com a vida dos súditos, tentaremos compreender de que modo aquilo conhecido por economia política estabelece uma nova forma de exercício de poder no capitalismo nascente e de que maneira haverá uma ruptura da antiga relação soberano-súdito para uma novidade radical que poderíamos chamar de governo-população. Nova relação que já não estabelece uma diferenciação entre público e privado e possibilita uma tomada da vida pelo poder que, Foucault, chamará de biopolítica. Trata-se sem dúvidas da entrada definitiva da espécie humana na história do homem e para isso uma nova arte de governar nasce; todo um novo aparato teórico de cálculos estatísticos e controle populacional – a sociedade tomada na sua “naturalidade”. A esta ciência nascente poderíamos chamar de ciências sociais – ou para aproximar de Arendt ciências do comportamento – nas quais o urbanismo, ou o pensamento sobre a cidade, está absolutamente inserido de modo a tornar urgente pensar o quanto o próprio planejamento urbano está inserido na lógica da tomada do privado pelo poder e do fim do espaço público. A essa nova técnica de poder poderíamos também chamar de governo, ou governamentalidade. Seguindo as pistas dessa fundação do pensamento sobre a cidade e das suas relações com o governo e com o controle da vida dos homens tentaremos compreender de que modo esses conceitos nos auxiliam na realização de uma leitura da metrópole contemporânea, notando que nela a cidade já não pode ser compreendida como a pólis grega, mas como um espaço onde a prática política é anestesiada, ou seja, uma cidade não mais como lugar da ação política, mas do governo de homens.
O advento do social e a destruição da esfera pública Os Gregos antigos tinham dois termos para designar aquilo que conhecemos por vida. O primeiro era zòe, que corresponderia a algo como a vida considerada em seu locus biológico, as características do homem na mesma escala do animal, ou seja, o homem na condição de ser vivente, premido por necessidades e possuidor de algo que lhe é próprio. Em segundo estava a bíos, vida qualificada, o homem na sua condição política, ou seja, como habitante da pólis, onde o que está em jogo é a sua liberdade e não suas necessidades. Tomando por base essa definição dada pelos gregos, Hannah Arendt tentará compreender de que modo esses dois conceitos, absolutamente distintos, foram se aproximando e se confundindo no decorrer da formação ocidental. Tal distinção torna clara a separação entre esfera pública e esfera privada. Ou seja, para um homem Grego não seria, em momento algum, possível qualquer confusão entre o lugar da pólis e o lugar da casa. A pólis só existe por existir algo como uma vida pública, ou ainda, é a pólis mesma a esfera pública. Nesse momento essa primeira concepção ocidental de cidade nasce umbilicalmente ligada à existência de um lugar de liberdade entre os homens. Não faz, a filósofa judia, na sua leitura, uma depreciação do privado, pelo contrário, esse é um lugar necessário, contudo, para que o homem, tendo seu lugar no mundo, onde as necessidades são supridas, possa experimentar algo como uma vida pública,
O que todos os filósofos gregos tinham como certo , por mais que se opusessem à vida na pólis, é que a liberdade situa-se exclusivamente na esfera pública; que a necessidade é primordialmente um fenômeno pré-político, característico da organização do lar privado; e que a força e a violência são justificadas nesta última esfera, por serem os únicos meios de vencer a necessidade – governando escravos, por exemplo – e tornar-se livre. (ARENDT, 2011, p. 37)
Já o domínio comum, esse é o local, nos povos antigos, onde o homem aparece na cena pública, onde garante uma imortalidade, não a partir de um processo vaidoso de demonstrar a si mesmo, mas através da preocupação com o outro com o mundo comum, que já existe antes da chegada do indivíduo e continuará existindo com o seu fim. Sem essa transcendência em uma potencial imortalidade terrena, nenhuma política, no sentido restrito do termo, nenhum mundo comum nem domínio público são possíveis. Pois, diferentemente do bem comum tal qual o cristianismo o concebia – a salvação da própria alma como interesse comum a todos –, o mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração da nossa vida tanto no passado quanto no futuro […]. É isso o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e com aqueles que virão depois de nós. (ARENDT, 2011, p. 66)
Para a pensadora judia o decorrer histórico da civilização ocidental tornou essa diferença cada vez menos relevante, e muito pior, fez com que as necessidades se tornassem uma questão política. A expansão do cristianismo trazia consigo a extrema valorização do social em detrimento do político, espaço das liberdades e da diferença. (ARENDT, 2011) A passagem histórica, que não aprofundaremos, por não interessar neste momento, fará com que nasça algo como o social, que é a confusão entre público e privado. Aquela clara diferenciação entre a cidade (pólis) e a casa (óikos), que garantia a existência da esfera pública, passa a se tornar cada vez menos precisa. Os assuntos da casa passam a se tornar interesse público. Se a economia (oikonomos, gestão da casa) era um assunto exclusivamente privado, tal preocupação começa, na modernidade a se tornar um assunto político. Não por acaso, portanto, que cada vez mais no moderno a política vai sendo transformada em uma gestão, e a política surge como governo dos homens. A política não se faz como estabelecimento de uma diferença, ou lugar da diferença, mas como análise dos comportamentos e ações sobre este. Daí, o que aprofundaremos adiante, o nascimento de algo como as ciências do comportamento, ou ciências sociais. O planejamento da cidade não a considera mais como pólis, lugar da ação política e estabelecimento da esfera pública. Quando os contraditórios termos economia e política se juntam num mesmo vocábulo e numa mesma prática de poder, o caminho da cidade é ser gerida, estudada, definindo comportamentos, Um fator decisivo é que a sociedade, em todos os seus níveis, exclui a possibilidade de ação, que outrora era excluída do lar doméstico. Ao invés da ação, a sociedade espera de cada um dos seus membros certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a
‘normalizar’ os seus membros, a fazê-los comportarem-se, a excluir a ação espontânea ou a façanha extraordinária. (ARENDT, 2011, p. 49)
O advento do social e com ele a improvável economia política é, de vez, a tomada da vida pelo poder, e portanto a impossibilidade de se ter uma esfera pública onde a política se dê pela ação e não pelo controle comportamental de milhares de homens cujos gestos devem ser minuciosamente previstos e controlados. O papel do urbanismo, nascido ao lado das ciências comportamentais, é pensar a cidade onde habitam esses homens controlados, cuja vida está violentamente inscrita no poder, e a cidade a ser construída leva em conta não o espaço de estabelecimento da diferença, e da ação política, mas a cidade mesma é o lugar de suprir as necessidades, seja de circulação, seja de higiene, seja de segurança. Ciência urbana que leva em consideração o fato do homem viver junto e não o comum, oposto ao próprio, que é construído pela ação na esfera pública.
Urbanismo e economia política na encruzilhada biopolítica Pensando as transformações políticas ocorridas durante a modernidade, principalmente aquelas de meado do século XVIII, Michel Foucault (2008) forjará, especialmente, um conceito a que ele nomeou de biopolítica. Que seria, grosso modo, um poder sobre a vida, ou uma gestão da vida pelo poder. Tal conceito está profundamente arraigado às mudanças na economia, e por consequência, na política, ocorridas concomitantemente às mudanças do pensamento da época, tanto dos fisiocratas franceses, quanto dos utilitaristas ingleses. No sistema anterior – ancién regime – as relações econômicas, cujo sistema é o mercantilismo, bem como a relação do soberano com os súditos são algo da ordem da disciplina, ou seja, um poder disciplinar. Em relação à economia Foucault exemplificará através do problema da escassez alimentar, cujo combate – ineficaz, mas não interessa aqui – realiza-se por uma série de normas proibitivas de importações e de estocagem alimentar, bem como controle dos preços, de modo que não falte alimento para o consumo interno. Já a relação com os súditos está ligada a uma disciplina ilimitada através de uma polícia urbana – polícia que deve ser entendida no sentido do século XVII – de disciplinamento de gestos, atos e de cada detalhe da vida do súdito, considerado na condição de indivíduo, seja na escola, na fábrica ou na prisão (FOUCAULT, 2007). O que já podemos notar, mesmo ainda na leitura foucauldiana acerca desse primeiro momento da arte de governar, desse poder disciplinar, é a existência de algo como uma razão de Estado, não de uma transcendência Imperial de um Estado cuja teleologia é um juízo final, mas cuja finalidade está já ligada à existência mesma do Estado, o Estado que tem por fim a própria existência e o aumento de suas forças, e por isso torna-se possível o surgimento de algo como uma Razão de Estado, um saber sobre o Estado e sobre como aumentar suas forças. A isso está ligado este poder disciplinar que disciplinando seus súditos, e fazendo com que a economia funcione, e funcione bem de modo a não faltar alimentos, possam os súditos aumentar a força do Estado na competição daquilo conhecido como balança europeia.
E essa arte de governar não pode se dar de outro modo que não pela intervenção da política na economia, outrora exclusiva da esfera do privado, podendo-se afirmar, portanto, que “A introdução da economia no seio do exercício político, é isso, a meu ver, que será a meta essencial do governo.” (FOUCAULT, 2008, p. 126) Doutro lado, em meado do século XVIII, com o surgimento do pensamento utilitarista, bem como dos fisiocratas franceses haverá uma mudança estrutural na relação do poder com os súditos. O filósofo francês traz, novamente, o exemplo da escassez alimentar para ilustrar as transformações no exercício do poder. Ao invés de um sistema legislativo complexo de proibições esse novo poder vai se munir de uma série de saberes que estudam um certo movimento natural da sociedade e, dominando esses dados, passará a considerá-los em suas práticas de modo que, no exemplo dos cereais, ao invés de estabelecer preços máximos e mínimos, proibições de estocagem e demais limitações, ele passará a incitar, frear de modo a estabelecer uma curva normal de preços e quantidade a ser produzida e através de determinadas práticas, como incentivo de produção ou sua desaceleração, torna possível a chegada a essa curva normal. Acredita-se, neste momento, que as coisas tendem a normalizar, ou seja, chegar num patamar natural, desse modo a escassez está controlada, não por leis, mas pelo próprio movimento natural de estabilização dos preços, de modo que a população sendo proporcional à capacidade de produção de determinado território terá sempre os alimentos na curva normal de produção e preços. Outra novidade aqui, e isso é fundamental, é a inexistência do objetivo de extinção da fome em todos os indivíduos, mas sim, mesmo com a existência da fome, o que se tem a considerar é a população, se a população não passa fome, ou seja, se há uma população saudável, o problema da escassez alimentar é anulado, não de maneira total, pois há necessidade de controle permanente, mas com força suficiente a fazer aquela população viver. Essa é a mudança fundamental que fará com que algo novo como a população apareça nos cálculos do poder. A cidade está absolutamente introduzida nessa arte de governar que surge com a modernidade. Não se pode falar, segundo Foucault, numa cidade disciplinar propriamente, apesar de algumas poucas experiências, pois a cidade neste momento histórico não se constitui como algo que pode nascer de um espaço vazio e esquadrinhado a ponto de tornar possível algo como uma disciplina, afinal “A disciplina trabalha num espaço vazio, artificial, que vai ser inteiramente construído. Já a segurança vai se apoiar em certo número de dados materiais” (FOUCAULT, 2008, p. 25). A cidade preexiste ao disciplinamento, por isso o que se percebe são práticas disciplinares na cidade, como o controle da peste pela vigilância e a internação dos infectados em suas casas (FOUCAULT, 2007). Ainda nas práticas disciplinares a cidade tem importância fundamental, pois será ela o objeto de todo um emaranhado de normas de polícia, que a possibilitem na condição de cidade-mercado, Digamos, em suma, que a polícia é essencialmente urbana e mercantil, ou ainda, pra dizer as coisas mais brutalmente, que é uma instituição de mercado, no sentido bem amplo. [...] a polícia nos séculos XVII e XVIII foi, ao meu ver, essencialmente pensada em termos do que poderíamos chamar de urbanização do território. (FOUCAULT, 2008, p. 451-452)
A afirmação de que não há uma cidade disciplinar, portanto, não elimina práticas disciplinares na cidade, apenas demonstra como diferentemente de uma prisão, fábrica ou escola, a cidade não pode ser construída do nada, o poder já se depara com as cidades em movimento, a cidade existente e com determinados dados materiais. O que modificará no século XVIII as práticas em relação à cidade é exatamente o surgimento da população como um problema político, bem como essa nova prática a que poderíamos já chamar de economia política. Como já enunciado, não há como se pensar nesse complexo termo “economia política” sem se confrontar diretamente com uma confusão, zona cinzenta, entre as esferas pública e privada. É uma arte de governar inteiramente nova que se põe, não mais um Estado como fim último da política e da economia, e não mais súditos considerados individualmente. Neste ponto o que temos é a sociedade com fim último da política e os súditos considerados como população. Já aqui uma proximidade radical com Arendt, com aumento da relevância do social, ou seja, dessa zona em que público e privado começam a se confundir. Toda uma nova lógica de saberes se instala, não mais um saber do Estado e para o Estado, mas um saber desenvolvido para sociedade, que nasce como ciência, claro, as ciências sociais. Essa transformação teve conseqüências consideráveis. Não é necessário insistir aqui sobre a ruptura que se produziu, então, no regime do discurso científico, e sobre a maneira pela qual a dupla problemática da vida e do homem veio atravessar e redistribuir a ordem da epistemê clássica . A razão por que a questão do homem foi colocada — em sua especificidade de ser vivo e em relação aos outros seres vivos — deve ser buscada no novo modo de relação entre a história e a vida: nesta posição dupla da vida, que a situa fora da história como suas imediações biológicas e, ao mesmo tempo, dentro da historicidade humana, infiltrada por suas técnicas de saber e de poder. Não é necessário insistir, também, sobre a proliferação das tecnologias políticas que, a partir de então, vão investir sobre o corpo, a saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, as condições de vida, todo o espaço da existência (FOUCAULT, 1988, p. 156)
Somente um a priori histórico como este – nascimento da população e da sociedade, novas técnicas de saber e poder – torna possível o nascimento de algo como um urbanismo. Não há dúvidas que o urbanismo nascente no século XVIII está definitivamente enraizado nessa nova lógica de poder e nessa confusão, casa vez mais eficaz, entre o público e o privado. Uma das características fundamentais desse momento da economia política, e naquilo que Michel Foucault denominará de biopolítica, é a preocupação com a população e com o viver bem dessa população, pois a partir do momento de que a vida é tomada pela política, a vida da população passa a ser determinante como objetivo da política, é o momento em que “a vida entra na história” (FOUCAULT, 1988, p. 155). O higienismo e a medicina social são, a partir de então, os discursos dominantes; o que nos traz fundamento para afirmar que o urbanismo nascente é biopolítico, a lógica da circulação, da cidade livre das doenças se faz presente na produção de cidades. É óbvio que a população saudável era a população livre das doenças, das pestes, por exemplo. Mas também era a cidade livre de tudo que infectava o corpo social, tal como o corpo criminoso, “Em outras palavras, tratava-se de organizar a circulação, de eliminar o que era
perigoso nela, de separar a boa circulação da má, [de] maximizar a boa circulação diminuindo a má.” (FOUCAULT, 2008, p. 24). Françoise Choay (1979), ao enumerar diversos pensamentos sobre a cidade, na parte do seu livro intitulada pré-urbanismo progressista – que, pelo pensamento até aqui desenvolvido, é possível afirmar se tratar propriamente de um urbanismo – nos traz o pensando do médico e urbanista Benjamin Ward Richardson. Tomando como exemplo tal pensamento vemos a presença absoluta da cidade como um lugar da prática do higienismo biopolítico, pois a própria cidade e o modo de viver nela passa por todo um viver mais, como podemos verificar ao tratar do zoneamento da cidade “Em regiões espaciais de cidade [...] cada bloco fica sob a responsabilidade de um superintendente e é submetido ao controle das autoridades sanitárias.” (CHOAY, 1979, p. 102). Por isso o urbanismo, dentro da lógica de controle estatístico e normalização da sociedade através práticas pró-vida, através das políticas públicas, juntamente com as demais ciências sociais, não é algo pertencente à esfera pública, mas ao social, a essa confusão do público e do privado, e se quisermos realmente debater a captura do espaço público, ou privatização do público, talvez essa seja uma premissa básica.
Da pólis à metrópole: A cidade do governo dos homens Provavelmente o autor que mais aproximou o pensamento Foucault e Arendt, para uma crítica da modernidade, tenha sido o filósofo italiano Giorgio Agamben, para quem há uma proximidade radical entre as duas análises, a ponto delas se complementarem para tornar possível uma crítica contemporânea da governamentalidade da vida. (AGAMBEN, 2010, p. 117) O citado autor nota como de alguma forma essa tomada da vida pelo poder é o que funda juridicamente a modernidade. Ao assegurar o direito à vida e inscrevê-lo numa carta internacional de garantias como a Declaração Internacional dos Direitos do Homem e do Cidadão, a vida passa a ser inscrita no poder e então se pode governá-la, dominar essa vida, determinar a vida a ser vivida. Se é verdade que Agamben radicaliza essa experiência da política que tem como preocupação a zòe e não a bíos como condição para a existência do campo de concentração, produção do homo sacer1 e da escolha da vida que deve viver (poder de morte), devemos considerar que a grande preocupação do autor é com o cotidiano dessa governamentalidade, que controla atos, gestos e põe a cada instante a vida no governo dos homens.
1 Os conceitos de campo de concentração e homo sacer são centrais na obra do Agamben. Entende-se pode homo sacer os sujeitos dessa vida capturada pelo poder, que ele chamará de vida nua (zòe). Não é contudo um problema ao qual nos ateremos no presente trabalho. Já o campo de concentração está estreitamente ligado ao conceito de estado de exceção – suspensão jurídica do estado de direito e tomada indiscriminada, por parte do soberano, da vida do súdito –, pois o campo “é, digamos, a estrutura em que o estado de exceção, em cuja possível decisão se baseia o poder soberano, é realizado normalmente” (AGAMBEN, 2010, p. 166).
Deixando de lado questões essenciais do pensamento agambiano, pretendemos seguir um pequeno texto, apresentado numa conferência, denominado “Metropolis”. Atento ao pensamento foucauldiano acerca de biopolítica e governamentalidade nosso autor notará uma mudança ontológica do estatuto da pólis para a metrópole atual. A pólis, como exaustivamente defendido, é o lugar da política, de modo que cidade e política se equivalem, a ponto de se confundirem na própria etimologia. A pólis, lugar de iguais que poderiam pela argumentação gerar convencimento, grandes feitos, imortalidade, enfim, realizar a ação política, é um lugar central, e a igualdade (não como entendida modernamente) está no seu núcleo. Já a metrópole é o espaço que consegue comportar as mais diversas diferenças e, ao invés de com essa diferença produzir política, o que há é uma gestão, e um alheamento claro do centro de decisões, submetendo todos ao governo dos homens – governo que, mesmo após o já definido nesse texto, insistimos, não é um poder central voluntário. [...] para entender o que é uma metrópole é necessário compreender o processo que progressivamente levou o poder a assumir a forma de um governo dos homens e das coisas, ou, se vocês preferirem, de uma economia. A palavra economia não significa nada mais que governo, o que claramente se mostra no século XVIII: o governo dos homens e das coisas. A cidade do sistema feudal do ancien régime, que estava sempre em situação de exceção em relação aos grandes poderes territoriais, era o modelo da cidade franca, relativamente autônoma dos poderes de governo das grandes entidades territoriais. Por outro lado, diria então que a metrópole é o dispositivo, ou o conjunto de dispositivos, que toma o lugar da cidade quando o poder assume a forma deum governo dos homens e das coisas. (AGAMBEN, 2010a, p. 2)
Podemos dizer que o percurso da pólis à metrópole, da cidade da política à cidade do social, ou seja, àquela em que falar em público e privado perde qualquer sentido – fazendo da política uma tomada da vida pelo poder –, é a grande história da privatização do público (ou publicização do privado, tanto faz). Podemos ainda afirmar que nossas cidades contemporâneas possuem o estatuto ontológico do social de modo que todo esforço, ainda que humanista – talvez pior quando o seja – de gerir uma cidade nos moldes como se quis na modernidade do planejamento urbano, ou contemporaneamente com o planejamento estratégico, recaia sempre na questão da economia política e assim não consiga nunca criar um espaço público.
Conclusão Não foi objetivo de o presente trabalho esgotar o tema tratado, mas trazer à baila uma discussão que é interna ao próprio urbanismo. A discussão aqui tratada é certamente incômoda, pois ao pensar o planejamento da cidade, ou mesmo planejá-la estamos sempre diante do risco de dar água ao moinho do poder, ainda que as intenções sejam as melhores. O que se tentou fazer neste artigo foi desenvolver a ideia da captura da esfera pública como algo já existente no início do capitalismo que em nossos dias tem apenas uma versão cada vez mais evidente e violenta.
Tentamos tratar a confusão de público e privado não pelo viés mais comum tal como a privatização dos espaços de uso comum do povo como praias, parques e praças (o que certamente é uma situação importante), mas de uma privatização que é mesma anterior a essas práticas e que existe também em nível ontológico. Em outros termos, a modernidade excluiu as esferas pública e privada, capturando-as naquilo que foi denominado social e que o urbanismo nascente teve como objeto. Tais ciências nascentes tem como objeto o estudo desse novo corpo homens que se chamará população, e suas práticas tomam a vida dessa população no poder, fazendo com que se torne possível calculá-la, controlá-la, observar os seus movimentos de definir seus gestos. Ao realizar o cruzamento das leituras de Foucault, Arendt e Agamben, percebemos que a história do ocidente nas suas práticas políticas e na sua produção de cidade percorreu um caminho (certamente não linear) de destruição da esfera pública até o advento do social que poderíamos chamar de pólis à metrópole. Esta metrópole, que nos interessa atualmente, é exatamente a cidade que se produz pelo governo dos homens e no fim da cidade como espaço da ação política.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. ______. Metrópolis. In: Revista SOPRO, n. 26, p. 1-4, abril, 2010. disponível em . Acesso em 09 jun 2010. ARENDT, Hannah. A condição humana. 11ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2011. CHOAY, Françoise. O urbanismo: utopias e realidades - uma antologia. São Paulo: Perspectiva, 1979. FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. ______. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Petrópoles, RJ: Vozes, 2007. ______. Segurança, Território, População: Curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.