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1 out. 1998 ... defendida pela Igreja Católica, que instrui os suplícios infligidos a ... Marques novel Del amor y otros demonios. ..... Os demônios de Loudun.
Do amor e outros demônios

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Artigos

5 Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, no 134, 5-15

Do amor e outros demônios.

Paroxismo, exorcismo e desamparo no romance de Gabriel García Márquez Maria Inês de Araújo

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artigo apresenta uma análise do romance Do amor e outros demônios, do escritor Gabriel García Marques. Confronta a teoria da possessão demoníaca, defendida pela Igreja Católica, que instrui os suplícios infligidos a uma adolescente no final do século 18, na Colômbia, com a teoria psicanalítica, utilizando os conceitos de histeria e desamparo. Palavras-chave: Histeria, desamparo, psicanálise, literatura

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his article presents a psycho-analytical analysis of writer’s Gabriel García Marques novel Del amor y otros demonios. It establishes a confrontation between the theory of devil’s possession, defended by the Catholic Church, which instructs the torture inflicted upon an adolescent girl, at the end of 18 century, in Colombia, with the psycho-analytic theory, using for that the concepts of hysteria and helplessness. Key words: Hysteria, helplessness, psycho-analysis, literature

INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo analisar os momentos na vida da púbere Sierva María de Todos los Ángeles, principal personagem do romance Do amor e outros demônios, escrito por Gabriel García Márquez. Esses mo-

mentos podem ser descritos como “estado de desamparo” ou de luta do ego para evitá-lo, notadamente aqueles que se circunscrevem durante o tempo de expectativa para saber-se se ela houvera contraído o vírus da raiva, após ser mordida por um cão doente, e de tentativas para

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impedir a manifestação da doença. Por tratar-se de uma obra de ficção, os dados apresentados não têm valor de uma anamnese, constituindo-se o presente ensaio apenas em um exercício de ilustração para algumas das considerações da teoria psicanalítica sobre o desamparo humano. Duas das teorias que procuram explicar o fenômeno daquilo que um dia veio a ser chamado de histeria são confrontadas para fins dessa análise: de um lado, a teoria da possessão demoníaca defendida pelos Tribunais Eclesiásticos da Igreja Católica; 1 do outro, a teoria psicanalítica que se coloca como referencial científico para o estudo do problema, desde seus primórdios quando ainda se apresentava como método catártico, até os nossos dias. A história se passa no vice-reinado da Colômbia, à época ainda colônia da Espanha, no final do século XVIII. Sierva María é mordida por um cachorro no mês de dezembro, quando vai ao bairro dos escravos em companhia de uma escrava comprar guizos para celebrar a festa de seus doze anos. O fato ocorreu no auge da Inquisição Moderna, levada a cabo pela Espanha e Portugal desde o século XV, nas sedes de seus reinos e em seus domínios coloniais, a qual, segundo Anita Novinsky “ultrapassou de

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longe a crueldade e intensidade da Inquisição papal na Idade Média”.2

A INFÂNCIA DE SIERVA MARÍA Filha única de pai crioulo nobre e mãe plebéia, Sierva María foi rejeitada pelos pais e criada nas dependências dos escravos pertencentes à fortuna dos mesmos, fato que dá continuidade à falta de desejo neles pela vinda de um filho. Foi fruto de um plano da mãe para casar com o crioulo nobre por causa de sua riqueza. Nasceu de sete meses, laçada pelo cordão umbilical. A mãe era uma histérica grave para quem era impossível conciliar os arroubos de sua sexualidade com as tarefas maternas. Odioua “desde que lhe deu de mamar pela única vez e se negou a tê-la consigo com medo de matá-la.” Vivia à mercê do mel fermentado e das barras de cacau. Aferrou-se às últimas por influência de seu amante e sua grande paixão, Judas Iscariotes, que a convenceu de que “era uma substância sagrada que alegrava a vida, aumentava a força física, levantava o ânimo e fortalecia o sexo”. Apresenta-se como o exemplo do paradoxo singular e doloroso da sexualidade histérica feminina a que Nasio se refere como sendo oferecer-se, mas não se entregar, a despeito de ter a histérica re-

1. A teoria da possessão demoníaca continua existindo para a Igreja Católica. O Papa João Paulo II promulgou em 1o de outubro de 1998 o novo manual para os exorcistas De Exorcisismis et Supplicationibus Quibusdam (Sobre Todo Tipo de Exorcismo e Súplicas), em substituição ao anterior em vigor desde 1614. Jornal Correio da Paraíba, 27.1.99, p. 7. 2. A. W. Novinsky. A inquisição. São Paulo: Brasiliense, Coleção Tudo é História, 5a ed., 1988, p. 31.

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lações orgásmicas e da multiplicidade de aventuras amorosas, quando este for o caso.3 Sierva María encontrou na escrava Dominga de Adviento a pessoa que a maternalizou, amamentou e criou. Essa mulher, ao que tudo indica, toma-a por objeto de seu desejo e junto a ela Sierva María vive uma infância feliz até por volta dos nove anos, quando ela morre. Apresentava um desenvolvimento precoce no aprendizado das coisas do milieu africano. Aprendeu a falar três línguas africanas e mesmo a dançar antes de falar. Dispunha de “uma corte jubilosa de escravas negras (...) que lhe davam banho com águas propícias e a purificavam com verbena de Iemanjá.” Após a morte de Dominga de Adviento, Sierva María ocupou “pela primeira vez um lugar estável” na casa senhorial. Resistia a aprender a cultura dos brancos. Puseram-lhe um preceptor e uma professora de música para ocuparem-se de sua educação sem, contudo, terem os mesmos alcançado sucesso. A rejeição ao bebê que se apresentou no período puerperal nunca foi superada pela mãe, evidenciando-se posteriormente nos momentos em que a criança transitava pela casa dos pais. Inserida em um tempo e ambiente cultural impregnados por uma mentalidade supersticiosa, de lutas de classes entre escravos e senhores e de preconceito destes contra aqueles, a mãe adiciona às suas próprias dificul-

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dades inconscientes esses elementos no seu relacionamento com a filha. Sua estada foi breve e interrompida pela mãe quando, ao encontrar uma boneca da filha flutuando dentro de uma tina, toma-a como um feitiço africano desta contra ela, e dá o ultimato “ou ela ou eu”, alegando que na casa não havia lugar para as duas. A mãe, entretanto, pouco permanecia na casa. Passava a maior parte do tempo no trapiche tocando seus negócios e permanecendo na orgia.

O CURTO TEMPO DA ADOLESCÊNCIA O paroxismo Após a mordida do cachorro, Sierva María volta a morar na casa dos pais. A mãe estava de retorno depois de uma ausência de três anos, e o pai foi o único a mostrar-se preocupado. A partir daí, ele passa a assumir com firmeza não apenas a função paterna, como também a administração da casa. Anuncia para as negras do alojamento em que a filha dormia: “A partir de hoje, a menina vai morar na casa. E saibam aqui e em todo o reino que ela tem uma só família, e de gente branca”. Foi-lhe devolvido o esplêndido quarto que pertencera à marquesa, sua avó, e do qual, quando pequena, fora retirada para ir dormir nas dependências dos escravos. Apesar do esmero nos arranjos para sua instalação, a menina foge na primeira noite e volta para seu mundo africano.

3. J.-D. Nasio. A histeria – Teoria e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, pp. 45-46.

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Abrenuncio de Sá Pereira Cão, médico português e judeu, e quem primeiro a examina, não crê que ela corra risco de ter contraído a raiva. Prescreve a “receita de felicidade”, enquanto se deveria esperar até que fosse conjurada a hipótese de ter ela contraído o mal: “Toquem música, encham a casa de flores, façam cantar os passarinhos, levem-na para ver o pôr do sol no mar, dêem-lhe tudo o que possa fazê-la feliz (...). Não há remédio que cure o que a felicidade não cura”. O pai dedica-lhe todo o seu tempo. Aprendeu a penteá-la e a fazerlhe a trança. Tratou de ensiná-la a ser branca de lei. Divertiram-se juntos na cidade quando esta ficou tomada pelas novidades com a chegada da Frota de Galões ao porto. Ensinou-lhe a tocar a tiorba italiana, que aprendera com a falecida primeira esposa. A viagem acertada a Sevilha, para que ela “se restabelecesse dos seus pesares ocultos e terminasse seu aprendizado do mundo”, foi a última programação do tratamento, o qual foi interrompido quando Sierva María teve o primeiro ataque. A escrava que tomava conta dela acorre ao marquês e diz: “Senhor, a coitada da minha menina está virando cachorro”. O pai recorre a todos os meios terrenos para curar a filha, que passa pelas mãos de outros três médicos, além de Abrenuncio, e de barbeiros sangradores, curandeiros e mestres em feitiçaria. Durante as duas semanas que sucederam a primeira crise, teve “vertigens, convulsões, espasmos, delírios, solturas de ventre e de bexiga, e se retorcia no chão uivan-

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do de dor e de fúria”. Fora diariamente submetida a dois banhos de ervas e duas lavagens emolientes; bebeu a própria urina e lavou a ferida com a mesma; a ferida fechada da mordida foi aberta para aplicação de cataplasmas cáusticas para extrair os humores rançosos; teve sanguessugas nas costas com a mesma finalidade; a índia Sagunta, ulula a receita de Santo Humberto, esfregando seu corpo besuntado com ungüentos de índios contra o da menina nua submetida à força. Mesmo antes que a mordida chegasse ao conhecimento dos pais, Sierva María “se entregara em segredo às ciências dos escravos” para afastar o malefício do cachorro. Fizeram-na mastigar emplastro de manajá e trancaram-na nua na despensa de cebolas. Certa vez, antes da primeira crise, a filha pergunta ao pai “se era verdade, como diziam as canções, que o amor tudo podia”. Este lhe responde dizendo que é verdade, “mas será melhor não acreditardes.” Outra vez, em meio às crises, quando de volta ao chamado do bispo do lugar, o pai a surpreende sentada e “tocando um exercício primário que aprendera com ele”. Era inacreditável o que via, considerando que, antes de sair, a deixara prostrada pelos efeitos dos tratamentos. Ao vê-lo, pára de tocar e recai na aflição. Ficando toda a noite ao seu lado, “ajudou-a na liturgia de ir para a cama com um sem-jeito de papai improvisado. Pôs-lhe pelo avesso a camisola, que ela precisou tirar para vesti-la pelo direito. Foi a primeira vez que a viu nua, e doeu-lhe ver as suas

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costelas aparecendo, os peitinhos em botão, a penugem tenra”. Elfriede Ferrer, referindo-se ao “aumento das pulsões” na menina “através da reativação das fantasias edípicas” com “intensas fantasias eróticas com o pai”, quando esta se encontra entre a latência e a adolescência inicial, aponta para o descompasso que ocorre entre esse fato e “a atitude dos pais, para quem a púbere segue sendo ainda uma menina.”4 Com Sagunta, encerra-se o ciclo de busca paterna por ajuda terrena, dando-se início ao de ajuda divina. Enquanto Abrenuncio “desmente a superstição popular de que os raivosos acabavam iguais aos bichos que os tinham mordido”, o bispo do lugar, dom Toribio de Cáceres y Virtudes, em conversa com o pai, assim se pronuncia: “Fizemos-te vir (...) porque sabemos que estás precisando de Deus e te fazes de distraído (...). É um segredo público que tua pobre filha rola pelo chão, tomada de convulsões obscenas e ladrando em gíria de idólatras. Não são sintomas inequívocos de uma possessão demoníaca?” Para Freud, os demônios são “desejos maus e repreensíveis, derivados das pulsões, que foram repudiados e reprimidos”5 pela pessoa, vindos de seu mundo interno, em substituição àquilo que a Igreja explica como sendo o diabo vindo de fora habitar o corpo dela. O bispo o faz ver que “(...)

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a raiva nos humanos costuma ser uma das muitas astúcias do Inimigo”, e que, “embora o corpo da menina seja irrecuperável, Deus nos deu os meios para salvar sua alma”. À pergunta paterna sobre o que fazer, o bispo responde: “Deixa-a em nossas mãos. Deus fará o resto”. No dia seguinte à conversa e seguindo as instruções do bispo, o pai leva-a para o convento de Santa Clara para ser exorcizada. É deixada sem saber a verdadeira razão de estar ali, tendo recebido do pai apenas a explicação de que ficaria uns dias com as freirinhas para se acalmar. É encerrada no pavilhão solitário que serviu de cárcere da Inquisição e amarrada à cama pelas mãos e pés, depois de três meses “de ser mordida pelo cachorro e sem nenhum sintoma de raiva”.

A PASSAGEM DO PAI PARA DELAURA O padre espanhol Cayetano Delaura, que contava trinta e seis anos de idade, é indicado pelo bispo para ser o exorcista de Sierva María: “Confio-te a saúde da menina (...), estuda o caso a fundo e me informa”. Desde as visitas iniciais que faz à menina, percebe que não se trata de um caso de possessão. “Com todo o respeito, meu pai, não creio que essa criatura esteja possessa (...), acho que está só aterrorizada (...). O que nos parece demoníaco são costumes dos ne-

4. E. S. L. Ferrer. “A passagem da latência à adolescência inicial”. In A. Aberastury. Adolescência. Porto Alegre: Artes Médicas, 6a ed., 1990, p. 145. 5. S. Freud. “Uma neurose demoníaca do século XVII (1923 [1922]). ESB., vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, pp. 91-92.

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gros que (...) aprendeu por causa do abandono em que os pais a deixaram”. Desclassifica o conteúdo das atas preparadas pela superiora do convento. As mesmas se prestam melhor para analisar a personalidade da freira. Esta, por atribuir tantos poderes ao demônio ao achar que tudo que acontecia no convento depois da chegada da menina era obra dele, mais parecia sua devota. Tudo em vão, os preparativos para o exorcismo devem prosseguir. Entretanto, aquilo que deveria transcorrer segundo a determinação e expectativa episcopal toma o rumo do reconhecimento, por parte de Delaura, dos reclamos das suas pulsões. O que seriam as rezas do exorcismo se transformou em recitação dos versos de amor do poeta pagão Garcilaso de la Veja. Estes logo foram aprendidos por ela e recitados a uma só voz, nos remansos das carícias nas muitas noites que passaram juntos antes de sua morte. Em vez da água benta e dos óleos sacramentais para afugentar o demônio, Delaura trata as feridas dela provocadas pela fricção das correias com bálsamo e sopros suaves, e lhe traz doces, escondido. Morde um e põe a outra metade em sua boca. Delaura trazia um pano envolto na mão para proteger a ferida da mordida que ela lhe dera quando a soltou das correias para darlhe descanso ao corpo. Ao observar, Sierva María pergunta o que havia acontecido. “Foi uma cachorrinha raivosa com um rabo de mais de um metro que me mordeu”, respondeu ele. “Sou pior

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que a peste”, diz ela. “Bem podes fazer isso com quem o possa agüentar”, retrucou citando novamente o poeta. Ao sair, já sabia que “uma coisa imensa e irreparável começara a acontecer em sua vida”. Tomado de paixão, Delaura só tinha pensamentos para Sierva María. Na biblioteca do palácio episcopal, é tomado de desejo diante das peças que estavam na maleta que o pai de Sierva María lhe pedira para entregar-lhe. “Conheceuas, cheirou-as com um desejo ávido de corpo, amou-as e falou com elas em hexâmetros obscenos”. Depois se autoflagelou com disciplina de ferro. Ao ser surpreendido pelo bispo, confessa: “É o demônio, meu pai (...) o mais terrível de todos”. A intercessão feita em seu favor pelos dignitários da diocese, baseada no argumento de que os exorcistas acabam possuídos pelos mesmos demônios que pretendem conjurar, é em vão e ele é condenado a servir como enfermeiro no hospital dos leprosos. Clandestino, passa a ficar as noites com Sierva María em sua cela. Confessa que a ama, “que não passava um instante sem pensar nela, que tudo o que bebia e comia tinha gosto dela”. Ela esperava-o “com ansiedade, mas bastava o sorriso dele para lhe devolver a calma”. O corpo dela estremeceu quando ele a beijou pela primeira vez. Ao passar as gemas dos dedos no corpo dela, Delaura “percebeu quão longe tinha estado do diabo em suas insônias de latim e grego (...) enquanto ela convivia com todas as potências do amor livre na senzala dos escravos”. Deixando-se guiar por ela, a exci-

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tação crescente é, contudo, bruscamente interrompida pelo arrependimento moral. “Que houve? Deixa-me agora. Estou rezando.” Ela aceitou a decisão de Delaura de manter o seu voto de castidade, até quando, livres, pudessem receber o sacramento do matrimônio. Nas noites seguintes, “só tiveram instantes de sossego quando juntos”. Falavam sobre as dores do amor, esgotavam-se em beijos, declamavam versos de amor e “revolviam-se em pantanais de desejo até o limite de suas forças: exaustos, mas virgens”.

OS EXORCISMOS – A MORTE Com a destituição de Delaura, o bispo em pessoa assume o processo do exorcismo com bastante vigor, contrariando seu precário estado de asmático. A abertura dos procedimentos foi marcada pela espetacularidade dos cerimoniais religiosos. O bispo encarnando a onipotência divina com a promessa de cura é carregado numa liteira até a frente do altar-mor por quatro escravos. Sierva María é carregada em padiola por dois escravos seminus que a estendem sobre o estrado de mármore. Tem a cabeça raspada e está metida numa camisa-de-

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força, além do camisolão brutal dos hereges. Por cima, puseram-lhe um pano fúnebre de cor roxa, porque naqueles dias a Igreja celebrava o tempo da paixão e morte de Cristo. Quando o bispo profere o conjuro, vê-se igualmente tomado pelas reações dela: “Quem quer que sejas – gritou – por ordem de Cristo, Deus e Senhor de tudo (...) abandona esse corpo (...). Sierva María, fora de si pelo terror, gritou também. O bispo alteou a voz para fazê-la calar, mas ela gritou com mais força. O bispo aspirou fundo e tornou a abrir a boca para continuar (...), mas o ar lhe morreu dentro do peito sem que o pudesse expulsar.” À noite Sierva María diz para Delaura que “ele parecia o diabo”. É sabido, através da literatura e do acervo documental da Igreja, que o exorcista é muitas vezes tomado pelo demônio à semelhança do que ocorre com suas vítimas. 6 Isto não causa surpresa se nos lembrarmos de que a histeria é contagiante, dada a identificação que se estabelece entre as pessoas graças à presença de uma fantasia comum a elas, e que igualmente acomete os homens. Os crimes julgados pela Inquisição eram de duas naturezas. De um lado, estavam

6. Dois exemplos: “Durante o último ano de sua vida, o padre Tranquille”, exorcista que levou à morte o padre e pároco de Loudun, Urbain Grandier, no dia 18 de agosto de 1634, “estava se comportando como as freiras cuja histeria com tanto empenho alimentara rolando no chão, praguejando, berrando, mostrando a língua, sibilando, ladrando, relinchando” (p. 246). “Enquanto a endemoninhada”, irmã Jeanne des Anges, durante um exorcismo público em 1636, “permanecia tranqüilamente sentada, lúcida e sorrindo ironicamente, seu exorcista”, o padre jesuíta Jean-Joseph Surin, “rolava no chão”, (p. 266-7). In A. Huxley. Os demônios de Loudun. Rio de Janeiro: Globo, 1982.

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aqueles contra a fé, que eram considerados os mais graves e tinham as penas mais severas; de outro, os contra a moral e os costumes, que comportavam toda uma gama de modalidades, tais como bigamia, sodomia, feitiçaria etc., e que, inclusive, se misturavam com o campo religioso.7 O caso de Sierva María ajusta-se ao segundo tipo de crime, apesar de em momento algum ela ter sido forçada a confessar-se herética e a denunciar pessoas, de acordo com a prática comum ao processo inquisitorial. Dentre as técnicas clássicas de tortura da Inquisição, foram aplicadas a ela as seguintes: ter a cabeça raspada, vestir o sambentino, ser presa e ficar amarrada. Seu único motivo para condenação foi a materialização do demônio nos imaginados sinais de raiva. Mesmo sem comer fazia uma semana, por causa da ausência de Delaura, durante a segunda sessão de exorcismos continuou a enfrentar o bispo com a mesma ferocidade e rebeldia que exibiu na primeira sessão. No dia 29 de maio, quando deveria ser levada para a sexta e última sessão, a guardiã encontrou-a morta de amor na cama, sem que tenha sabido jamais “que fim tinha levado Cayetano Delaura, por que não voltou com sua cesta de doces dos portais e suas noites insaciáveis”.

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SOBRE O DESAMPARO O desamparo humano é descrito como o estado de incapacidade do bebê para atender suas necessidades em virtude de sua imaturidade biológica, fazendo com que dependa da ajuda externa para a satisfação das mesmas. O longo período de imaturidade física e psíquica da criança faz com que sua dependência em relação ao adulto se estenda por toda a infância. Com o nascimento, o bebê tem a primeira experiência de ser tomado por um acúmulo de grandes quantidades de excitação que perturbam a economia de sua libido narcísica,8 e que o leva a vivenciar o que é denominado de angústia original. Essa experiência traumática passa a ser temida pelo indivíduo por toda a sua vida. Para proteger-se contra sua repetição, recorre à ajuda do objeto externo – a mãe – emitindo sinais que indicam que uma necessidade está em atuação e aprende com isso que ele o atende sem demora. A repetição contínua do atendimento leva-o a apreender a importância do mesmo para protegêla da repetição de uma situação traumática semelhante àquela que ocorreu quando nasceu. Por essa razão, o objeto é enormemente valorizado9 e com ele se estabelece uma relação psíquica que produzirá efeitos por toda sua vida.

7. A. W. Novinsky. Op. cit., p. 56. 8. S. Freud. “Inibições, sintomas e angústia”. ESB., vol. XX, p. 158. 9. Ibidem, p. 179.

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Quando uma criança de colo é deixada “sozinha, ou no escuro, ou quando se encontra com uma pessoa desconhecida”,10 ela vive uma nova perturbação econômica acompanhada de angústia. Isso acontece porque a falta da percepção do objeto faz com que ela sinta intenso anseio por ele. A falta de percepção da mãe passa a ser igualada ao “perigo de perda do próprio objeto”, e este converte-se em um novo determinante de angústia para ela. O “perigo de perda do objeto” representa assim o “perigo” “de não satisfação, de uma crescente tensão devida à necessidade, contra a qual ela é inerme”11, uma vez que aprendeu pela experiência que a mãe satisfaz todas as suas necessidades, e agora ela não está presente para reduzir a excitação que o anseio por ela provocou. Este novo determinante da angústia infantil se estende além desse período de desenvolvimento mental da criança até a angústia de castração, que pertence à fase fálica, a qual representa também um medo de separação da mãe.12 Depois, quando a instância parental já está introjetada como resultado da formação de seu superego, a angústia de castração se transforma no perigo de que o objeto, apesar de presente, “deva estar com raiva

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dela ou puni-la ou deixar da amála”. 13 Nesse momento, instala-se um novo determinante de angústia, que é o “perigo de perda de amor a partir do objeto”, que é de longe o mais duradouro determinante de angústia para o indivíduo e que o acompanha por toda a sua vida.14 No tocante à necessidade de ser a criança protegida das ameaças do mundo externo pelo objeto, segundo Freud, a função que a mãe exerce para esses fins “é logo substituída pelo pai mais forte, que retém essa posição pelo resto da infância’15, acrescentando não conseguir “pensar em nenhuma necessidade da infância tão intensa quanto a de proteção de um pai.”16 Essa cronologia de situações de perigo e determinantes de angústia não é rígida. Tais situações tanto podem persistir lado a lado quanto podem entrar em ação ao mesmo tempo, despertando igualmente no ego o afeto de angústia. Entretanto, o fato de o indivíduo ter crescido e ter-se tornado maduro não é nenhuma proteção contra o reaparecimento dessas situações de perigo e determinantes de angústia sob a roupagem de novas situações mais condizentes com o avançar de sua idade. Também não o é contra a irupção da situação de angústia traumática original, por-

Ibidem, p. 160. Ibidem, p. 161. Ibidem. Ibidem, p. 163. Ibidem, p. 195. S. Freud. “O mal-estar na civilização”. ESB., vol. XXI, p. 36. Ibidem, p. 90.

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que seu aparelho mental é passível de falhar em sua função de dominar as quantidades de excitação que precisam ser eliminadas.17 Em vista disso, e sendo a angústia definida como uma reação do ego à situação de perigo, a mesma pode se manifestar ao longo da vida do indivíduo sob duas modalidades: como “angústia automática” ou como “sinal de angústia”. A primeira como aquela em que o sujeito é submerso por um afluxo de excitações, de origem interna ou externa, que é incapaz de dominar, semelhante à angústia vivida originalmente; a segunda como uma reprodução atenuada desta para que o ego se proteja contra o desamparo psíquico a que ela leva.18 Um dos meios que o ego utiliza para esse fim é, por exemplo, o sintoma.19 A vida de Sierva María foi marcada pelo rompimento de laços de amor e de afeto e de situações de proteção que a levou a experimentar outros momentos de angústia, além dos inevitáveis à sua condição de ser humano. Alguns deles foram muito intensos e fizeram reaparecer nela a angústia primitiva. A morte de Dominga de Adviento, por si só, acarretou uma situação de angústia não apenas pela perda real do objeto, mas também pelas conseqüências que uma perda dessa monta acarreta para o indivíduo durante sua infância. Uma delas 17. 18. 19. 20.

foi ter que abandonar seu verdadeiro lar, onde vivia adaptada e feliz, para ser trazida para a casa dos pais que sabia hostis à sua pessoa. Sua necessidade infantil de encontrar um objeto substituto que a amasse e protegesse não é satisfeita. É obrigada a viver mais uma mudança em direção ao lugar de onde viera e onde não mais encontraria a presença de sua escrava-mãe. O incidente da mordida do cachorro põe-na diante de situações de perigo de vida, de perda do objeto e de amor por parte do objeto. Na impossibilidade de ajudar-se por si só contra a presumível ameaça de contrair a raiva alardeada pelos adultos, vê-se a depender da ajuda dos mesmos para responder a imperativos da ordem da autoconservação. O exagero dos adultos quanto à importância do acontecimento e condução do caso, apesar de todos os dados em contrário, tributou-lhes uma condição de objeto de valor enormemente aumentado. Na qualidade de sintoma, seu primeiro ataque tem a função de protegêla contra o acúmulo cada vez maior de excitações devidas à reativação das fantasias edipianas incestuosas, em que pese também para isso a falta da presença materna que lhe facilitasse “integrar na figura paterna as instâncias do desejo e da lei.”20 De igual modo, ocorrem as

S. Freud. “Inibições, sintomas e angústia”. Op. cit., p. 172. Ibidem, pp. 186-187. Ibidem, p.168. H. L. Melo. “Uma neurose demoníaca do século XX – Fragmentos de uma análise”. In Psicanalítica, no 4, 1996, Círculo de Psicanálise de Pernambuco, Recife, p. 50.

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vertigens, convulsões, espasmos, delírios, etc., ante o tratamento do corpo, conduzido por meios impregnados de significação sexual, fazendo-lhe lembrar a cena primitiva e a fantasia da castração e reativando nela o prazer anal e do corpo em geral. Se, conforme retrata o autor, Sierva María teve uma infância de exposta, pelo fato de ter sido rejeitada pelos pais quando bebê, na adolescência, a expressão assume total significado ao ser entregue pelo pai à porta do convento. Num mundo estranho e de criaturas estranhas a ela, trancada sozinha numa cela e amarrada pelas mãos e pés, nada mais presumível que reagir com angústia aos perigos de perder o objeto e de perder o seu amor. Muito possivelmente também deve ter-se perguntado se o pai deixou de amá-la, se estava com raiva dela ou se queria puni-la porque o desejou, num exemplo de combinação de situações de perigo e determinantes de angústia a que Freud se refere. O tratamento da alma não foi menos gerador de situações de perigo e reativador dos determinantes de

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angústia. O novo passo em direção ao objeto é Delaura. Sendo mais velho que ela e dotado de autoridade, reúne em si as qualidades que levam a moça ao seu primeiro enamoramento sério, por fazerem-na revivescer a imagem do pai.21 Pronta para a atividade genital adulta, busca as condições para vivenciá-la sendo, contudo, dissuadida com a promessa do sacramento do matrimônio. Sem saber o motivo da ausência de Delaura e não contando mais com seu consolo e proteção, surge uma nova ocasião para, mais uma vez, interrogar-se se o objeto deixara de amá-la. Finalmente, com o bispo, dá-se a última ocasião para ver-se em completo estado de desamparo e ser tomada pela angústia na forma de exacerbação da força física, ou, como pretende a Igreja, para exibição e confirmação dos sinais de possessão pelo demônio. „

BIBLIOGRAFIA MARQUEZ, G.G. Do amor e outros demônios. Rio de Janeiro: Record, 3a ed., 1994.

21. S. Freud. “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. ESB., vol.VII, p. 214. Nota acrescentada em 1920.