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jogadores mais conhecidos e mais em destaque, cromos da bola, miúdos a jogar à bola na rua. AUDIO: Sobre estas imagens ouve-se o fim da música do ...
CONTA-ME COMO FOI 1ª Série Episódio pp002 “OS CROMOS DA BOLA” Primavera 1968 Adaptação e Guião:

CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/00. INT. – PÓS GENÉRICO / IMAGENS DE ARQUIVO

VIDEO: Montagem com imagens de jogos de Futebol, grandes planos dos jogadores mais conhecidos e mais em destaque, cromos da bola, miúdos a jogar à bola na rua. AUDIO: Sobre estas imagens ouve-se o fim da música do genérico

FUNDE PARA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/01. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. NOITE. DIA 01 António, Margarida, Hermínia, Isabel, Toni e Carlos INSERT VÍDEO: A televisão passa anúncios. INSERT AUDIO: Quando deixamos a imagem da TV continuamos a ouvir os anúncios. A FAMÍLIA está sentada nos sofás, frente ao televisor. A câmara corre todas as caras da família Lopes que estão fixas no ecrã e pára na cara de CARLOS que está a observar a sua família. NARRADOR (OFF) Agora é assim, cá em casa, trocámos a sobremesa pela televisão. Já não se discute, nem se fala de futebol, nem se contam histórias. Agora, falamos pouco e quando falamos é sobre a televisão. INSERT VÍDEO: A televisão continua a passar anúncios.

ANTÓNIO Então começa ou não começa? MARGARIDA Já passa da hora, se calhar a esta hora já não vai dar. ANTÓNIO Não vai dar porquê? É dia do concurso, tem de dar TÓNI (a Isabel) Vamos a ver quem é que ganha de nós dois. ISABEL Deves pensar que és doutor … HERMÍNIA Para rimar não é preciso ser doutor. ANTÓNIO Olhem,Eu queria era lá estar e ganhar. MARGARIDA Julgavas que chegavas à televisão, era só ganhar…

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Voltamos a ver CARLOS pensativo NARRADOR (OFF) A minha avó, os meus pais e os meus irmãos viviam dependentes do “Grande Poeta é o Povo”, o concurso que fazia sonhar o país. O Artur Agostinho e a Maria Fernanda eram uma espécie de padrinhos, íntimos lá de casa. Em 1968, lá no meu bairro, se alguém alguma vez conseguisse ganhar as barras de ouro era considerado um milionário. CARLOS Ó Toni, o que é que fazias com tanto ouro? TÓNI Sei lá, comprava…comprava uma guitarra eléctrica. ISABEL Com aquelas barras todas podias comprar muitas guitarras eléctricas. TÓNI Então comprava…Comprava descapotável.

um

CARLOS Um MG B? Todos se riem. Margarida olha Carlos com ternura. MARGARIDA Um MG B filho, tão querido. Onde é que este miúdo aprende estas coisas. INSERT VÍDEO: A televisão começa a passar a canção infantil que manda as crianças para a cama. Olham todos para CARLOS. MARGARIDA (para CARLOS) Estás a ouvir, Carlitos? CARLOS Estou a ouvir o quê?

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TÓNI Que está na hora dos anões irem para a caminha. CARLOS Mas eu quero ver o concurso. MARGARIDA Vá lá filho, depois a mãe conta-te. Vá, para a caminha. CARLOS Ó mãe … MARGARIDA António, fala com o teu filho. ANTÓNIO está distraído com a televisão. MARGARIDA António! ANTÓNIO ãn! Que foi? MARGARIDA Diz ao tu filho que vá para a cama. ANTÓNIO Menino, cama. CARLOS Não tenho sono. ANTÓNIO O que é que eu disse? Cama!

CARLOS Porque é que eu tenho de ir para a cama e vocês vão ver o concurso? MARGARIDA Olha filho, Porque sim. E agora vais para a cama e acabou a conversa. CARLOS Só mais cinco minutos …

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HERMÍNIA Não ouviste os teus pais? Cama! MARGARIDA Já! CARLOS sai contrariado. INSERT VIDEO: Na Televisão começa a passar um interlúdio: Imagens de ondas a rebentarem na areia e à largura de todo o ecrã a palavra INTERLÚDIO. HERMÍNIA Olha, o que é isto agora? TONI Oh, é interlúdio? Deve ser avaria, ainda vai demorar algum tempo. ANTÓNIO Que chatice. Compra um gajo uma televisão para isto. MARGARIDA Oh Isabelinha vai ali ajudar a mãe a acabar isto. Depois vemos o concurso. HERMÍNIA Eu também ajudo filha, vá lá.

FIM DE CENA –

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CENA 002/02. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES. NOITE. DIA 01 Carlos INSERT ÁUDIO: Ouve-se a música do interlúdio da cena anterior.

CARLOS entra no quarto, cai na cama e fica a olhar para o tecto.

NOTA: No quarto dos rapazes, na parede por cima da cama de Carlos há um poster de “Lawrence da Arábia “

NARRADOR (OFF) Quando eu era miúdo odiava aqueles bonecos animados que me mandavam para a cama. Não era que me interessasse muito por aqueles programas, queria lá saber do concurso e do ouro – eu não queria era ir para a cama. Tinha mais em que pensar, ia fazer a primeira comunhão e a única coisa que me preocupava era o Bem e o Mal, o Céu e sobretudo … o Inferno.

INSERT ÁUDIO: Ouve-se o som, vindo da sala, do concurso televisivo.

FIM DE CENA – PASSAGEM DE TEMPO

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CENA 002/03. INT. – IGREJA / SACRISTIA – MANHÃ. DIA 02 Padre Antunes, Carlos, Marinho, Luís e 4 Alunos Catequese No dia seguinte, sábado, PADRE ANTUNES dá a catequese no salão paroquial a UM GRUPO DE RAPAZES. Todas as crianças parecem distraídas, menos CARLOS que segue atentamente o discurso do velho padre. PADRE ANTUNES Primeiro, confessam-se, depois cumprem a penitência que vos for dada e só então é que vos serão perdoados os vossos pecados. Não se esqueçam disto, a vossa vida será uma luta constante contra o mal, contra as tentações do diabo – terão de vencê-lo se querem gozar a glória celestial junto de Deus Todo Poderoso para toda a eternidade… CARLOS levanta a mão. PADRE ANTUNES suspira com impaciência.

PADRE ANTUNES Outra vez, ó Lopes? CARLOS É só para saber uma coisa. Quantos dias dura a eternidade? PADRE ANTUNES Todos. Eternidade quer dizer para sempre. CARLOS (alarmado) Para toda a vida? PADRE ANTUNES Para a vida toda e para o que vier depois, pelos séculos dos séculos. A ver se percebes de vez, ó Lopes. CARLOS fica muito pensativo. PADRE ANTUNES Bom, onde é que eu ia… Vês? Fizeste-me esquecer. Onde é que eu ia?...

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CARLOS Ia no “se querem gozar a glória celestial”.

PADRE ANTUNES Se querem gozar a glória celestial têm de vencer o diabo, se não sereis condenados a arder nas chamas do inferno, por toda a eternidade. Cara alarmada de CARLOS.

FIM DE CENA – PASSAGEM DE TEMPO

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CENA 002/04. INT. – CASA LOPES / COZINHA. TARDE. DIA 02 Margarida, Hermínia e Carlos HERMÍNIA arranja o feijão verde, MARGARIDA procura os fósforos, CARLOS assiste com um ar muito sério.

MARGARIDA faz várias tentativas para acender o lume, finalmente consegue e uma enorme labareda brilha por momentos sobre o fogão. CARLOS (muito assustado e dando um salto para trás) Ah!!! HERMÍNIA Ah!O que é que foi? MARGARIDA O que é que foi, filho? HERMINIA Então filha? O que é que foi filha? CARLOS Não foi nada. HERMÍNIA Não foi nada? Então tu deste um grito parecia que tinhas visto o Diabo. MARGARIDA Pronto! Pronto, já passou. Oh filho, tu estás todo a tremer. O que é que tu tens? CARLOS Assustei-me com o fogo! MARGARIDA Já passou. Olha lá, tu não eras para ir com o teu pai ao Royal? CARLOS Ia e vou. HERMÍNIA O que é isso?

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MARGARIDA O Royal? Oh, mãe! É o cinema na Graça, não sabe? HERMÍNIA Ah, aquele que repete os filmes. CARLOS Lá deixam-me entrar para os filmes para mais de 12, o porteiro é amigo do pai. MARGARIDA Então vai lá. Vai lá ter com o pai – Vá, corre! CARLOS Adeus. HERMINIA Porta-te bem! MARGARIDA Adeus, filho. CARLOS sai e MARGARIDA junta-se a HERMÍNIA a arranjar o feijão verde. MARGARIDA Não sei o que é que este rapaz tem … HERMÍNIA Não sabes? Sei eu, é da televisão. Aquele concurso de ontem deixou toda a gente nervosa. Ai Tanto ouro, meu Deus... MARGARIDA Ó mãezinha, nós estávamos todos a ver o concurso e o miúdo a dormir. HERMÍNIA Dizem que o dinheiro não dá felicidade, ai mas dá, dá … MARGARIDA Olhe lá, a mãe lembra-se daquela família da Dona Alzira?

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc HERMÍNIA Então não me lembro! Saiu-lhes a lotaria. Mais de mil contos – eu nem sei o que é isso em dinheiro. MARGARIDA Pois, mas o marido deixou de trabalhar e agora passa o dia na taberna. HERMÍNIA Coitados. Mas lá que o dinheiro ajuda, ajuda… MARGARIDA Então não ajuda? A mim já me chegavam cem contos, o que eu não fazia com cem contos mãezinha, já pensou? HERMÍNIA Olha, o que tens a fazer é contentar-te em pagar as prestações do televisor e com aquele monte de calças que temos lá dentro para acabar. Isso é que é. MARGARIDA O pior é a primeira comunhão do Carlitos. Não tenho um tostão. FIM DE CENA –

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CENA 002/05. INT. – CABELEIREIRO / SALÃO TARDE. DIA 02 Clara, Isabel, Náni, Menina Emília, 2 clientes Cada uma das três CABELEIREIRAS tem a sua CLIENTE. A MENINA EMÍLIA está com CLARA. NÁNI canta: “Verão” de Carlos Mendes.

NÁNI (canta) “O verão já terminou Ah! Ah! Foi um sonho que findou…”Ah!Ah! CLARA Cuidado, Náni, que esses teus sonhos são perigosos. NÁNI (pausa) Então vocês Viram ontem o concurso? Aquelas barras também não valem assim tanto... CLARA Claro, barras de ouro para ti não são nada. Eu nem sei para que é que vens trabalhar. NÁNI Humm, mil contos para mim é que já é dinheiro. MENINA EMÍLIA Deus te perdoe, rapariga. ISABEL Já percebeste o que é que podes comprar com mil contos? Até fico toda arrepiada. NÁNI É muito? Olha, Compras uma casa, mobilas a casa … um carrito, alguma roupa e dos mil contos ficas para aí com quê? Vinte e cinco tostões?! CLARA Lá isso …

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc ISABEL (sonhadora) Sabem o que é que eu fazia se tivesse mil contos? Gastava tudo em viagens, dava a volta ao Mundo para aí dez vezes. MENINA EMÍLIA Olha, esta ainda é pior. ISABEL Não há nada como o estrangeiro, nem que fosse por três dias. NÁNI Quem diz três dias, diz seis. A Clara não estava a pensar fechar uns dias para pintar o salão? CLARA Estava. Mas porque é que estás a falar disso agora? NÁNI afasta-se da sua cliente, vai buscar o Diário de Notícias, abre-o e lê. NÁNI (lê) “Paris ao seu alcance por apenas mil e quinhentos escudos, ida e volta. Partidas às quartas-feiras de Lisboa e aos sábados de Paris “. (olha para ISABEL) Então, vamos as duas, Isabel? MENINA EMÍLIA Eu hoje não devia ter saído de casa. CLARA está hipnotizada. CLARA De avião? NÁNI Não, de autocarro. São umas viagens para os emigrantes. ISABEL De autocarro? Então, ficas em Paris quanto tempo? NÁNI Olha, a partida é na quarta-feira de manhãzinha, leva 2 motoristas, por isso quase nunca pára. Quinta-feira ao fim da tarde já estás em Paris. Sexta-feira tens o dia todo para conhecer a cidade. No sábado

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc partimos mais ou menos ao meio-dia. segunda-feira já acordas na tua cama. ISABEL Estás parva … E onde é que dormimos? NÁNI Oh, temos tanto tempo para dormir lá no autocarro e depois por dormimos assim numa pensãozita nos arredores. . ISABEL Que Disparate … E como é que comíamos? NÁNI Levamos umas conservas e compramos pão. ISABEL E…Tu falas bem francês? Eu não. NÁNI Ai E tu achas que duas raparigas bonitas como nós não têm outros meios para se fazer entender? (ri) ISABEL Estás doida. Completamente doida. NÁNI Então, Clara, pinta ou não pinta o salão? MENINA EMÍLIA Pinte lá, dona Clara, se não eu hoje não saio daqui. CLARA Vocês não têm mais nada de que falar para passar o tempo? NÁNI Então, vamos, Isabel? ISABEL Estás parva, os meus pais nunca me deixam.

FIM DE CENA –

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CENA 002/06. EXT. – RUA LOPES / BANCO JARDIM. TARDE. DIA 02 Hermínia e Vitória

HERMÍNIA e a sua vizinha de cima, VITÓRIA, uma mulher da sua idade e condição, conversam sentadas no banco de jardim.

HERMÍNIA O Chico da hortaliça não é Alentejano, senhora, é dos Açores. Digo-lhe eu que sou amiga duns primos dele. VITÓRIA Olha, eu o que sei é que a família dele viraram todos uns unhas de fome. Disseramme. HERMÍNIA Então e eu não sei? Ela, a mulher, a Florinda, é que era riquíssima, herdou duma tia. Então como é que a dona Vitória pensa que eles montaram a loja, Ahn? VITÓRIA Pois, quem quer bons casamentos, arranjaos. Dizem que já têm mais de quatrocentos contos no banco. HERMÍNIA Não admira nada, ao preço que levam as couves e a fruta. Mas o que eu sei é que ele é dos Açores, não é alentejano. Isso é verdade. VITÓRIA Olhe, D. Hermínia o que eu sei é que gostava muito que saísse a sorte grande ao meu filho. Então, não é que a minha, a minha nora engravidou outra vez … HERMÍNIA Outra vez? Ai, Coitado do seu filho. VITÓRIA E já recomeçou a cantiga: que a casa é pequena, que não há espaço e mais assim, mais assado.

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc HERMÍNIA Ah, mas não voltaram a falar-lhe no asilo?

VITÓRIA Não fala ela noutra coisa. Diz que eu lá é que estava bem, tinha mais espaço, que tinha gente da minha idade HERMÍNIA Então e o seu filho não diz nada?

VITÓRIA O meu filho?! O meu filho?! É mole – Deus me perdoe. HERMÍNIA Qualquer dia dizem-me o mesmo a mim. VITÓRIA Ah! Oh Dona Hermínia, sabe o que é que lhe digo… nós não somos nada.

HERMÍNIA Isto de ser velha é uma tristeza. VITÓRIA e HERMÍNIA suspiram

FIM DE CENA –

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CENA 002/07. EXT. – DESCAMPADO / TERRENO. TARDE. DIA 02 António e Carlos ANTÓNIO e CARLOS regressam a casa depois do cinema. ANTÓNIO Então, gostaste do Lawrence da Arábia? CARLOS E ainda quero vê-lo outra vez. ANTÓNIO Agora já não dá, amanhã muda o filme. CARLOS O pai sabe o que é que eu gostava? Era de viver como o Lawrence, assim numa tenda, ir pelo deserto. ANTÓNIO Sabes que o pai quando estava na tropa, tinha um amigo…um pescador que tinha estado em Marrocos. CARLOS E em Marrocos também há deserto? ANTÓNIO Claro que há, montes de deserto. CARLOS E o que é que o seu amigo lhe contou? ANTÓNIO Deixa cá ver se o pai se lembra. Parece que eles eram muitos, andavam muitos vendedores em grupo pelo deserto a fora, sempre montados em camelos. Tinham que andar sempre com a cara tapada, com um pano por causa da areia. Parece que eram uns tipos porreiros, quando alguém ia falar com eles, os gajos eram porreiros, ofereciam-lhes chá de hortelã-pimenta. Espera ai que o pai vai te apertar o sapatdo. CARLOS E iam à escola?

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc ANTÓNIO (não muito seguro) Humm, parece que não… que lá não há escola, só há areia. CARLOS E acreditavam em Deus? ANTÓNIO Sim, então eles têm o Deus deles, um Deus árabe. E o céu deles é muito diferente, parece que está cheio de animais, pássaros, galinhas, galinholas, papagaios e muitas mulheres. CARLOS E rebuçados? ANTÓNIO Claro, rebuçados árabes, muito doces. CARLOS E…e os cromos de futebol? ANTÓNIO Os tipos são doidos pela bola, ele disse-me que eles já até conheciam o Benfica vê lá tu! CARLOS Árabes e mouros é a mesma coisa? ANTÓNIO É. CARLOS Acho que vou ser mouro. (Grito Árabe) ANTÓNIO reage.

FIM DE CENA – PASSAGEM DE TEMPO

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/08. EXT. RUA LOPES / PORTA PRÉDIO. FIM DE TARDE. DIA 02 Isabel e Rui Jorge RUI acompanha ISABEL a casa. RUI JORGE (nem quer crer no que acabou de ouvir) Paris? O quê? Repete lá. ISABEL Ai…A partida é na quarta e no domingo já dormimos em casa. RUI JORGE Deves pensar que és noiva do Onassis? ISABEL Quem, a Jacqueline? Quem me dera. E…Olha vou tirar algum dinheiro da nossa caderneta. RUI JORGE Desculpa o dinheiro da caderneta é para comprarmos a mobília de quarto e uma sala de jantar. ISABEL (desdenhando) Daqui até ao nosso casamento não nos doa a cabeça… RUI JORGE Tu estás a brincar, não estás? Os teus pais não te deixam ir. E queres ir para Paris com quem? ISABEL Com a Náni. RUI JORGE Claro, nem sei porque é que perguntei. Não gosto dela, essa rapariga é um perigo. ISABEL E tu és sempre o mesmo. RUI JORGE Olha, queres ir ver a Música no Coração? Está em reposição no Tivoli.

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc ISABEL Já não tenho seis anos. RUI JORGE Então vamos ver o Bonnie and Clyde, está outra vez no Condes. ISABEL Está bem... FIM DE CENA – PASSAGEM DE TEMPO

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/09. INT. – CASA LOPES / QUARTO CASAL. NOITE. DIA 02 António, Margarida O CASAL está a deitar-se. ELE está muito irritado e ELA serena e conciliadora. MARGARIDA Claro que é um dia muito especial. ANTÓNIO Tu não vês que nós estamos nas lonas, Maria Margarida?! MARGARIDA É verdade que estamos um bocadinho apertados. ANTÓNIO Apertados? pescoço.

Estamos

com

a

corda

ao

MARGARIDA Eu sei, mas é a primeira comunhão do teu filho Carlitos. Quando foi da Isabel e do Tóni nós estávamos muito pior. ANTÓNIO Porque é que o miúdo não faz a primeira comunhão para o ano? MARGARIDA Não pode ser, porque os colegas de aula dele fazem agora, ele também há-de fazer. ANTÓNIO Quando eu fiz a primeira comunhão, a minha mãe deu-me uma camisa lavada e mandoume para a igreja. MARGARIDA Eu sei, e depois ainda foste levar as cabras ao pasto. Oh António! ANTÓNIO Eu sei que me chamo António. O que é que tu queres que eu faça? Anh!

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc MARGARIDA Então, temos que fazer um fato novo de fazenda para o Carlitos, depois temos que dar o lanche. Tu já pensaste António, o nosso filho Carlos… ANTÓNIO (desiste) Quanto… Quanto Maria Margarida? MARGARIDA Quatrocentos escudos. ANTÓNIO (indignado) Quanto? MARGARIDA (regateia) Trezentos e cinquenta. ANTÓNIO (mais indignado) E onde é que eu vou buscar trezentos e cinquenta escudos? MARGARIDA Filho, pedes lá no Ministério. ANTÓNIO Não! MARGARIDA Então pedes ao engenheiro Ramires. ANTÓNIO Não.

MARGARIDA faz-lhe uma festa na cabeça.

ANTÓNIO Ai…..Não.

MARGARIDA Anda cá… anda cá António! ANTÓNIO O que é que tu queres?

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

MARGARIDA Anda cá. Beijam-se apaixonadamente. FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/10. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES. NOITE. DIA 02 Toni e Carlos Os DOIS RAPAZES estão de pijama, cada um sentado na sua cama. TÓNI está concentrado a estudar e CARLOS tenta fazer um turbante árabe com uma toalha de mãos e uma corda, mas não consegue – a seu lado está a figura gigantesca de Lawrence num poster do filme. CARLOS Ó Toni! TÓNI Cala-te! CARLOS Ó Tóni! TÓNI Fica quieto e calado. Cala-te. Tu não vês que eu estou a estudar? Não vês que eu tenho que ficar bem para entrar para a universidade? Ou queres que me mandem para Angola? CARLOS Não, não quero que te mandem para Angola. Diz-me só uma coisa, gostavas de ter muitas mulheres? TÓNI não lhe responde. CARLOS Gostavas… gostavas de viver no deserto, de ir em cima de um camelo e dormir numa tenda? TÓNI Este miúdo está doido. Está completamente doido!

FUNDE C/ –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

CENA 002/10A. – CHROMA-KEY / EFEITO CARLOS. NOITE. DIA 00 Carlos EFEITO: A cara de Peter O’Tolle transforma-se na cara de Carlos.

FIM DE CENA –

PASSAGEM DE TEMPO

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/11. INT. – MINISTÉRIO / CORREDOR. MANHÃ. DIA 03 António, D. Elsa e Dr. Matos ANTÓNIO está sentado na sua pequena secretária, frente a uma máquina de escrever. DONA ELSA aparece de uma das portas do corredor. D. ELSA Ó senhor Lopes já levou a correspondência lá acima? ANTÓNIO Ainda não, dona Elsa, ia agora mesmo levála. D. ELSA Despache-se, homem, depois é a mim que perguntam. ANTÓNIO Esteja descansada. D. ELSA desaparece pela mesma porta por onde apareceu. Vindo do exterior, aproxima-se um homem, DR. MATOS, bem vestido com aspecto de burocrata importante, ANTÓNIO vai ao seu encontro.

ANTÓNIO Bom dia, senhor doutor. DR. MATOS Bom dia, Lopes. ANTÓNIO Podia dar-me um segundo? DR. MATOS Ó Lopes, estou cheio de pressa. ANTÓNIO Eu só lhe queria pedir uma coisa. DR. MATOS Diga lá, homem? ANTÓNIO É que o meu mais novo vai fazer a primeira comunhão e eu queria-lhe perguntar se o Sr. Doutor não me podia facilitar um adiantamentozinho.

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc DR. MATOS Ó Lopes, você pensa que trabalha numa mercearia ou quê? Aqui não se dão adiantamentos, ou melhor, dão-se mas não se deviam dar. Você tem o privilégio de trabalhar no Ministério das Finanças, devia orgulhar-se disso. Passe muito bem. ANTÓNIO Desculpe, senhor obrigado.

doutor



e

muito

FIM DE CENA – PASSAGEM DE TEMPO

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/12. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. TARDE. DIA 03 Margarida, Hermínia MARGARIDA cose calças e ouve rádio. INSERT AUDIO: Rádio toca Balança Jorge Costa Pinto e Paulo Lucena por Madalena Iglésias.

HERMÍNIA (entrando na sala vinda da rua. Tem sacos das compras nas mãos) MARGARIDA Então mãezinha o que é que aconteceu? Estava a ficar preocupada. HERMÍNIA Ó filha, O que é que tu queres? Já não consigo andar tão depressa como dantes: A dona Vitória falou? MARGARIDA Mas Porquê? Aconteceu alguma coisa com a D. Vitória? HERMÍNIA Não, não aconteceu nada. Mas passa-se que os filhos estão mais egoístas que nunca. É isso. MARGARIDA Os filhos hoje estão mais egoístas que nunca!? Isso tem alguma coisa a ver comigo mãe? HERMÍNIA Não, filha, não estou a falar de ti, a verdade é que nós os velhos só andamos para aqui a estorvar. MARGARIDA Ó mãezinha, que disparate, não diga isso. O que é que era de mim sem a sua ajuda. HERMÍNIA Isso é o que tu dizes agora … MARGARIDA Ai, dona Hermínia, dona Hermínia … Ó mãe?!

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc HERMÍNIA Que é? MARGARIDA Veja aqui estas calças, se faz favor. Quando HERMÍNIA se aproxima, MARGARIDA levanta-se rápido, dá um beijo à mãe e torna a sentar-se. HERMÍNIA Ai filha…O que é que têm as calças? Anh Sorriem as DUAS. FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/13. INT. – TIPOGRAFIA / SALA MÁQUINAS. TARDE. DIA 03 António, Gregório, Eng. Ramires, 4 Operários. ANTÓNIO e os outros OPERÁRIOS trabalham, RAMIRES está sozinho no seu gabinete envidraçado. ANTÓNIO Estás a ver como ficou este? É o melhor, tira cinco mil já de seguida que estamos atrasados. GREGÓRIO Atrasados e mal pagos. ANTÓNIO Não me fales em dinheiro, por favor.

Aproxima-se da porta do gabinete do Eng. Ramires.

CORTA PARA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/13. A. INT. – TIPOGRAFIA / ESCRITÓRIO. TARDE. DIA 03 António, Gregório, Ramires, 4 Operários António entra no Escritório do Engenheiro. ANTÓNIO Dá-me licença, senhor engenheiro? ENG. RAMIRES Ó, António, entra, a casa é tua homem – aqui, somos todos iguais. Está à vontade. Então como é que está a tua família? ANTÓNIO Bem, obrigado, quer dizer problemitas, não é verdade?

comuns

ENG. RAMIRES Problemas todos temos. Já dizia o meu pai: só não tem problemas quem já morreu. ANTÓNIO A verdade é que o meu mais novo vai fazer a primeira comunhão. ENG. RAMIRES Ah, que engraçado…Olha, o meu mais novo fez o ano passado. Bem, havias de ver a festa que lhe fizemos. ANTÓNIO Nós também estamos a pensar em fazer-lhe um lanchezito e comprar-lhe um fato, claro. ENG. RAMIRES Claro e vens pedir um adiantamentozito, não é verdade? ANTÓNIO Se o senhor engenheiro inconveniente nisso …

não



ENG. RAMIRES Quer dizer que precisas de dinheiro para comprar o fato ao rapaz, para o lanche e se calhar até lhe vais oferecer um relógio?

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc ANTÓNIO Não, um relógio é muito caro. Estava a pensar oferecer-lhe uma caneta de tinta permanente para o miúdo se habituar… ENG. RAMIRES Eu vou fazer-te um favor António. ANTÓNIO (animado) Muito obrigado, senhor engenheiro. ENG. RAMIRES Vou fazer-te um favor: não te vou dar nem um tostão de adiantamento. ANTÓNIO (pensa ter percebido mal) Então mas … ENG. RAMIRES E ainda me vais agradecer mais tarde. ANTÓNIO (perplexo) Eu vou-lhe agradecer? ENG. RAMIRES Vais, vais António, vais. Vocês são todos uns irresponsáveis-homem. Quando não há dinheiro não há festas. ANTÓNIO (explica-se o melhor que pode) Sr. Engenheiro, com todo o respeito, não é uma festa, é a primeira comunhão do meu filho mais novo. ENG. RAMIRES (autoritário) Nem que fosse o casamento dele. Nós temos de viver…temos que viver com aquilo que temos, mais nada. Agora andam para ai todos com a mania da igualdade, querem todos ser uns senhores, mas a vida não é assim – mete isto na tua cabeça, ouviste ANTÓNIO Já meti, senhor engenheiro. ENG. RAMIRES E não te esqueças que eu te estou a fazer um favor. ..Anh

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc ANTÓNIO (amargo) Se não precisa de mais nada, eu vou… ENG. RAMIRES Não… Já agora… Ó pá dá gás a esses gajos para ver se apresentamos o trabalho amanhã à hora de almoço. E tu tens dois empregos António. Tu já pensaste no risco que eu corro em te ter aqui às escondidas da lei? ANTÓNIO Muito obrigado, senhor engenheiro. Com licença … ANTÓNIO sai. CORTA PARA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/13 B. INT. – TIPOGRAFIA / SALA MÁQUINAS. TARDE. DIA 03 António, Gregório, Eng. Ramires, Operários GREGÓRIO António, olha-me aqui esta prova. ANTÓNIO (furioso) Eu quero lá saber dessa prova. Deixa-me em paz, homem. FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/14. EXT. – DESCAMPADO / CAMIÃO. TARDE. DIA 03 Carlos, Marinho e Luís CARLOS está de pé em cima do camião com o seu turbante árabe e uma espada de madeira, fala para os dois amigos que estão no chão. CARLOS Vá, imaginem que eu sou o Lawrence e que estou em cima de um comboio. Agora vocês têm de gritar: Lawrence! Lawrence! Os DOIS AMIGOS olham-no em silêncio, sem perceberem o que se está a passar. CARLOS Vá, gritem: Lawrence! Lawrence! LUÍS Eu não sei quem é o Lawrence, Lawrence. Eu quero brincar ao Grande Poeta é o Povo. MARINHO Eu também. O Artur Agostinho a gente conhece. CARLOS O Grande Poeta é o Povo não tem mouros, nem camelos. São mesmo parvos. LUÍS Ainda cais da camioneta, Olha para isto está tudo podre. MARINHO Podíamos pedir uma camioneta nova ao homem que ganhou o Grande Poeta é o Povo. CARLOS Tu pensas que quem ganha o concurso fica rico? MARINHO Pois fica. Rico, muito rico. CARLOS Tu sabes lá quanto dinheiro é preciso ter para ser rico?

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc LUÍS Olha, sabes quem é que é a pessoa mais rica de Portugal? MARINHO Quem é? LUÍS É o Eusébio. CARLOS Não é nada. MARINHO Como é que sabes? CARLOS Porque sei. O Eusébio não é branco e os brancos é que são os ricos. MARINHO Então quem é o mais rico? CARLOS É o Salazar! MARINHO e LUÍS (assustados) O Salazar? CARLOS Sim. Ele mora num palácio e os outros palácios são todos dele, e os barcos de guerra e os aviões, e as estátuas, e os jardins, e as praias. MARINHO Vou-me embora, a minha mãe não me deixa brincar aos Salazares. LUÍS Nem a minha. Vamos. Os AMIGOS afastam-se. CARLOS Malucos são vocês. Burros! Burros! Vocês não me conhecem. Eu sou o Lawrence! O Lawrence da Arábia!

FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/15. INT. – CABELEIREIRO / SALÃO. TARDE. DIA 03 Isabel, Náni e 2 clientes. CLARA não está, estão DUAS CLIENTES nos secadores, as DUAS AMIGAS conversam. NÁNI E o que é que te interessa o que diz o Rui? ISABEL Olha, Náni, se não te lembras, o Rui é o meu namorado. NÁNI Teu namorado, disseste bem, não é teu marido. ISABEL Falas assim porque não tens namorado, se não já estavas calada. NÁNI Namorados? Para que é que servem? Olha quando eu tiver um namorado, ele vai ter de fazer tudo aquilo que eu quiser. ISABEL Claro, é mesmo assim como tu dizes. NÁNI E o Rui Jorge não tem nenhum direito de dizer o que é que tu deves fazer com o teu ordenado. ISABEL Falar é fácil. NÁNI Anda cá, olha o que eu aqui tenho. Mostra-lhe alguns folhetos turísticos sobre Paris.

NÁNI Olha esta avenida? Tem mais do dobro das luzes da Avenida da Liberdade. ISABEL Tem neve!

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc NÁNI Então,o que é que decides? ISABEL Não temos passaporte. NÁNI Ai…Demoram uma semana, depois na outra podemos partir. ISABEL Era tão bom! NÁNI Então pronto, não penses mais – está decidido! ISABEL Um conto e quinhentos é muito dinheiro, temos de comprar os passaportes, depois mais algum dinheiro para comer, uns postais, umas recordações para a família e para a Clara. Vai quase a dois contos. NÁNI Não foste tu que os ganhaste? ISABEL E inclui hotel em Paris, não é? NÁNI Não é bem um hotel em Paris, é mais assim uma pensãozita nos arredores, mas está incluído. ISABEL E depois, não sabemos falar a língua. NÁNI Os rapazes parisienses são lindíssimos e espertíssimos, de certeza que eles percebem perfeitamente duas turistas bem bonitas como nós. ISABEL (sonhadora) Turistas? Não me faças sonhar Náni …

FIM DE CENA – PASSAGEM DE TEMPO

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/16. INT. – CASA LOPES / QUARTO CASAL. NOITE. DIA 03 António, Margarida Estão os DOIS dentro da cama, mas sentados. MARGARIDA E porque não? ANTÓNIO Porque aquilo é o Ministério das Finanças, Guida, não é uma mercearia. MARGARIDA E na tipografia? ANTÓNIO Também não. O engenheiro Ramires até me disse que me estava a fazer um grande favor e com o tempo eu ia compreender … MARGARIDA Sim, senhor … ANTÓNIO E o anel da tua avó? MARGARIDA Continua no prego. ANTÓNIO E agora? E agora? Estou tão cansado … MARGARIDA Então descansa filho. Eu já vou ter uma ideia, vá. ANTÓNIO estende-se na cama, fecha os olhos e começa a sonhar.

FUNDE C/

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/17. - CHROMA-KEY / SONHO DE ANTÓNIO. DIA 00 António, Artur Agostinho (OFF) EFEITO VÍDEO: ANTÓNIO sonha que está num estúdio de televisão e que ganha o Grande Poeta é o Povo e que tem uma conversa com Artur Agostinho, está sozinho, tímido e feliz, em cima de um pequeno estrado com uma cortina neutra por fundo. ARTUR AGOSTINHO (OFF) Olá muitos parbéns. Está contente, senhor António Lopes? ANTÓNIO Estou… estou muito contente, senhor Artur Agostinho. ARTUR AGOSTINHO (OFF) E o que é que o meu amigo vai fazer com essa fortuna toda? ANTÓNIO Eu vou organizar a festa da primeira comunhão do meu filho mais novo ali na Quinta de São Vicente. ARTUR AGOSTINHO (OFF) Mas ainda lhe sobra muito dinheiro, …não é? ANTÓNIO A minha mulher quer uma máquina de lavar. O meu mais velho uma guitarra. Eu também tenho uma menina com certeza vai querer alguma roupa,. E…ainda há-de sobrar qualquer coisa para a minha sogra. ARTUR AGOSTINHO (OFF) Olhe, e mais nada? ANTÓNIO Mais? Mais? (fica pensativo) Uma garrafa de champanhe para o senhor Artur Agostinho.

No ecrã aparece o cartaz que diz:

PEDIMOS DESCULPA PELA INTERRUPÇÃO O PROGRAMA SEGUE DENTRO DE MOMENTOS.FUNDE C/

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/18. INT. – CASA LOPES / QUARTO CASAL. NOITE. DIA 03 António, Margarida

ANTÓNIO acorda assustado.

ANTÓNIO Anh! Anh! … Anh! MARGARIDA António! António! Filho! Acorda! António! ANTÓNIO Anh! O que é que foi? MARGARIDA Ó filho, estavas a sonhar. ANTÓNIO Éramos ricos Guida! Éramos ricos! MARGARIDA Vá filho descansa. Vá, vamos dormir.

Aninham-se um no outro e assim ficam.

FIM DE CENA –

PASSAGEM DE TEMPO

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

CENA 002/19. INT. – RUA LOPES / BANCO JARDIM. MANHÃ. DIA 04 Hermínia e Vitória As DUAS AMIGAS estão sentadas num banco de rua à porta de casa. HERMÍNIA Sabe o que lhe digo, dona Vitória? Um dia destes vamos as duas à Caixa Geral, levantamos as nossas cadernetas, levantamos o dinheirinho todo das nossas reformas e vamos viver para a casinha que eu tenho lá na terra. VITÓRIA Mas…Sozinhas? HERMÍNIA Então, Vale acompanhadas.

mais

sós

que

mal

VITÓRIA Ó Dona Hermínia, mas eu não tenho dinheiro … HERMÍNIA Também tenho poucochinho. Então, eu gasto tudo em prendas para os meus netos. VITÓRIA Eu isso não faço, que eles também não me ligam nenhuma. HERMÍNIA Dona Vitória, os netos são uma bênção. VITÓRIA Só se forem os seus … HERMÍNIA Ai, o meu Carlitos agora vai fazer a primeira comunhão. Eu Estou tão contente. VITÓRIA Sorte sua.

FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

CENA 002/20. INT. – IGREJA / SACRISTIA. MANHÃ. DIA 04 Antunes, Carlos, Luís, Marinho e 4 Alunos Catequese

Estão TODOS sentados à volta de uma mesa, CARLOS está ladeado por MARINHO e LUÍS. CARLOS levanta-se e ergue o braço direito. PADRE ANTUNES olha-o irritado.

PADRE ANTUNES Outra vez, ó Lopes? CARLOS Então, o senhor padre não disse que podíamos fazer perguntas … PADRE ANTUNES Tens razão. Pergunta lá o que quiseres … CARLOS Porque é que o nosso céu é tão chato?

PADRE ANTUNES fica perplexo e os outros alunos de boca aberta.

PADRE ANTUNES O nosso céu? O céu, queres tu dizer. Só há um céu. É chato? É chato? Que heresias estás tu para aí a dizer? CARLOS Mas também há o céu dos mouros que tem rebuçados com frutas, canários, papagaios e mulheres. Mulheres muito bonitas a dançar, cheiram muito bem… PADRE ANTUNES SILÊNCIO! LUÍS (sussurra) Já meteste a pata na poça. PADRE ANTUNES (alto e autoritário) Silêncio, já disse. Ouve lá, ó Lopes, tu sabes bem o que estás para aí a dizer?

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CARLOS Pois sei, senhor padre. E porque é que os mouros podem ter muitas mulheres e nós só uma? Eu cá gostava de ter cinco. LUÍS (sussurra) Cala-te. Isso é uma blasfémia. PADRE ANTUNES (ameaçador) Silêncio! Ouve lá, menino, onde é que tu aprendeste esses disparates sobre os muçulmanos? CARLOS Aprendi com o Lawrence. PADRE ANTUNES O Lawrence? Quem é o Lawrence? CARLOS Quem é que havia de ser? O Lawrence da Arábia. LUÍS Dá-me licença, senhor padre? PADRE ANTUNES O que é que tu queres? LUÍS Lawrence da Arábia é um filme. PADRE ANTUNES Ah, um filme! Então ele é isso? …Com que então a culpa é do cinema. Tu foste ver uma dessas porcarias e ficaste convencido que a religião muçulmana é muito superior à nossa … CARLOS Pois é, senhor padre, é muito melhor. MARINHO (sussurra) Cala-te. Ele vai dar cabo de ti. PADRE ANTUNES SILÊNCIO! LUÍS (sussurra) Por tua culpa, vai castigar-nos a todos.

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

PADRE ANTUNES Ouve lá, ó Lopes, porque é que tu estás convencido que a religião muçulmana é muito melhor do que a nossa? CARLOS Porque eles vivem em tendas no deserto, passam os dias a andar de camelo e não têm de ir à escola … PADRE ANTUNES (ameaçador) Chega. Nós temos de ter uma longa conversa a sós. Vais ter muito que pensar e muito que rezar muito antes de fazeres a primeira comunhão. CARLOS Mas eu já não vou fazer a primeira comunhão. PADRE ANTUNES (escandalizado) O quê? O quê? CARLOS Eu agora vou ser mouro. PADRE ANTUNES (atónito) SILÊNCIO! Mouro? Mouro? Tu queres ser um sarraceno? Infiel…

Risos e guinchos das outras CRIANÇAS. Vemos PADRE ANTUNES a gritar, mas já não o ouvimos. Sobre essas imagens ouve-se a voz de Carlos em adulto...

NARRADOR (OFF) O padre Antunes fez-me um sermão que nunca mais acabava, mas eu sabia o que queria e aguentei firme. Saí da igreja cheio de orgulho, sentia-me temido e respeitado. Enfrentara a Igreja e havia ganho – pensava eu, mas o pior ainda estava para vir.

FIM DE CENA – PASSAGEM DE TEMPO

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/21. INT. – CASA LOPES / COZINHA. TARDE. DIA 04 Margarida e Hermínia MARGARIDA está a descascar batatas. Entra HERMÍNIA muito encalorada, vinda da rua.

MARGARIDA Então, mãezinha, vem tão cansada!? HERMÍNIA Encontrei o senhor padre Antunes. MARGARIDA Ai foi? E então? HERMÍNIA Disse que vinha cá a casa esta tarde. MARGARIDA O quê, mãe? HERMÍNIA Diz que tem muita urgência em falar connosco. MARGARIDA O quê? HERMÍNIA Diz que é por causa do Carlitos. MARGARIDA Ah! Só me faltava mais esta …

FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

CENA 002/22. INT. – CABELEIREIRO / SALÃO. TARDE. DIA 04 Clara, Náni, Isabel e 3 Clientes. Rui Jorge (na Porta)

CLARA vigia as três CLIENTES que estão nos secadores. A um canto, ISABEL e NÁNI conversam. NÁNI Ai…Ainda bem que te decidiste. ISABEL Eu nem acredito … As duas em Paris … NÁNI Temos que tratar dos passaportes … ISABEL Se a Clara ainda está decidida a pintar o salão … CLARA Claro que pinto. É que mesmo que não precisasse pintava. Agora sempre quero ver como é que vai acabar esta história. NÁNI Ai,Venha connosco. CLARA Não posso, vou ter que pagar ao pintor e fechar meia semana. ISABEL Será mesmo verdade que há tocadores de acordeon em todas as esquinas? CLARA E namorados a dançarem, a beijarem-se à beira do Sena? … NÁNI Eu quero é que me beijem a mim. CLARA Menina, estás-me a fazer crescer água na boca. Cuidadinho Náni. Muito juízo. L’Amour! Cést L’Amour!

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc ISABEL Olha, e não temos de comprar os bilhetes e pagá-los? NÁNI Não, tu podes comprá-los e pagá-los três dias antes de viajar. Aquilo há sempre lugares vazios. ISABEL Isto é uma loucura. E quando eu disser à minha mãe que só lhe vou dar metade do ordenado este mês… NÁNI Deixa que o mundo não vai acabar … ISABEL E eu! Não me lembro nada do francês que aprendi no liceu … NÁNI Estás sempre a tempo de aprenderes. ISABEL Com quem? NÁNI Com quem é que havia de ser? Com o Alain Delon.

NÁNI aponta para a porta de vidro, RUI JORGE está na rua a fazer sinais: ISABEL ri-se e manda-lhe um beijo.

FIM DE CENA –

PASSAGEM DE TEMPO

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/23. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. FIM DE TARDE. DIA 04 António, Margarida, Hermínia MARGARIDA arruma muito rapidamente as calças e as coisas de costura. HERMÍNIA entra com uma garrafa de Porto já aberta e 4 cálices. HERMÍNIA Disseste ao teu marido para trazer os bolos secos? MARGARIDA Disse, mãezinha. HERMÍNIA E ele consegue sair da tipografia? MARGARIDA Consegue, com certeza. Pois, ele disse ao Sr. Engenheiro que era uma emergência. INSERT AUDIO: Som da porta da rua a abrir e a fechar. ANTÓNIO chega com um pacote que passa à sogra. HERMÍNIA Ai, Eu vou buscar uma bandeja. MARGARIDA Olá filho! ANTÓNIO Então? Queres contar-me o que é que se passa? MARGARIDA (nervosa) Então, eu já te contei tudo. A minha mãe encontrou o Sr. Padre no meio da rua que lhe disse que tinha muita urgência em falar connosco por causa do Carlitos. ANTÓNIO (dramático) Um Padre em minha casa. E logo tinha que ser o Prior da freguesia. Deve querer dinheiro. Só pode ser isso. MARGARIDA Com certeza que não, senão não vinha cá a casa, filho

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc ANTÓNIO Ele que não me venha cá pedir nada que não tem sorte nenhuma. MARGARIDA Vai lá agora mudar de camisa, que essa não está em condições. Vai! ANTÓNIO Ai, Isto até parece que vamos receber o Papa. MARGARIDA Vai lá, filho. ANTÓNIO Onde é que está o Carlos? MARGARIDA Anda por ai na rua com os amigos.

FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/24. EXT. – DESCAMPADO / CAMIÃO. FIM DE TARDE. DIA 04 Carlos CARLOS está sozinho com o seu turbante árabe e a sua espada de madeira sentado em cima da cabine da camioneta. EFEITO VIDEO: Sobrepõem-se imagens de grandes cavalgadas no deserto do filme Lawrence da Arábia e sobre as imagens ouve-se a voz de Carlos em adulto: NARRADOR (OFF) O padre Antunes podia dizer o que quisesse, eu já tinha decidido o meu futuro. Ia-se acabar a escola e eu ia passar a vida a cavalgar num camelo pelo deserto fora. É verdade que ia viver sempre em guerra, mas eu não tinha medo. Se morresse ia para um céu cheio de rebuçados com frutos, e cromos de futebol … E mulheres bonitas, embora na verdade, naquela altura o que menos me importava fossem as mulheres. FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/25. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. FIM DE TARDE. DIA 04 Hermínia, Margarida, António, Padre Antunes A sala está arrumada e pronta para receber o padre. INSERT ÁUDIO: campainha da porta. HERMÍNIA Eu vou lá. HERMÍNIA sai. MARGARIDA ajeita o nó da gravata de ANTÓNIO e endireita-lhe as rugas da camisa. PADRE ANTUNES (entrando) Boa tarde, dona Hermínia. HERMÍNIA Como está Sr. Padre Antunes? Faça o favor de entrar. Entre, entre! (dirigem-se à sala) PADRE ANTUNES Com licença. HERMINIA Faz favor. ANTÓNIO Ah! Boa tarde, senhor padre. PADRE ANTUNES Muito boas tardes, meus filhos. MARGARIDA Como está Sr. Padre? Passou bem? HERMÍNIA Faça o favor de se sentar. Aqui…aqui…faz favor. ANTÓNIO Isso, sentemo-nos todos. PADRE ANTUNES Muito obrigado. HERMÍNIA Deixe-me deitar-lhe um bocadinho deste vinho do Porto que é uma especialidade. PADRE ANTUNES Se a senhora o diz …

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

HERMÍNIA E um bolinho seco sr.padre? PADRE ANTUNES Isso é que não, peço muita desculpa – vai só um copinho. Instala-se um silêncio de mau estar. MARGARIDA Parece que este ano o calor veio mais cedo, não é verdade, senhor padre? PADRE ANTUNES É verdade, Margarida. E também é verdade, como já disse à tua mãe, que quero falar com vocês sobre um assunto muito delicado … Delicado e grave – não é apenas uma criancice … ANTÓNIO Faça o favor de falar, senhor padre. PADRE ANTUNES Bom, como estamos em família, vou direito ao assunto. Tenho a missão ingrata de vos comunicar que o Carlitos é um apóstata. HERMÍNIA O quê? O que é que o miúdo é? ANTÓNIO Calma, dona Hermínia. PADRE ANTUNES Apóstata, dona Hermínia, eu disse: apóstata. MARGARIDA E o que é isso da póstata? PADRE ANTUNES Chama-se apóstata aquela pessoa que renuncia à sua fé e se converte a outra religião. ANTÓNIO (sem perceber) E quem é que se vai converter a outra religião?

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc MARGARIDA Nós, cá em casa temos uma … PADRE ANTUNES O Carlos quer renunciar à religião católica. HERMÍNIA (benze-se) Valha-nos Santa Filomena, Meu Deus

ANTÓNIO (continua sem perceber) Mas como é que ele pode renunciar? MARGARIDA Pois com certeza. Então se o miúdo é baptizado. Ainda por cima agora vai fazer a primeira comunhão, como o Sr. Padre sabe. PADRE ANTUNES O vosso filho renuncia a receber a Santa eucaristia, e está a tentar que todos os colegas sigam o seu exemplo. ANTÓNIO (atónito) Como? PADRE ANTUNES O vosso filho quer ser mouro. HERMÍNIA (aflita) Ai Santo António seja nesta casa. Meu Deus! MARGARIDA Mãe, por favor … ANTÓNIO Mouro? PADRE ANTUNES Diz que se o obrigarmos a comungar que começa a gritar lá na igreja que é mouro. HERMÍNIA Mouro? PADRE ANTUNES O que é que vocês têm a dizer-me?

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc MARGARIDA Mouro? ANTÓNIO Ó senhor padre, eu fui com ele ver, aquele filme, O Lawrence da Arábia, mas eu acho que não tem nada a ver com isto – é um filme tão bonito…

FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/26. EXT. RUA LOPES / QUIOSQUE CAMÕES. FIM DE TARDE. DIA 04

Carlos, Camões, Dino, Menina Emília, Renato CARLOS, sempre com o seu turbante, vai pela rua em direcção ao quiosque de Camões. INSERT AUDIO: Ouve-se a música do filme Lawrence da Arábia. CAMÕES (sorrindo) Que Alá seja contigo, beduíno do deserto. CARLOS passa-lhe um livro aos quadradinhos. CARLOS Tome, senhor Camões, isto não presta para nada. CAMÕES O quê? O Mandrake não presta para nada, desde quando? CARLOS Não gosto. CAMÕES Não gostas, mas devias gostar. Enquanto CARLOS vê outros livros chega DINO. DINO Dê-me aí cinco SGs, sô Camões. CAMÕES Por este andar vou ficar rico, ainda hoje não vendi um maço inteiro. DINO Ah, não resmungue. CAMÕES Quinze Tostões. DINO Obrigadinho. Até logo. Dá os 5 cigarros e recebe o dinheiro, 3 tostões cada um. DINO afasta-se, CARLOS põe outro livro em cima do balcão. CARLOS Este também não presta.

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

CAMÕES O quê? Mas tu antigamente gostavas do fantasma. CARLOS Aqui, o Fantasma ganha aos mouros. Estou farto que todos ganhem aos mouros. CAMÕES Ah! E o que é que tu queres, que ganhem os maus não? CARLOS Os mouros não são maus, senhor Camões. CAMÕES Sim, mas … CARLOS Eu já não posso ser seu amigo … CAMÕES Bom, Tá bem, Tu é que sabes, mas Olha lá, diz-me uma coisa…porque é que tu te tornaste mouro? CARLOS Para viver no deserto e ter montes de camelos … e ter montes de mulheres … CAMÕES AH! Olá Menina Emília! Entra a MENINA EMÍLIA. MENINA EMÍLIA Olá Sr. Camões. Olá Carlitos estás bom? CAMÕES Então o que é que deseja? MENINA EMÍLIA Um Português Suave, se faz favor. CAMÕES Vinte e cinco tostões.

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc MENINA EMILÍA Não, Não, Não, Eu não quero um maço. Só quero um cigarro que é para fumar na cama.

MENINA EMILÍA Obrigada Sr. Camões. Olhe, não se importa, não tenho aqui trocado. Posso-lhe pagar amanhã? CAMÕES Pode, pode com certeza! MENINA EMÍLIA Tá, muito obrigada. CARLOS Que Alá esteja convosco. MENINA EMILÍA E contigo também. A MENINA EMÍLIA afasta-se. CAMÕES Olha lá ó Carlitos, quer dizer que tu queres ser mouro para teres muitas mulheres é? CARLOS Montes e montes de mulheres. CAMÕES Então e para que é que tu queres ter montes e montes de mulheres? CARLOS Porque eu sou mouro e os mouros têm montes de mulheres. CAMÕES Vão dar-te cabo da cabeça. CARLOS Está bem, então não me caso, mas vou ter montes de camelos. CAMÕES Ah! Assim, é que é! Sempre mouro, sempre solteiro e cheio de camelos.

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CARLOS Até logo, tenho de ir a casa do Marinho. CAMÕES Adeus, mouro encantado. CARLOS sai e entra RENATO. RENATO Dê-me dois cigarros, se faz favor. Com filtro… é para assentar se faz favor. CAMÕES faz uma expressão chateada mas dá-lhe os cigarros... mais uma vez avulsos.

FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/27. INT. –CASA LOPES / SALA COMUM - FIM DE TARDE. DIA 04 António, Margarida, Hermínia e Carlos

O PADRE ANTUNES acabou de sair. Estão TODOS muito nervosos.

HERMÍNIA E agora, o que é nós fazemos? ANTÓNIO Sei lá, o miúdo que faça a comunhão para o ano. HERMÍNIA Vocês deviam falar mais com ele.O miúdo passa a vida a ler livros aos quadradinhos. MARGARIDA O senhor padre diz que quem tem mais influência nos filhos é o pai. ANTÓNIO Ai é? E qual é a influência da mãe? O Padre que vá mas é educar os filhos dele. HERMÍNIA Credo, António, também não é preciso falar mal. A verdade é que o Carlitos tem uma adoração por ti … MARGARIDA Quem é que o levou ao cinema? Quem é que lhe conta aquelas histórias todas do teu amigo da tropa e dos camelos? … HERMÍNIA E das mulheres? … ANTÓNIO (enervado) Então a culpa é minha. INSERT ÁUDIO: Ouve-se abrir a porta da rua. MARGARIDA Olha…Aí está ele …

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CARLOS (entrando) Que Ala seja convosco.

TODOS ficam perplexos. CARLOS dirige-se ao quarto.

ANTÓNIO Eh, tu, ó Alá, espera aí um bocadinho. ANTÓNIO aproxima-se do filho. FIM DE CENA – PASSAGEM DE TEMPO

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/28. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. NOITE. DIA 04 António, Margarida, Hermínia, Isabel, Toni e Carlos

ANTÓNIO, MARGARIDA, HERMÍNIA e TÓNI estão sentados à mesa. Olham para o ecrã da televisão.

INSERT VÍDEO: A televisão passa a notícia da inauguração do novo Casino do Estoril: Américo Thomaz e outros governantes,

ANTÓNIO Estes gajos a gastarem à farta e eu sem dinheiro para comprar um fato para a comunhão do meu filho. CARLOS (OFF) Não faço a comunhão, não comunhão. Eu quero ser mouro.

faço

a

ANTÓNIO Tu não me faças levantar da mesa, Carlos Manuel. INSERT AUDIO: Som da porta da rua a abrir e a fechar. Abre-se a porta da rua e entra ISABEL. ISABEL Olá. ANTÓNIO Isto são horas de chegar? Já estamos à mesa há meia hora. ISABEL Desculpem, não reparei passado tanto tempo.

que



tinha

HERMÍNIA Vá, senta-te. Dá cá o prato. ANTÓNIO A hora das refeições nesta casa é sa-gra-da. Eu estou farto de dizer. CARLOS (OFF) E porque é que tenho de fazer a comunhão, porquê?

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

ANTÓNIO Estás aqui, estás a levar uma arrochada Anh! ISABEL Posso saber o que é que se passa aqui? MARGARIDA Come lá, filha, come… TÓNI É o Carlos. Disse que não quer fazer a primeira comunhão porque quer ter muitas mulheres. ISABEL dá uma gargalhada. MARGARIDA Ouve lá, estás-te a rir de quê?Não tem graça nenhuma. INSERT VÍDEO: A televisão passa espectáculo com Amália Rodrigues na inauguração do Novo Casino Estoril. ISABEL Bom, já que estamos todos aqui, eu tenho uma coisa para vos dizer. Daqui a quinze dias vou a Paris de autocarro. MARGARIDA Vais onde? ISABEL A Paris. MARGARIDA Com que dinheiro? ISABEL Só custa um conto e quinhentos, eu acho que é de aproveitar. TÓNI É, Porreiro. HERMÍNIA Valha-nos o Sagrado Coração de Maria. ANTÓNIO (furioso) Vais onde?

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

ISABEL Vou a Paris, pai. Já estou a tirar o passaporte. O pai vai-me dar a autorização, não vai? ANTÓNIO Vai a Paris, é assim? E eu? Não tenho nada a dizer? ISABEL Ó pai, é tão barato. Eu Passo a vida a trabalhar… E depois a Clara vai fechar o salão durante uns dias para mandar pintar tudo. ANTÓNIO Tu deves estar é doida, rapariga.

HERMÍNIA E dizes tu que um conto e quinhentos não é nada?! … ISABEL Ó, vó, são as minhas poupanças – eu trabalho. É verdade, mãe, se a mãe não se importa, este mês só lhe dou metade do dinheiro, e assim aproveito para comprar umas roupas por lá. MARGARIDA (inconsolável e descontrolando-se um pouco) E porque é que havia de me importar? Nós estamos a nadar em dinheiro.Eu nem sei como é que hei-de pagar a primeira comunhão do teu irmão Carlos, tu e o teu irmão Toni tiveram direito a tudo, fato novo e a rancho melhorado e ele também há de ter, não sei muito bem como, mas ele há de ter e a mana diz que vai para Paris. Tu estás doida, Maria Isabel, nem que nós não tivéssemos falta de dinheiro. Tu achas que eu te deixava ir sozinha para tão longe? ISABEL Não é sozinha, é com a Náni.

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc ANTÓNIO CHEGA! CHEGA !. Enquanto viveres nesta casa fazes o que eu mandar. Esquece Paris! CARLOS aparece de pijama e turbante.

CARLOS E porque é que eu não posso ser mouro, se eu quero ser mouro? ANTÓNIO Carlos, filho, anda cá ao pai. Olha para mim, já para a cama que isto hoje não está dia para mouros; Para a cama. Já! Beijinho.

CARLOS sai contrariado.

FIM DE CENA – PASSAGEM DE TEMPO

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/29. INT. – CASA LOPES / QUARTO CASAL. NOITE. DIA 04 António, Margarida ANTÓNIO e MARGARIDA estão deitados em cima da cama, ele fuma. ANTÓNIO Esse se for bofetada.

preciso

eu

endireito-o

à

MARGARIDA Passas a vida a oferecer bofetadas, ainda não lhe deste nenhuma. ANTÓNIO Mais vale tarde que nunca. Amanhã pode ser que não acabe o dia sem levar a primeira. MARGARIDA Mas tu é que lhe meteste na cabeça a coisa dos mouros e dos camelos. ANTÓNIO Está bem, já me disseste . A culpa é minha. MARGARIDA E ainda lhe foste dizer que os mouros têm muitas mulheres?! ANTÓNIO Não, não, não, não, não. Eu peço desculpa, eu disse alguns… alguns mouros têm várias mulheres. MARGARIDA Tu mais as histórias da tropa … O que é que fazemos agora? ANTÓNIO Às vezes penso se não nos preocupamos demais com que os outros pensam. E por isto ou por aquilo, acabamos sempre por gastar aquilo que temos…aquilo que não temos.

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

MARGARIDA (não o deixa acabar o que ia a dizer) O que é que estás para aí a dizer? Então? Nós vivemos com o mínimo dos mínimos. Nós Temos televisão, é verdade, mas não temos carro, não temos máquina de lavar. Agora era preciso dar uma pintadela à casa toda… ANTÓNIO Está bem, está bem! MARGARIDA …Nem temos dinheiro para isso. ANTÓNIO Mas eu já estou farto. Estou farto de passar noites em branco por causa do dinheiro. MARGARIDA dá-lhe um curto mas apaixonado beijo. ANTÓNIO Já sei. MARGARIDA O quê? ANTÓNIO Como é que não me lembrei disto antes? MARGARIDA Mas o que é que foi? ANTÓNIO Vou vender sangue. MARGARIDA Vais vender o quê? ANTÓNIO Vou vender sangue. Pagam bem. MARGARIDA Tu já pensaste na quantidade de sangue que tens que vender para fazer os quatrocentos escudos? Começa uma pequena cena erótica, com MARGARIDA beliscando-o por todo o corpo.

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc MARGARIDA Tinhas de tirar sangue daqui … Tinhas de tirar sangue daqui …tinhas de tirar sangue daqui …tinhas de tirar sangue daqui … ANTÓNIO Quantos litros de sangue é que terá uma pessoa?

MARGARIDA Ficavas todo esburacado? Depois, onde é que eu agarrava? ANTÓNIO Talvez ficasse um bocadinho mais magro … MARGARIDA Não sejas tonto. Eu gosto de ti assim. ANTÓNIO Gostas? Gostas, Gostas!

Beijam-se.

FIM DE CENA –

PASSAGEM DE TEMPO

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/30. EXT. – RUA LOPES / RUA. MANHÃ. DIA 05 Hermínia, Vitória

Cada uma com seu saco, as DUAS AMIGAS regressam das compras. VITÓRIA está muito mais bem disposta que na última cena em que entrou.

VITÓRIA Disseram que eu estava maluca, que não me iam nada meter no asilo. HERMÍNIA Não, os nossos filhos não são assim tão maus. Ás vezes como têm lá os problemas deles, esquecem-se dos velhos. É o que é? VITÓRIA Ai, Dona Hermínia, Eu estou tão contente, tão contente, vão fechar a varanda para fazer um quarto para mim. Claro, depois durmo na marquise e também tenho de entrar com algumas das minhas economias, mas o que é que se há-de fazer, não é? HERMÍNIA As avós são…são muito úteis, são indispensáveis. Como é que a sua nora podia passar sem a senhora, agora que vai ter o bebé anh! VITÓRIA Olhe, Somos velhas, a nossa experiência tem que servir para alguma coisa. HERMÍNIA Temos o nosso valor, lá isso temos.

FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

CENA 002/31. INT.CASA LOPES / QUARTO RAPAZES. MANHÃ. DIA 05 Carlos, Luís e Margarida. Os DOIS RAPAZES estão sentados em cima das duas camas ainda com as batas CLARAS da escola vestidas e com as pastas ao lado. CARLOS continua de turbante árabe. CARLOS A sério, é muito melhor ser mouro. Não faças a primeira comunhão. LUÍS Vai ser melhor porquê? Se não fizer a primeira comunhão não recebo um monte de prendas. CARLOS Mas quando morreres vais para um céu onde não há nada. No céu dos mouros há muitas raparigas … LUÍS As raparigas são umas chatas. CARLOS E há gelados e cromos de futebol e livros aos quadradinhos do mundo inteiro … Abre-se a porta e entra MARGARIDA. MARGARIDA Luís, filho, está na hora do almoço. Tens que ir para casa. LUÍS Já me tinha esquecido do almoço. Adeus. CARLOS despede-se com uma reverência islâmica. LUÍS sai. MARGARIDA Quando é que tu paras com essa parvoíce, Carlos? CARLOS O meu nome não é Carlos, é Mustafá. MARGARIDA sai furiosa. FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc PASSAGEM DE TEMPO CENA 002/32. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. FIM DE TARDE. DIA 05 Hermínia e Toni INSERT VÍDEO: Desenhos animados do Kimba, o leão branco. HERMÍNIA põe a mesa. TONI sentado num sofá lê um livro. A televisão está ligada e passa:

HERMÍNIA Nem sei como ainda tens cabeça. Muito estudas tu, filho… TONI Eu não estou a estudar, avó HERMÍNIA Então o que é que estás a fazer com esse livro à frente? TONI É um romance. HERMÍNIA É a mesma coisa, tudo o que seja meteres letras dentro da cabeça é bom para não ires p’rá Angola. TONI Se conseguir entrar para a universidade, ainda me safo por uns tempos. HERMÍNIA E se Deus quiser, entretanto acaba a guerra.

TONI continua a ler e HERMÍNIA a pôr a mesa, às tantas olha para a televisão.

HERMÍNIA Ai, meu Deus! Olha filho, olha.

HERMÍNIA corre para o televisor a levantar o som.

INSERT VÍDEO: Imagens do Maio de 68 em Paris, comentadas pelo locutor.

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc TONI O que foi, avó? HERMÍNIA É uma revolução, filho

INSERT VÍDEO: Continuam as imagens do Maio de 68 em Paris, comentadas pelo locutor. TONI Isso é em França, avó. HERMÍNIA E então só temos a Espanha pelo meio … TONI Não se preocupe avó, não é nada connosco. HERMÍNIA O mal é o fogo começar, nunca se sabe onde irá parar. HERMÍNIA sai a correr.

CORTA PARA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/33. INT. – CASA LOPES / COZINHA. FIM DE TARDE. DIA 05 Margarida, Hermínia, Isabel, Toni (OFF) MARGARIDA está a preparar alface para a salada. HERMÍNIA Ai, filha, que grande 31. MARGARIDA O que foi, mãezinha? HERMÍNIA Já estão a queimar os carros e a atirar pedras aos polícias … MARGARIDA Mas onde? Em que bairro, em Lisboa? HERMÍNIA Não, filha, em Paris, na França. MARGARIDA Ai, em França, que susto me pregou, mãezinha, pensava que era aqui. INSERT AUDIO: Porta da rua abre e fecha. MARGARIDA, pega num tomate já lavado e começa a cortá-lo às rodelas. ISABEL entra na cozinha, vinda da rua.

ISABEL (zangada) Olá mãe. MARGARIDA Olá, filha. HERMÍNIA Queres ir a Paris, não querias? Vai, vai, talvez leves com uma pedra na cabeça. ISABEL (sem perceber) O quê? MARGARIDA Não sei filha, parece que estão a queimar tudo lá por Paris.

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc ISABEL Em Paris? TÓNI (OFF) Mãe, mãe! Venham cá depressa!

MARGARIDA e ISABEL saem a correr. HERMÍNIA pega no tomate que a filha deixou a meio e continua a cortá-lo.

CORTA PARA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/34. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. FIM DE TARDE. DIA 05 Toni, Margarida, Isabel e António INSERT VÍDEO: Reportagem sobre o Maio de 68 em Paris. TONI está a ver televisão. MARGARIDA e ISABEL entram a correr. MARGARIDA Que foi, filho? TONI Estão a destruir tudo que encontram à frente – deve ser uma revolução. MARGARIDA Uma revolução? ISABEL E é mesmo em Paris? TONI Tu não ouves? Não vês? ISABEL Estão a atirar pedras aos polícias … MARGARIDA Deixa ouvir. As DUAS sentam-se na beirinha do sofá para ver o que passa na televisão: INSERT VÍDEO: Reportagem sobre o Maio de 68 em Paris.

ISABEL (mais animada) Quero ver quando é que aqui começam a atirar pedras aos polícias. MARGARIDA Maria Isabel, o que é isso? INSERT ÁUDIO: porta da rua abre e fecha. ANTÓNIO entra. ANTÓNIO Boas. MARGARIDA Olá, António.

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc ANTÓNIO O que é que se passa? MARGARIDA É uma revolução, filho. ANTÓNIO Ai Meu Deus, o que vai para aqui. TONI Saia da frente, pai. ANTÓNIO Onde é que é isto? ISABEL Em Paris! (saindo) … Venho já. ISABEL corre para a porta da rua e sai.

FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/35. EXT. RUA LOPES / BANCO JARDIM. FIM DE TARDE. DIA 05 Carlos, Marinho e Luís, Isabel CARLOS mostra a sua colecção de cromos da bola. CARLOS Cavém, José Águas … MARINHO Torres. CARLOS José Augusto, Simões, MARINHO Olha o Costa Pereira. ISABEL sai de casa a correr e passa pelos RAPAZES que nem a vêem. LUÍS São todos do Benfica. CARLOS São os mais difíceis de arranjar. MARINHO São os melhores. CARLOS Mas também tenho o Morais e o Damas e o Matateu. LUÍS E não tens o Eusébio? CARLOS Não, esse, ninguém tem. Mas tenho o Coluna. LUÍS E o Livramento? CARLOS O Livramento não é do futebol, é do hóquei. LUÍS Mas esse é que é bom, marcou 42 golos em nove jogos – somos campeões do Mundo.

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CARLOS Mas está bem, mas no céu dos mouros não há cromos do hóquei. MARINHO É verdade que no céu dos mouros há todos os cromos da bola? LUÍS E não se paga? CARLOS E há bolas de Berlim e tabletes de chocolate e artistas de cinema quase todas nuas. MARINHO Acho que também vou ser mouro. LUÍS (ri) O pior, Marinho, é quando o padre souber. CARLOS Tu não te armes em queixinhas. MARINHO E os mouros recebem prendas? CARLOS Ah, isso, não. MARINHO Então vou fazer a primeira comunhão. CARLOS Pois é, mas quando morreres vais ficar sentado sem fazer nada e eu vou comer doces e brincar o tempo todo!

FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

CENA 002/36. INT. – CASA LOPES / COZINHA. FIM DE TARDE. DIA 05 Margarida, Carlos MARGARIDA está a dispor em três pratos, vários tipos de carnes frias: presunto, fiambre, mortadela, salpicão, etc. CARLOS, de turbante, entra e fica de olhos arregalados nos pratos.

CARLOS Olá. CARLOS estende a mão para um dos pratos.

MARGARIDA Olá! Fora daqui. CARLOS Tenho fome. MARGARIDA Pois sim filho, comes depois quando estiver na mesa. Olha lá, tu não viste a tua avó na rua?

CARLOS Não. MARGARIDA Então, mas ela estava aqui a preparar o jantar e desapareceu! E a tua irmã, não viste? CARLOS Também não vi. CARLOS tenta de novo chegar ao prato. MARGARIDA (dando-lhe uma “sapatada” na mão) Não sei! Fora daqui já! CARLOS sai amuado.

CORTA PARA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

CENA 002/37. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. FIM DE TARDE. DIA 05 Margarida, Carlos, Hermínia MARGARIDA entra na sala, dirige-se ao telefone e depois de consultar a agenda disca um número, alguém lhe responde do outro lado. MARGARIDA (ao telefone) Dona Vitória, como está? Desculpe lá estar a maçá-la, é a Guida, filha da Dona Hermínia… Bem, muito obrigada. Por acaso a minha mãe está aí consigo? CARLOS aparece, vindo do seu quarto. CARLOS Ó mãe, só uma fatia de fiambre? MARGARIDA faz cara de má e com o indicador aponta-lhe a direcção do quarto. CARLOS regressa ao quarto. MARGARIDA Pois, é que ela estava a fazer-me o jantar e de repente desapareceu… … Ah, deixe estar olhe… já apareceu… muito obrigado… Boa noite… Desculpe. MARGARIDA desliga e HERMÍNIA entra com quatro sacos de compras que coloca em cima da mesa. MARGARIDA Ó minha mãe, mas o que é que lhe aconteceu? Já é quase noite! O que é isto? HERMÍNIA Ai Jesus! Eu não me esqueço do que passámos na 2ª guerra. A minha família não vai passar fome outra vez. CARLOS corre a ver o que se passa. MARGARIDA Ó mãe, aquelas lutas são em França, não são cá. HERMÍNIA A segunda Guerra também não foi cá e eu passava horas nas filas de racionamento para arranjar um pão escuro e meio quilo de carvão.

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

CARLOS começa a rebuscar os sacos. CARLOS Sardinhas, sardinhas, sardinhas, sardinhas, sardinhas, bacalhau, feijão. MARGARIDA (vê o conteúdo dos sacos com desgosto) Tanta coisa, gastou tanto dinheiro e logo agora que estamos tão aflitos com a primeira comunhão do Carlitos. HERMÍNIA Não te preocupes que paguei tudo com o meu dinheiro.

CARLOS regressa ao seu quarto.

MARGARIDA E onde é que a mãe tinha tanto dinheiro? HERMÍNIA Fui hoje de manhã à Caixa Geral levantar alguma coisa da minha caderneta. MARGARIDA Porquê? HERMÍNIA Porque precisava. MARGARIDA Para quê, minha mãe? HERMÍNIA Para pagar a comunhão do meu neto. MARGARIDA Mas então a mãe não andava a guardar para ir a Fátima? HERMÍNIA Ó filha, não fui lá o ano passado quando veio o Papa, agora já não vale a pena!

MARGARIDA abraça a mãe comovida. Sobre as imagens de ternura entre mãe

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc e filha e dos afazeres de ambas a acabarem o jantar, ouve-se a voz de Carlos em adulto: NARRADOR (OFF) Nas semanas seguintes comemos sardinhas com batatas, sardinhas com salada, sardinhas com feijão-frade … A minha avó tinha a sua razão. O mundo levou um abanão em 68. Os franceses revoltaram-se, os checos também e foram logo invadidos pelos soviéticos … Mas a única coisa que me lembro é das sardinhas de conserva em óleo vegetal.

FIM DE CENA – PASSAGEM DE TEMPO

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

CENA 002/38. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES. NOITE. DIA 05 Toni, Carlos Cada um dos irmãos está sentado na respectiva cama. TONI continua a ler o livro que estava a ler na sala. CARLOS lê um livro sobre cultura islâmica. CARLOS Sabes quantos dias pode estar um camelo sem beber água? TONI Sei lá. Olha o que eu sei é que não posso ficar muito tempo sem jantar. Isto hoje não se come? CARLOS A mãe diz que está atrasado, a avó desapareceu e ela foi à procura dela. TÓNI Desapareceu!? E então, já apareceu? CARLOS Já. O que é que tu sabes sobre tuaregues? TÓNI Não me chateies com isso. CARLOS Tu sabias que os tuaregues nunca tomam banho? TÓNI É, eles não tomam banho porque moram todos no deserto. Os outros árabes tomam banho. CARLOS Mas por acaso eu vou ser um mouro árabe tuaregue … TÓNI (fala alto. Definitivo) É pá, não me chateies! CARLOS finge que não ouve. Ajoelha-se no chão onde finge estar a rezar a Alá.

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

TÓNI (apreciando a cena) Tás doido! FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/39. INT. – CASA LOPES / COZINHA. NOITE. DIA 05 Margarida e Hermínia HERMÍNIA acaba de pôr as carnes frias nos pratos. MARGARIDA guarda as compras da mãe nos armários. HERMÍNIA Nós não estamos atrasadas? MARGARIDA Estamos atrasadíssimas. Veja lá o António já foi ao Fánan, já bebeu a cerveja, já voltou… Até me admira como é que ele está calado. Tanta sardinha, mãe… HERMÍNIA Diz o que quiseres, mas a mim não me apanham outra vez sem comida. MARGARIDA Mas o que é que nós temos a ver com a França. HERMÍNIA Eu sei do que estou a falar. E tu não te esqueças que tens família em Paris. MARGARIDA Ah, pois o Miguel, o irmão do António! HERMÍNIA Coitados, devem estar aflitos. MARGARIDA Ó mãe, desculpe lá a pergunta… A mãe levantou o dinheiro todo? HERMÍNIA O que é que isso te interessa? Não, ainda lá ficou algum para uma aflição, uma doença, quem sabe … MARGARIDA Ai Credo, vire para lá a boca. Nós graças a Deus estamos todos de saúde. HERMÍNIA Pronto, poderá servir para o casamento da minha neta. HERMÍNIA vai saindo para a sala.

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc MARGARIDA Não me parece que a Belinha vá casar tão cedo.

CORTA PARA –

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CENA 002/40. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. NOITE. DIA 05 Hermínia, Carlos, Toni, António CARLOS, ANTÓNIO e TÓNI estão sentados à mesa. HERMÍNIA vem da cozinha e senta-se também.

INSERT VÍDEO: Na televisão - uma reportagem sobre o deserto de Moçâmedes. CARLOS Ó pai, em Angola também são mouros? ANTÓNIO Não, não são. E pára com essa conversa, que eu já estou farto dos teus árabes e dos mouros e dos camelos.

HERMÍNIA Tu já és crescidinho, deixa-te de disparates, Carlos Manuel. CARLOS Eu não me chamo Carlos Manuel, o meu nome é Mustafá Abdul Ali. ANTÓNIO E eu chamo-me: “não acabas a noite sem apanhares”! CARLOS Pode bater-me, pai. Nós os mouros quanto mais sofremos, mais nos divertimos no céu. ANTÓNIO É impressão minha ou este miúdo está a ficar doido? TÓNI Olha, eu acho que o devíamos mandar para o Julio de Matos. CARLOS Que Alá esteja convosco.

FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/41. INT. – PRÉDIO LOPES / ESCADA. NOITE. DIA 05 Isabel, Rui Jorge Os DOIS namorados despedem-se lentamente. ISABEL O meu pai já subiu, tenho que me ir embora. RUI JORGE Só mais um minuto. ISABEL Não posso. O meu pai perdoa tudo, menos os atrasos às refeições. RUI JORGE Dá-me outro beijo. ISABEL Não, não pensas em mais nada? RUI JORGE E queres que pense em quê? ISABEL Por exemplo, na revolução que se está a passar em França. RUI JORGE Já cá faltava – tu e a mania da França. Mas qual revolução? O que é isso? ISABEL (triste) Olha, não é nada. Já não vou a Paris, sabes? RUI JORGE Eu sabia que tu ias ganhar juízo. Vamos ver o Bonnie and Clyde no domingo? ISABEL (aborrecida) Como queiras. Até amanhã.

ISABEL sobe as escadas a correr.

CORTA PARA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

CENA 002/42. INT. – PRÉDIO LOPES / PATAMAR. NOITE. DIA 05 Isabel.

Antes de entrar em casa, ISABEL baixa consideravelmente a altura da saia.

CORTA PARA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

CENA 002/43. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. NOITE. DIA 05 António, Carlos, Toni, Hermínia, Isabel

ISABEL entra em casa, os restantes familiares, com a excepção de MARGARIDA que está na cozinha, estão sentados à mesa.

ISABEL Já estão à mesa? ANTÓNIO Já devíamos estar a jantar há meia hora. HERMÍNIA (alto) Guida, a tua filha chegou. MARGARIDA (OFF) Vou já. HERMÍNIA (para ISABEL) Ó filha, vai ajudar a tua mãe que eu hoje estou estoirada. ISABEL sai. CARLOS Ó pai, eu agora, sou mouro e também tuaregue. Os tuaregues passam a vida em cima do camelo e não se lavam nunca. TONI Porco!

ANTÓNIO deita um olhar a CARLOS, uma mistura de cansaço e irritação.

FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

CENA 002/44. INT. – CASA LOPES / COZINHA. NOITE. DIA 05 Margarida e Isabel

ISABEL olha espantada para a grande quantidade de latas de sardinha e outras compras, bem como para o exagero de pratos de carnes frias. ISABEL (apontando as latas) O que é isto? MARGARIDA Isso são coisas da tua avó. ISABEL E estas carnes todas? Não teve tempo de cozinhar, foi? MARGARIDA Não filha, isto é uma experiência. Ajuda-me aqui.

As DUAS carregam, como podem, três pratos de carnes frias, um de batatas cozidas e uma tigela de salada de tomate, cebola e alface.

CORTA PARA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/45. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. NOITE. DIA 05 Margarida, Hermínia, Isabel, Toni, Carlos e António MARGARIDA e ISABEL entram com os pratos que dispõem em cima da mesa e sentam-se. MARGARIDA serve a família, no prato de CARLOS apenas põe batatas e salada. MARGARIDA Carlitos! ANTÓNIO Agora diz que é Tuaregue e que não se lava. ISABEL Então que não se lave. CARLOS Lavo-me mas só com areia. HERMÍNIA Devias ir viver para a Caparica, areia é o que não falta por lá. CARLOS (reclama) A mãe só me pôs batatas e salada … Vai com a mão direita directa a um dos pratos das carnes frias, mas MARGARIDA dá-lhe uma palmada e ele recua. MARGARIDA Ó filho! CARLOS Aiiiiii! MARGARIDA Se não fosse eu agora comias o fiambre. HERMÍNIA Comia agora… não comias fiambre, pois não meu querido? CARLOS O quê? Eu gosto muito de fiambre. TONI Gostas, mas não comes, Mustafá? CARLOS (não percebe) Não como porquê?

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

Lança a mão a uma rodela de chouriço, mas desta vez é HERMÍNIA que lhe dá uma palmada e ele larga a carne. CARLOS Aiiiiiii! ISABEL Tu não sabes que os árabes não comem chouriço? ANTÓNIO Nem chouriço, nem fiambre, nem salsichas. MARGARIDA Nem presunto, nem mortadela … TONI Nem morcela … ISABEL Nem salpicão … CARLOS Porquê? HERMÍNIA Porque é proibido, querido … MARGARIDA É verdade. Eu por acaso até estava para te fazer um jantar árabe, mas depois a mãe não teve tempo. CARLOS E o que é que eles comem? TONI Comem batatas e arroz e passas … ANTÓNIO Tâmaras. HERMÍNIA Leite de camela. ISABEL Sem açúcar, nem chocolate – só leite …

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc ANTÓNIO O chouriço é pecado mortal, não é Guida? MARGARIDA É, é, o chouriço é pecado mortal, mas o pior diz que ainda é o fiambre. CARLOS tira o turbante e atira-o ao chão. ANTÓNIO Mustafá! Mustafá o que é que estás a fazer? CARLOS Já estou farto de ser mouro. ANTÓNIO Bah … ISABEL Tu é que sabes. CARLOS atira-se a um dos pratos de carnes e num ápice devora uma fatia de fiambre. TODOS disfarçam a boa disposição e continuam a comer. Enquanto se vêem estas imagens sobrepõe-se a voz de Carlos em adulto. NARRADOR (OFF) E nessa noite o Islão começou a parecer-me muito menos interessante. Continuava a agradar-me a ideia de vaguear pelo deserto de camelo e não me lavar e de no fim da vida ir parar a um céu cheio de chocolates, rebuçados, caramelos … Mas passar uma vida inteira sem fiambre e sem salsichas, parecia-me um sacrifício excessivo …. FUNDE C/

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CENA 002/46. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES. NOITE. DIA 05 Carlos e Toni TÓNI dorme, na outra cama. CARLOS olha o poster de Lawrence da Arábia com ar sonhador.

NARRADOR (OFF) E nessa mesma noite pedi perdão a Lawrence … e … e decidi continuar a fazer parte da Santa Madre Igreja Católica, Apostólica e Romana.

FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc CENA 002/47. INT. – CASA LOPES / QUARTO CASAL. NOITE. DIA 05 Margarida e António ANTÓNIO e MARGARIDA abrem a cama e deitam-se enquanto conversam. ANTÓNIO E não podes pedir um fato de rapaz emprestado a alguém? MARGARIDA Não vale a pena, vou ali à Rosicler, ou aos Armazéns do Chiado – eles arranjam-me lá qualquer coisa em conta. ANTÓNIO Também devias comprar alguma coisa para ti. MARGARIDA Eu cá me arranjo. Tu é que precisas de uns sapatos. ANTÓNIO Não sei, é melhor não exagerarmos. Pode acontecer-me qualquer coisa, nunca se sabe … Posso ser despedido. MARGARIDA Chega filho, ó António, já chega. Será que a gente não pode celebrar a primeira comunhão do nosso filho mais novo? A minha mãe já me deu trezentos escudos, já te disse, já podemos comprar o fato do Carlitos. ANTÓNIO (distraído) Vamos lá para a frente com essa festa. MARGARIDA Agora tu precisas de uns sapatos. Isso é que se não for a pronto, vai a prestações. ANTÓNIO (com expressão de quem está com azia) Ó, Guida, não me fales em prestações se não, não consigo dormir. MARGARIDA (sorrindo) É que é para já, é para já senhor Lopes. Abraçam-se, escondem-se debaixo do lençol e brincam animadamente.

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc PASSAGEM DE TEMPO – CENA 002/48. EXT. – RUA LOPES / PORTA PRÉDIO. MANHÃ. DIA 06 Margarida, António, Hermínia, Isabel, Toni, Carlos, Marinho, Ilda, Luís com pais e avós e Menina Emília. Transeuntes.

A FAMÍLIA sai do prédio pouco a pouco, todos com fatos domingueiros, prontos para a primeira comunhão do Carlitos e dos amigos. MARINHO e a sua mãe, ILDA, juntam-se aos Lopes e por último, de outra porta, sai o LUÍS com os PAIS e os AVÓS. Os TRÊS RAPAZES trazem na manga do casaco o habitual laço com pontas compridas e o missal na mão. Cumprimentam-se e seguem todos muito animados pela rua abaixo. A MENINA EMÍLIA como ainda está de camisa de noite e a fumar, abre apenas metade da janela para ver os seus vizinhos tão bem arranjados. Os TRÊS RAPAZES vão à frente do desfile. Sobre estas imagens ouve-se a voz de Carlos em adulto: NARRADOR (OFF) A minha mãe, como sempre, conseguiu levar a dela avante … Não sei de onde é que saiu o dinheiro, mas a verdade é que toda a gente parava para ver a família tão bem vestida e tão simpática … A mim compraram-me um fato completo de homem numa loja no Martim Moniz. Recebi a minha primeira caneta de tinta permanente e o meu primeiro livro do Emílio Salgari – foi aí que eu decidi ser pirata, mas isso é outra história. O lanche foi o mais esquisito de tudo, quando se acabaram os pastéis de nata a minha avó começou a abrir latas de sardinhas … Mas o que melhor recordo foi a emoção quando vi o meu pai de sapatos novos a brilhar e a minha mãe com um fato saia casaco feito por ela, era a mãe mais elegante de todas e a mais bonita. E, como ela dizia: “um dia, não são dias “.

FIM DE CENA –

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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp002.doc

CENA 002/99. FICHA TÉCNICA / IMAGENS DE ARQUIVO

VIDEO: Fotografias da primeira comunhão de Carlos, seguidas de fotos de primeiras comunhões diversas da época, intercaladas com fotos de velhos com os netos.

ÁUDIO: Sobre todas estas imagens deve ouvir-se apenas “A Tua Canção Avozinha” de Rocha Oliveira, cantada por Tonicha.

FIM DO EPISÓDIO

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