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... INVISÍVEIS. A Percepção da Metrópole através da Ótica de Italo Calvino .... Em As Cidades de Ítalo Calvino faremos o estudo da obra As Cidades Invisíveis,.
UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI CURSO DE DESIGN DIGITAL TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO DESNC7

A METRÓPOLE E SUAS CIDADES INVISÍVEIS A Percepção da Metrópole através da Ótica de Italo Calvino

CRISTIA NO ARBEX DOMITILA CAROLINO RAFAELA REI REGINA ALMEIDA SERGIO SCATTOLINI

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção de título de Graduação do Curso de Design Digital, da Universidade Anhembi Morumbi. Coordenação: Mônica Moura Orientadores: Marcelo Prioste e Nelson Somma Jr.

SÃO PAULO 2004

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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI CURSO DE DESIGN DIGITAL TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO DESNC7

A METRÓPOLE E SUAS CIDADES INVISÍVEIS A Percepção da Metrópole através da Ótica de Italo Calvino

CRISTIANO ARBEX DOMITILA CAROLINO RAFAELA REI REGINA ALMEIDA SERGIO SCATTOLINI

SÃO PAULO 2004

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO As Cidades Contínuas ____________________________________________ 05

1. PERCEPÇÃO DA METRÓPOLE 1.1 O desaparecimento da metrópole enquanto paisagem ___________________ 10 1.2 Cidade Real e a Cidade Mental ____________________________________ 17

2. A ESTRATÉGIA DO OLHAR 2.1 O olhar do viajante e os autóctones _________________________________ 28 2.2 O Marco Polo _________________________________________________

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3. AS CIDADES INVISÍVEIS 3.1 Propostas para uma cidade ideal __________________________________

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3.2 As Cidades de Ítalo Calvino ______________________________________ 52

CONSIDERAÇÕES FINAIS O Desejo da Paisagem Urbana ____________________________________

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BIBLIOGRAFIA _________________________________________________

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ANEXOS Biografia de Ítalo Calvino _______________________________________

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Cidades são feitas de poemas e os poemas, de pedras. Distâncias são feitas de memória, imaginação ou afastamento no espaço e no tempo. Isto para dizer que é difícil; e às vezes, impossível; Ver nosso retrato. Cidades são o nosso retrato. Projeto é aficção de um lugar. Lugar é a soma dos momentos. Narrativa é o encadeamentos dos tempos. Cidade e edifício são a narrativa dos lugares no aguardo de seus personagens.

Silvio Dworechi

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INTRODUÇÃO

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As Cidades Contínuas

“Introdução é uma peça literária bastante estranha, inventada para introduzir o leitor ao tema e sua abordagem, às vezes justificando-o, normalmente é a última a ser escrita. Ela tem a responsabilidade de ser o primeiro contato do leitor com o trabalho e para o autor, ainda imerso na confecção do todo e suas dúvidas, um grande problema, o de colocar de forma clara e sintética o tanto de idéias e relações estudadas em pesquisas durante um longo período.”

Jorge Bassani

A presente pesquisa trata da percepção da metrópole, do fato dessa percepção ser ou não importante, das preocupações de design perante a paisagem urbana e como recuperá-la, do distanciamento da memória e da materialização dos sentimentos, mostra caminhos a serem percorridos e problemas a serem resolvidos, isso tudo sendo analisado sobre a ótica do escritor Ítalo Calvino. Dar forma à cidade é um problema especial do design, a paisagem urbana pode ser algo que nos dê prazer, algo que deve ser visto e lembrado, por mais comum que seja esse panorama. Nós observadores somos de grande importância para a cidade, não somos simplesmente observadores, mas fazemos parte dela. Na maioria das vezes nossa percepção não é abrangente, mas parcial e fragmentada. Quase todos os sentidos estão em operação e a imagem é resultado dessa operação.

“A necessidade de reconhecer e padronizar nosso ambiente é tão crucial e têm raízes tão profundamente arraigadas no passado, que essa imagem é de enorme importância prática e emocional para o indivíduo.” (Lynch,1999, p.04)

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Muitos foram os escritores que tiveram a cidade como tema de sua escrita, e que se preocuparam com a percepção da metrópole, alguns citados nesta pesquisa como: Charles Baudelaire, Walter Benjamim, Paolo Sica, Maria Corti, Edgar Allan Poe e Ítalo Calvino. Quando tratamos de percepção de metrópole, Ítalo Calvino é o que mais pode traduzi-la fielmente. Em As Cidades Invisíveis afirma ter expressado a sua preocupação com os problemas urbanos da atualidade, concentrando todas suas reflexões, experiências e conjeturas sobre a vida e a arte em um único símbolo: a cidade. O livro As Cidades Invisíveis é o objeto de estudo dessa pesquisa, na qual traz discussão da percepção sensorial da cidade, uma viagem do pensamento, uma travessia para o interior, uma estratégia de olhar. As Cidades Invisíveis é uma obra separada por contos e são divididos por tipos de cidades: a cidade e a memória, a cidade e o desejo, a cidade e os símbolos e assim por diante. Através do estudo das cidades hipotéticas de Calvino relatadas por Marco Polo ao rei Kublai Khan, relacionaremos a metrópole contemporânea com suas descrições, resgatando as imagens descritas e apontando uma nova maneira de se olhar à cidade, sob a ótica de um viajante minucioso, calmo e atendo aos detalhes, com um ritmo desligado da vida rotineira e cotidiana que é vivida na metrópole. A pesquisa apresenta-se dividida em três partes importantes para o aperfeiçoamento da percepção urbana: a primeira é a Percepção da Metrópole, subdividida em: O Desaparecimento da Metrópole enquanto Paisagem e Cidade Real e a Cidade Mental, a primeira discute a imagem e sua concepção, a crise de uma cidade grande, a perda da paisagem e suas conseqüências. Já em Cidade Real e a Cidade Mental, faz-se uma relação entre elas, abordando aspectos do imaginário individual ou coletivo, que transformam a metrópole real em mental. A cidade real é aquela na qual moramos e estamos acostumados, a cidade mental é construída através do imaginário coletivo, é a cidade utópica. O segundo capítulo seria A Estratégia do Olhar que também como o primeiro se divide em: O Olhar do Viajante e os Autóctones e O Marco Polo. Já que falamos da estratégia do olhar é, pois, necessário dividir entre viajante e autóctones, num mesmo título, porque possuem olhares opostos. Cada um enxerga a cidade como lhe é disposta, o olhar do viajante é um olhar novo disposto a novas aventuras, os autóctones possuem um olhar calejado passível de novas interpretações, camuflado em hábitos e na rotina, precisam de

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motivações para que a paisagem urbana não perca suas nuances. Em Marco Polo apresentamos as diferenças de Marco Polo histórico e o Marco Polo Calviniano.Marco Polo é o personagem protagonista de As Cidades Invisíveis, um viajante mercador que nos mostra como se deve descrever e enxergar a cidade. O terceiro e último capítulo, As Cidades Invisíveis, é dividido em: Propostas para uma Cidade Ideal e As Cidades de Ítalo Calvino. Propostas para uma cidade ideal seria a relação das cinco conferências escritas por Calvino em seu livro Seis Propostas para o Próximo Milênio (Calvino enfatiza a forma e a técnica, o modo de fazer um texto pensado. Um texto que será percebido de maneiras diferentes e por pessoas diferentes.), com a idéia de cidade moderna, procuraremos relacioná-lo à metrópole apresentando uma nova forma de percebê-la. As propostas são: Leveza , Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade e Consistência que não chegou a ser escrita por causa de seu falecimento. Em As Cidades de Ítalo Calvino faremos o estudo da obra As Cidades Invisíveis, previamente apresentado no capítulo Marco Polo, analisando ponto a ponto a discussão de cidade que o autor nos apresenta e quais as formas relevantes de percepção da metrópole. A proposta do trabalho é a discussão da construção da paisagem contemporânea através da percepção, o desaparecimento da cidade enquanto paisagem e como recuperá-la, analisar a metrópole por um ponto de vista imperceptível da vida urbana, na qual resgatamos o sentido da paisagem, dos sentimentos e da memória, baseando-se em um grande escritor, Ítalo Calvino.

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PERCEPÇÃO DA METRÓPOLE

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O Desaparecimento da Metrópole Enquanto Paisagem

“Trago dentro do meu coração, como num cofre que se não pode fechar de cheio, todos os lugares onde estive, todos os portos a que cheguei, todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias, ou de tombadilhos, sonhando, e tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.” Fernando Pessoa

Quando pensamos em percepção urbana a primeira coisa que nos vem à mente é a imagem urbana. A percepção é uma forma de extrair a imagem representativa urbana. A imagem é responsável pela geração de informações, aprendizado e mudança de comportamento, é produção de informação, altera-se conforme as características socioculturais e informativas. A percepção da cidade propõe uma atuação de conhecimento e de reflexão sobre o ambiente urbano. É importante lembrar que a percepção urbana não é um dado, não se manifesta como uma certeza, mas é um processo e uma possibilidade. Pode aparecer em qualquer momento de qualquer forma. A imagem urbana enquanto representação da cidade soma-se à percepção desenvolvendo a capacidade de aprender o cotidiano. Sendo resultado de um processo entre o observador e o ambiente. O ambiente sugere situações para que o observador selecione, organize e entenda o significado daquilo que vê.

“O observador deve ter um papel ativo na percepção do mundo e uma participação criativa no desenvolvimento de suas imagens”. (Lynch, 1999, p.06).

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Para Kevin Lynch, a imagem pode ser decomposta em: identidade, estrutura e significado. Esses componentes devem aparecer sempre juntos. Uma imagem requer primeiro a identificação do objeto, o que implica a distinção das outras coisas, em segundo a imagem deve incluir a relação espacial na qual ela está inserida em relação ao observador, e por último a imagem deve conter um significado para o observador seja ele prático ou emocional. Desse modo podemos dizer como se constitui uma imagem útil, no qual não podemos aplicar a imagem urbana, apesar de ser um esquema bem estruturado, a cidade e seu significado é muito complexa. A sua complexidade se dá por usos e hábitos, que constituem a manifestação concreta do lugar urbano e o lugar é manifestação concreta do espaço. Usos e hábitos reunidos constroem a imagem do lugar, mas suas características de vida rotineira projetam uma membrana opaca que impede a sua percepção, tornando o lugar e o espaço homogêneo e ilegível, sem codificação.

(...) “Vivemos sob uma chuva ininterrupta de imagens; os media todo-poderosos não fazem outra coisa senão transformar o mundo em imagens, multiplicando-o numa fantasmagoria de espelhos – imagens que em grande parte são destituídas da necessidade interna que deveria caracterizar toda imagem, como forma e como significado, como força de impor-se à atenção, como riqueza de significados possíveis. Grande parte dessa nuvem de imagens se dissolve imediatamente como os sonhos que não deixam traços na memória” (Calvino, 2000, p. 73).

As imagens grupais tendem a ser menos consistentes e muito variadas. A desordem da realidade urbana, os modernos projetos arquitetônicos em contraste com os antigos, o comércio descontrolado que se alastra pelas ruas, fábricas poluidoras, sua desordenada e não hierárquica comunicação visual, natural e sonora, faz com que seus próprios elementos percam o seu sentido primordial. O acúmulo de subsídios vai se tornando cada vez mais opaco ao olhar, aos poucos esse emaranhado de coisas sobrepostas e elementos urbanos, designados Metrópole, desaparece enquanto paisagem, tornando-se uma paisagem invisível.

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“Entre seus inúmeros papéis, a paisagem urbana também é algo a ser visto e lembrado, um conjunto de elementos do qual esperamos que nos de prazer. Dar forma visual à cidade é um tipo especial de problema de design, e, de resto, um problema relativo recente.” (Lynch, 1999, p.12).

Em relação a esse emaranhado de coisas, a imagem pode se manifestar de diversas maneiras, na cidade real pode haver pouca coisa ordenada, mas a imagem mental terá adquirido identidade e organização através de uma longa familiaridade com o real. Uma pessoa pode ser capaz de encontrar símbolos com facilidade num espaço que para qualquer outra pessoa parece desordenado. A cidade só multiplica o diferente, onde qualquer tentativa de marco, de referência seria complicado de ser pensada e tentada.

“A crise da cidade muito grande é outra face da crise da natureza. A imagem da megalópole, a cidade contínua, uniforme, que vai cobrindo o mundo”. (Calvino, 2000, p.23).

A literatura e a arte mudaram quando as cidades se impuseram à sensibilidade moderna e ao mesmo tempo os artistas tiveram de refazer seu modo de se relacionar com o mundo diante dessa nova realidade. Essa questão do ritmo urbano delimita uma nova linguagem porque não é mais a linguagem da continuidade do narrador tradicional. O narrador que nós temos agora é o narrador de coisas descontínuas que monta ou junta coisas descontínuas, passa a trabalhar com a junção de fragmentos. A narrativa moderna é obrigada a trabalhar com fragmentos descontínuos e não mais aquela fala do narrador que emenda uma coisa na outra. O narrador tradicional tinha um ritmo, da fala e da prosa, que dependia de um tipo de fala contínua ininterrupta, que é do contador de causos daquele que emenda uma história na outra, ele conta a experiência dele e de ouvir os outros. Walter Benjamin que estudou muito essa questão na década de 30, dizia justamente sobre os narradores tradicionais, narradores de casos são sempre agricultores e marinheiros ou aquele que viaja muito que tem muitas

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histórias novas para contar. O narrador sempre mantém uma continuidade da narrativa, pois ela é formada por experiências acumuladas ao longo de muito tempo. Esse narrador clássico está em vias de desaparecimento da cidade moderna. A narrativa moderna é uma narrativa de interrupções, de montagem.

“A poesia encontra-se em todas as coisas - na terra e no mar, no lago e na margem do rio. Encontra-se também na cidade - não o neguemos - é evidente para mim, aqui, enquanto estou sentado, há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia no barulho dos carros nas ruas, em cada movimento diminuto, comum, ridículo, de um operário, que do outro lado da rua está pintando a tabuleta de um açougue. ” (Pessoa, 1910, http://www.releituras.com.br).

Muitos foram os artistas que se inspiraram na cidade como tema, mas os escritores foram os primeiros a vislumbrar na cidade moderna como um palco ideal para a observação do mundo. Entre tantos escritores podemos citar Edgar Allan Poe, Victor Hugo, Fernando Pessoa e também Charles Baudelaire, um dos precursores a qualificar a cidade moderna como elemento de grande importância de observação. Para ele a história da imagem urbana é aquela que culmina com o relato sensível das formas de observação da cidade, não em sua descrição física, mas nas passagens instantâneas culturais que a caracterizam como organismo vivo, mutante e ágil em suas relações sociais. Ítalo Calvino, renomado escritor italiano da segunda metade do século XX, relata a cidade como inesgotável existência humana, em As Cidades Invisíveis, acredita que a cidade ocupa um lugar importante no sistema de símbolos elaborados pela história da cultura, como podemos ver no trecho a seguir:

(...) “O tema da cidade dotada de vida própria revoca o tema clássico da cidade utópica, condensação geográfica e arquitetônica ideal, projeto sociológico e político reproposto ciclicamente pelo imaginário coletivo e repensado, constantemente, como meta de perfeição e receptáculo de sonhos”. (Calvino, 2000, p.23).

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Calvino afirma existir diversas maneiras de se falar sobre cidade, uma dela é descrevendo-a. Nessa descrição podemos incluir desde suas peculiares torres, pontes, bairros e feiras, como todas as informações a respeito de seu passado, presente e futuro. Mas apenas descrevendo-a, a cidade desaparece enquanto paisagem torna-se opaca ao olhar, uma simples descrição não dá conta de seus relevos, a vida latente de suas ruas, vias e praças, acabam por se tornar paisagens invisíveis. Não podemos deixar que a descrição substitua a paisagem. Na maioria das vezes, não podemos dizer nada a respeito de uma cidade além do que seus próprios habitantes repetem. O que já se disse recobre seus contornos e nuances. Nas cidades, os olhos não vêem coisas, mas figuras de coisas que significam outras coisas. Ícones, estátuas, tudo é símbolo. Contar sua história se resume em comunicar suas transformações econômicas e sociais que deixaram marcas, sinais e símbolos. Da mesma forma, devem expressar o conjunto de valores, usos, hábitos, desejos e crenças que nutrem, através do tempo, o dia-adia dos homens.

“A cada instante, há mais do que o olho pode ver, mais do que o ouvido pode perceber, um cenário ou uma paisagem esperando para serem explorados”. (Lynch, 1999, p.01).

Há pelo menos duas maneiras de se abortar uma cidade. Existe a cidade superficial racionalista aquela onde triunfa a linha reta onde o caminho que nós tomamos para chegarmos a uma determinada finalidade é o caminho da rotina da repetição do mesmo. Existe uma outra abordagem da mesma cidade que não é a abordagem da cidade superficial, mas é aquela cidade subterrânea, a cidade da memória que é a cidade labiríntica. A memória labiríntica é aquela que nos permite o acesso à cidade subterrânea que há em cada um de nós. Nos assemelhamos mimeticamente a cidade na qual vivemos, mas só temos acesso a essa cidade e a essa nossa própria história, através de uma memória involuntária, que quer dizer uma memória intencional. É o inesperado de um detalhe do

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espaço ou de um acontecimento no tempo, que pode transformar inteiramente o acesso a nossa própria história e reabrir, por exemplo, o nosso passado. A rua é um campo válido da experiência moderna, porque a rua não é um espaço abstrato, ela concentra a imagem mental, memórias e sentimentos, é um lugar onde uma guerra aconteceu, um amor acabou, algo se passou, também é testemunha de grandes acontecimentos históricos, por isso lateja forte dentro daquele que vai mapeá-la, que vai atravessá-la. A imagem mental que temos da cidade deve ter como princípio básico, a qualidade visual. Essa qualidade é condição de percepção. Abre a possibilidade de transformar a cidade num conjunto de pontos claramente registrados, marcado por um rápido reconhecimento, isso estimula a criar a imagem mental. Sem esse estímulo os olhos perdem a capacidade do olhar, acabam olhando sem ver, porque eles se tornaram dispositivos de segurança, não há tempo, essa transitoriedade, essa brevidade é que caracteriza a vida nas metrópoles. A percepção da imagem da cidade depende do impulso visual, ou seja, a percepção é condicionada pela intensidade de definições visuais, um sistema de ordem de ver, pensar a cidade e nela orientar-se. A visibilidade cria uma tensão entre a imagem codificada da cidade, é a própria realidade urbana. Ao mesmo tempo em que a imagem expõe e divulga o que deve ser visto e valorizado, esconde o urbano que se representa num cotidiano amorfo, invisível. A imagem da cidade se expõe e se esconde ao mesmo tempo. Falar sobre o reconhecimento de forma prazerosa da cidade, nos faz voltar aos depoimentos de Nelson Brissac, o escritor que tem uma maneira diferente de ver a cidade, a partir das primeiras impressões que se tem ao chegar nela, das pedras e cinzas que restam ou dos velhos cartões postais, ou ainda de seus nomes, capazes de evocar a vista, a luz os rumores e até o ar que se paira a poeira das ruas.

(...) ”o olho que transforma o muro em nuvem. (...) Dirigir o olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta. Toda uma paisagística está contida aí (...) aliviar a paisagem de todo o seu peso até fazê-la semelhante a luz da lua”. (Peixoto, 2000, p.23).

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Desse alívio do peso da imagem, fala também o escritor Calvino: “Apoiar-se no que há de mais leve...” (Calvino, 2000, p.16). Dessa forma o narrador além de suavizar a criação ou conhecimento imaginário da cidade, faz com que o receptor tente criá-la em sua mente. Nada melhor do que um olhar desacostumado para relatar e resgatar com detalhes a paisagem urbana, segundo o mesmo Brissac, esse olhar é o único capaz de ver aquilo que os que lá estão não podem mais perceber, é capaz de olhar as coisas como se fosse a primeira vez e de viver histórias originais. Contando historias simples, respeitando os detalhes, deixando as coisas aparecerem como são. A percepção e a interpretação da imagem urbana trazem informação e a possibilidade de otimização da vida na cidade. O espaço urbano é uma estrutura de linguagem que se manifesta através de sua representação, visual, olfativa, tátil, sonora e cinética. Porém o elemento que aciona essas percepções é o observador, que através do uso urbano, transforma a cidade. Essa transformação é a história do uso urbano como significado da cidade, o usuário da metrópole, pensa, deseja e despreza a relação de suas escolhas, tendências e prazeres. A transformação da cidade é a história do uso urbano escrita pelo seu usuário e o significado do espaço urbano é o desenvolvimento daquela recepção. O caminhar pela cidade, pode nos surpreender a qualquer momento desde que nós estejamos distraídos, desde que esse caminhar possa estar aberto para o inesperado. Esses lugares têm o dom da profecia, ou seja, eles são capazes de nos fazer prever a nossa própria vida no instante mesmo que nós deparamos com ele. Depende apenas do acaso que nós o encontremos ou nunca o encontremos.

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Cidade Real e Cidade Mental

“Quando eu estiver velho, gostaria de ter no corredor de minha casa Um mapa de Berlim com uma legenda Pontos azuis designariam as ruas onde morei Pontos amarelos, os lugares onde moravam minhas namoradas Triângulos marrons os túmulos Nos cemitérios de Berlim onde jazem os que foram próximos a mim E linhas pretas redesenhariam os caminhos no Zoológico ou no Tiergarten que percorri conversando com as garotas E flechas de todas as cores apontariam os lugares nos arredores onde repensava as semanas berlinenses E muitos quadrados vermelhos marcariam os aposentos Do amor da mais baixa espécie ou do amor mais abrigado do vento”.

Walter Benjamin

A formação da cidade mental está no aspecto de cenário que possui toda cidade grande ou plena de história e é dessa forma que a cidade transforma-se em cenário de idéias em um espaço mental.

“Para o uso cotidiano, seria mais do que suficiente à consciência humana comum, isto é, a metade, um quarto a menos da porção que cabe a um homem instruído do nosso infeliz século dezenove e que tenha, além disso, a infelicidade de habitar Petersburgo, a cidade mais abstrata e meditativas de todo o globo terrestre. (Existem cidades meditativas e nãomeditativas.)” (Dostoievski, 2001, p.18).

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Maria Corti esclarece esse tipo de construção imaginária: “... nasce, por exemplo, Babel como cidade infernal, Jerusalém como cidade celeste, Paris vista tanto como infernal, o reino do mal, quanto cidade paradisíaca, lugar ideal para a criação artística”.(Corti, 1993, p. 17). Para Corti não necessariamente a cidade deva ser conhecida fisicamente e sim pelo ponto de vista, que determina a fisionomia da cidade descrita, que pode, inclusive estar ausente.

“... é exatamente esta ausência que cria a repetitividade ora dos elementos positivos, ora dos negativos, tanto que várias cidades podem ser descritas como a mesma cidade, com mínimas variações; seria como dizer que a vida objetiva de várias cidades bloqueia-se numa fixidez codificada” (Corti, 1993, p. 01).

As descrições da metrópole podem ser buscadas na memória ou serem frutos dela, e assim assumem um caráter repetitivo, a imagem esta ligada à memória e ambas são repetitivas. A memória é redundante. “... repete os símbolos para que a cidade comece a existir...” (Calvino, 2003, p. 23). Um aspecto importante no livro de Calvino é que várias das cidades parecem possuir um espaço e um tempo que não coincidem com a cidade real. Por exemplo, no livro As Cidades Invisíveis, na cidade Maurília, Marco Polo visitava a metrópole ao mesmo tempo em que observa uns cartões postais ilustrados mostrando a cidade como era no passado.

“... Para não decepcionar os habitantes é necessário que o viajante louve a cidade dos cartões - postais e prefira a atual, tomando cuidado, porém em conter seu pesar em relação às mudanças nos limites de regras bem precisa: reconhecendo que a magnificência e a prosperidade da Maurília metrópole, se comparada com a velha Maurília provinciana, não restituem uma certa graça perdida, a atual, todavia, só agora pode ser apreciada através dos velhos cartões-postais, enquanto antes, em presença da Maurília provinciana, não se via absolutamente nada de gracioso, e ver-

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se-ia ainda permanecido como antes, e que, de qualquer modo, a metrópole tem este atrativo adicional que mediante o que se tornou podese recordar com saudade daquilo que foi”.(Calvino, 2003, p.30).

A cidade para Calvino não conta o seu passado, ela o contém no seu ambiente, nas ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, nos mastros das bandeiras. É feita de relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado.

“... A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contêm como as linhas da mão, escritos nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos pára-raios...” (Calvino, 2003, p. 14).

O espaço mental é constituído pelo imaginário coletivo que existe em relação à cidade, é um sinal de distância entre o mundo atualizado e os mundos possíveis. A cidade é feita também da memória coletiva. A memória coletiva transforma a cidade num mecanismo de recuperação, voltada para o presente, mas que traz consigo imagens do passado, um exemplo é a cidade de Roma que contém o presente e o passado ao mesmo tempo, a cidade está fora do tempo real, além do espaço real. O espaço mental, pertence pela sua constituição como um mito, é representado pelo coletivo através da cidade. São Paulo moderna é descrita como a cidade da beleza noturna e misteriosa, a São Paulo real se torna apagada pela São Paulo fantasma exclusivamente noturna. A separação entre a realidade de São Paulo e o imaginário coletivo que existe em relação a ela é à distância entre o atualizado e o mundo utópico. Assim como a história e a linguagem humana, a cidade está em contínua mudança, contêm inscrita em si seu passado, e essas histórias dos acontecimentos humanos deixam um sinal. Para Calvino o mundo é um livro e a cidade uma obra a ser consultada:

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“... também o mundo transformou-se em algo que eu consulto de vez em quando, eis que entre esta estante e o mundo de fora não há aquela distância que parece haver. Poderia então dizer que Paris, eis o que é Paris, é uma gigantesca obra de consulta como uma enciclopédia (...) podemos ler a cidade como o inconsciente coletivo: o inconsciente coletivo é um grande catálogo, um grande bestiário, podemos interpretar Paris como um livro de sonhos, como um álbum do nosso inconsciente, como um catálogo de monstros.”(Calvino, 1996, p.44)”.

As cidades são obras da mente ou do acaso, são constituídas por desejos e medos. O imaginário coletivo se dá através da história dos acontecimentos humanos que sempre ocorrem deixando um sinal, nós não passamos duas vezes na mesma rua sem que ela tenha mudado, portanto sem os suportes objetivos da memória há o desaparecimento de ruas, monumentos, objetos, que eram referências de nossa história, apenas a memória infantil é capaz de manter na subjetividade, na forma do segredo esse contato e esse pacto interno com uma cidade que não é mais a cidade visível, mas é a cidade invisível da sua própria memória. A criança desconhece tempo de decadência, para uma criança uma cidade nunca é decadente, por que o objeto mais recente da produção em série, é como o objeto mais antigo, dos tempos dos faraós, tanto um como o outro é visto pela criança como se fosse pela primeira vez. A cidade, não se faz e não fica com aquilo que nós gostaríamos que ela tivesse e com aquilo que nós gostaríamos que nela ficasse. A cidade não se faz com espaço, o arquiteto trabalha com o espaço, mas ele deveria trabalhar com tempo, portanto a cidade não é a ordem espacial, a cidade é a desordem das lembranças. Tomando como exemplo o pensamento de Walter Benjamin sobre a cidade e memória:

“O reconhecimento que a criança empreende do seu mundo segue os mais inesperados rastros. Um mapeamento da cidade através dos

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aparentemente insignificantes acenos – a vertigem dos caleidoscópios da feira, o piscar das árvores de natal ou a buzina do caminhão de sorvete – que ela lhe faz. Assim é que a infância ecoa, não o ressoar dos canhões, as sirenes das fábricas ou a algazarra das bolsas de valores. O que se ouve é o tinir da lâmpada de gás, o rufar da banda de música e o latido distante da rua. São esses sons, na delicadeza daquilo que é infinitamente pequeno, a que só uma criança prestaria atenção”. (Peixoto, apud, Benjamin, 1998, p.24).

Trecho extraído do livro Infância em Berlim, uma viagem ao passado, um registro de lembranças da infância e adolescência, o livro nasce na época da ditadura alemã e Benjamin se vê obrigado ao exílio, e nessas circunstâncias fixa um retrato de sua cidade natal.

“A emoção subjacente é a de uma despedida. Parece que ele não viu perspectivas para uma volta, e mesmo que voltasse, a cidade não seria mais a mesma... uma tentativa de preservar, por meio de registro escrito, a memória da cidade antes que fosse destruída... Nas palavras de Benjamin”. (Bolle, 2000, p. 317).

Em Infância em Berlim, Benjamin afirma ter se esforçado em flagrar as imagens nas quais a experiência da grande cidade se condensa numa criança de classe burguesa. O trabalho da memória é um procedimento intelectual, outro reflexivo e da emoção. Benjamin insiste no uso das palavras na qual a criança ouve e as entende pela primeira vez e nas quais se condensa no universo de suas percepções.

“A comparação entre a memória do sujeito e a tentativa de recuperação de cidades soterradas lembra uma imagem de Freud, que compara a coexistência de diversos estágios biográficos do eu, na

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memória, com as diversas feições históricas de uma cidade, das mais arcaicas até as mais recentes, no mesmo lugar“. (Bolle, 2000, p. 318).

Um outro exemplo de busca da cidade mental através da memória está no filme DogVille, produção dinamarquesa com direção de Lars Von Trie, o enredo se baseia na história de uma cidade - cenário, onde seis famílias acolhem uma mulher procurada pela máfia e em troca exigem trabalho para a melhoria da cidade. Uma de suas funções diárias era a visita às famílias. E uma das cenas, a protagonista visita um homem cego a fim de lhe fazer companhia, já que, pela sua deficiência acabou se isolando dos demais habitantes. Este homem em sua conversa tenta esconder a cegueira comentando os aspectos encontrados em DogVille, uma de suas citações é sobre a sombra da torre da igreja projetada na porta de entrada de uma loja, como se estivesse convidando o observador a entrar na venda. O personagem busca na memória, no imaginário coletivo a fuga de sua deficiência, relatando acontecimentos e sinais que havia vivido no passado. (Trie, Lars Von, DogVille, 2003).

Figura 1:A cidade de Dogville e seus personagens. Fonte: http://www.tvropa.com/Dogville/

A cidade é o centro da memória e da história, a imagem utópica que passa aos olhos e mentes dos homens. Essa passagem pela memória da utopia é um momento na recuperação do desejo da história.

“... ao princípio básico da utopia: são cidades concebidas para não existirem, que mobilizam todo o arsenal da indústria cultural e da

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informática para criar uma megaestrutura que maximiza o ambiente hightech das metrópoles contemporâneas”.(Faerman, 1996, p. 78).

A cidade é o berço privilegiado da utopia, e se buscarmos o sentido literal da palavra utopia notamos que seu significado seria em parte alguma, nenhum lugar. A utopia seria o centro, o sol da razão à maneira de Hegel. “O século XX assistiu ao esplendor da utopia”.Toda a sorte de experiências aterrorizantes com a condição humana tornam nosso século um coveiro de utopias “. (Faerman, 1996, p. 55). Há diversos aspectos da utopia como forma de pensamento humano, hipóteses que variam conforme o tempo e vão criando a história da cidade. No sonho em que, diante dos olhos de cada época, aparece em imagens aquela que a seguirá, esta última aparece intimamente ligada a elementos da proto-história, ou seja, a elementos de uma sociedade sem classes. Tais experiências, depositadas no inconsciente da coletividade, interpenetram-se com o novo, gerando a utopia que deixou seu rastro em mil configurações da vida, desde as construções duradouras até as modas fugazes. Paolo Sica explica que o pensamento utópico surge na Renascença com a elaboração mental do tipo de cidade ideal, a partir das proporções e de cálculos geométricos, a utopia literária caminha junto com os estudos dos espaços geométricos, na qual podemos observar pensamentos utópicos nas obras de Leon Battista Alberti e Filippo Brunelleschi arquitetos italianos, entre outros.(Iozzi, apud, Sica, 1998, p.60).

Figura 2: Cúpula da Catedral de Florença (Brunelleschi)/Palácio Rucellai (Alberti) Fonte: http://www.geocities.com/aula1_br/alberti-novella.html

O ponto central da reflexão sobre utopia seria, segundo Sica a presença de uma intencionalidade positivista em relação à cidade real e que a utopia nasce da necessidade de

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cessar o declínio das sociedades, tendo em vista o progresso futuro. A idéia de equilíbrio e geometria parece ser o foco principal da cidade idealizada. A forma urbana da cidade ideal seria uma forma perfeita, que se assemelha à forma de um cristal, produto de uma geometria básica. (Calvino, 2000). Podemos observar algumas discussões de utopia na obra de Calvino o método que ele emprega no livro, As Cidades Invisíveis é relacionado com o pensamento utópico, a idéia de destruição da cidade que surge uma possível nova utopia, ou seja, a idéia de uma nova cidade, uma cidade idealizada (utópica), na frase final do livro tem-se uma dupla idéia, sobre uma cidade da utopia, aquela idealizada e desejada e outra sobre a cidade infernal, na qual vivemos.

“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é o inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.(Calvino, 2003, p. 150).

A utopia literária de Calvino assume a forma de um cristal. Em sua conferência sobre exatidão, no livro Seis Propostas para o Próximo Milênio, ele afirma seu gosto pela composição geometrizante, baseada na composição ordem-desordem, representada pela imagem do cristal. Segundo o escritor, a obra literária, como todos elementos do universo, é uma porção mínima, um átomo, no qual o existente se cristaliza em uma forma, adquirindo um sentido:

“È nesse quadro que se inscreve a valorização dos processos lógico-geométrico-metafísicos que se impôs nas artes figurativas dos primeiros decênios do século, antes de atingir a literatura: o cristal poderia

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servir de emblema a uma constelação de poetas e escritores muito diversos entre si... O cristal, como seu facetado preciso a sua capacidades de refratar a luz, é o modelo de perfeição que sempre tive por emblema.”(Calvino, 2000, p. 84).

No decorrer da conversa de Kublai Khan e Marco Polo personagens do livro, percebemos dois pólos da realidade, que Kublai percebe de uma maneira mais abstrata a cidade e Marco Polo tem uma percepção mais problemática e utópica da cidade real.

“- Sim, o império está doente [afirma Polo] e, o que é pior, procura habituar-se às suas doenças. O propósito das minhas explorações é o seguinte: perscrutando os vestígios de felicidade que ainda se entrevêem, posso medir o grau de penúria. Para descobrir quanta escuridão existe em torno, é preciso concentrar o olhar nas luzes fracas e distantes. – Todavia – dizia [ Kublai ] – eis o que meu império é feito com a matéria dos cristais, e agrega as suas moléculas seguindo um desenho perfeito. Em meio à ebulição dos elementos, toma corpo um diamante esplêndido e duríssimo, uma imensa montanha lapidada e transparente. Porque as impressões de viagem se detêm em aparências ilusórias e não colhem esse processo irredutível.”(Calvino, 2003, p. 57).

Calvino busca na cidade real interpretações e soluções de uma cidade ideal, desenvolve uma discussão sobre a cidade contemporânea, em As Cidades Invisíveis, mesmo as mais arcaicas possuem um sentido se analisadas sobre a ótica de uma cidade atual. Calvino nos apresenta em sua escrita uma única maneira que lhe parece possível: exorcizar o mundo, a realidade, por meio da utopia literária, do fantástico, da inteligência, “... tornar visível o invisível, inventar cidades de acordo com as possibilidade combinatórias, buscar um ideal de leveza, um modelo de uma cidade nova que possa ser construída através da velha”.(Calvino, 2000, p.25).

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A cidade ideal que diversos literatos chamam de “cidade celeste”, para Calvino chama-se de invisível.

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A ESTRATÉGIA DO OLHAR

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O Olhar do Viajante e os Autóctones

“Diante da brisa que dispersava a fumaça, Marco pensava nos vapores que enevoavam a amplidão do mar e as cadeias das montanhas, e que, ao rarearem, tornam o ar seco e diáfano revelando cidades longínquas. O seu olhar queria alcançar o lado de lá daquela tela de humores voláteis: a forma das coisas se distingue melhor à distância”. Ítalo Calvino

Antes de entrarmos numa discussão sobre viajantes e autóctones é necessário entender o conceito da imagem e do olhar. O sentido da palavra olhar equivale à atividade da visão e a sua construção no intelecto, onde a paisagem observada se faz presente. O olhar carrega todo arsenal ideológico disponível numa sociedade. Por ser rotina de um usuário urbano não é reflexivo, mas possibilidade de reflexão, o olhar não pensa, mas abre o “existente” a determinação a determinado pensar. O real do olhar é o imaginário de cada sociedade. O olhar é sempre uma fundação etnocêntrica. É sobre o imaginário e sob essa perspectiva que o olhar se faz e atua existencialmente. A construção do olhar quando observada a paisagem complexa da metrópole se dá de acordo com o potencial de registro e posição que um observador exerce. A construção do intelecto sobre imagens visualizadas, parte das experiências, referências e aprendizado de cada indivíduo.

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“O olhar que se desperta em direção ao passado, divertindo-se e compenetrando-se nas imagens de um outro tempo, suscitadas nos materiais e nas obras que a memória impregnou, longe de constituir-se num impedimento nostálgico à história, instaura um desequilíbrio na relação com o presente, presente vivido e representado como progresso”. (Novaes, 1988, p. 21).

Na gama de definições sobre a posição do observador, levemos em consideração, o relacionamento que o expectador tem com a paisagem avistada, ou seja, se ela lhe é corriqueira ou nova, somente assim podemos traduzir a importância do olhar, sua admiração e contemplação. Dependendo da sua disposição como observante, a perda do sentido das imagens pode afetar a sua assimilação. Uma qualidade visual tomando por base relatos de Calvino, seria a clareza e a legibilidade aparente numa cidade. Uma cidade legível seria aquela cujos bairros e vias fossem facilmente reconhecíveis e agrupados num modelo geral. A legibilidade é crucial para o cenário urbano, dá uma nova forma à imagem urbana. Ainda que a clareza ou a legibilidade não seja, o único atributo importante para uma bela cidade é algo que se reveste de uma importância especial, quando consideramos os ambientes na escala urbana de dimensão, tempo e complexidade, devemos levar em consideração não apenas a cidade como uma coisa em si, mas a cidade do modo como a percebem seus habitantes (Lynch, 1999). A cidade é a multidão que troca de imagem seguindo a moda. Mas existe a imagem que permanece na memória, como um objeto da paixão para o apaixonado. Em Diário de Moscou, Benjamim nos mostra o olhar apaixonado de um filósofo sobre a cidade:

“Naquela manhã sentia-me com uma energia e por isso consegui falar de maneira sucinta e calma sobre minha permanência em Moscou e sobre suas perspectivas imensamente reduzidas”. (Almandrade, apud, Benjamim, 2000, http://www.geocities.com/a_fonte_2000/cidade.htm).

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Uma relação de paixão compartilhada com o conhecimento das imagens percebidas de uma cidade. Jean Baudrillard nos dá um exemplo de um cidadão olhando a cidade com os olhos atentos às imagens:

“Da janela, contemplei a rua como um voyeur de cidade. O trânsito, a publicidade, a multidão, o centro histórico, os monumentos e a arquitetura eram objetos para as câmeras fotográficas de turistas, como cenários sem data. Sem a imaginação o passado é a imagem engraçada, um efeito especial do cotidiano, onde tudo é repetitivo. A história neste caso, não passa de uma mercadoria para um olhar carente de um lazer cultural”. (Almandrade, apud, Baudrillard, 2000, http://www.geocities.com/a_fonte_2000/cidade.htm).

Percebe-se uma relação da imagem da cidade ligada à memória, onde tudo é repetitivo, os símbolos se repetem e o voyeur entende a cidade como objeto da história. Por outro lado, a singularidade de um espaço de um monumento ou de uma arquitetura, fascina o viajante. As imagens provocam o desejo do olhar e de viver um estado de deslumbramento, provocam a imaginação e exigem um olhar atento, um olhar de viajante, preocupado com um repertório de referências, que tenha uma sensibilidade capaz de perceber nas imagens suas histórias e suas verdades. Em As Cidades Invisíveis o protagonista seria um viajante que busca imagens que estão ligadas intimamente à sua cidade. Na literatura de Calvino surge então o tema viagem, uma estrutura de viagem através do tempo, uma viagem ligada à memória. O que sustenta o tema viagem na obra de Calvino, é o não envolvimento com o presente ou o real, o escritor procura distanciar-se de seus personagens ou de determinadas situações para melhor observá-los, o ato de olhar a distância é tranqüilizante e teoricamente necessário, pois não se corre o risco de ficar totalmente envolvido com o infinito e fragmentário do real.

“Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e que não terá”. (Calvino, 2003, p. 29).

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Analisando sob um ponto de vista filosófico, a viagem, à distância e o tempo, se envolvem; segundo o filósofo Merleau Ponty, (Iozzi, apud, Ponty, 1998, p.50), a relação de distância pressupõe sempre extensões descontínuas unificadas pelo movimento sucessivo do tempo. As viagens, portanto, estariam vinculadas aos distanciamentos não no espaço, mas as empreitadas no tempo “O viajante se diferencia porque se distancia e transforma o seu mundo” (Cardoso, 1988, p.356). O estranhamento decorrente das viagens não é relativo a um outro, mas sempre ao próprio viajante que se afasta de si mesmo, da sua familiaridade e descobre algo que não julgava ter dentro de si próprio. Essa concepção de viagem é apresentada por Marco Polo em As Cidades Invisíveis, cidades talvez invisíveis porque vista pelos olhos do presente, talvez idealizadas porque construídas pelos olhos do passado, da memória, fixadas sempre num ponto de partida. Esse processo de distanciamento de uma cidade, ou realidade familiar, visto como possibilidade de reconstrução e compreensão, no qual se refere o personagem de Calvino, baseia-se no conceito de perder-se na cidade de Benjamin. Benjamin afirma ser possível dividir os retratos de cidades em dois grupos, os dos autóctones e dos estrangeiros, que segundo ele os primeiros são minoria.

“O motivo superficial, o exótico, o pitoresco, só atrai os de fora. Para o autóctone obter imagens de sua cidade são necessárias motivações diferentes, mas profundas. Motivações de quem, em vez de viajar para longe viaja para o passado”. (Bolle, 2000, p.316).

O encontro da cidade com os homens se dá, quando estes percorrem terras desconhecidas ou quando se fazem estranhos em sua própria cidade, porque só assim conseguem descobrir onde na cidade ainda vibram sinais de vida. A maneira de olhar que os viajantes possuem permite não apenas ver as coisas ao seu redor, mas permite contemplar todos os tipos de sons, imagens e figuras correspondentes ao novo lugar. O viajante olha sobre a ótica de observar e sondar trazendo uma nova forma de percepção da metrópole aonde o conteúdo sensorial passou a ser indistingüível pelos moradores locais.

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Ao olhar a cidade como se fosse a primeira vez é possível notar as imagens que constituem a identidade do lugar e as suas características mais marcantes, são as sensações que ficam na memória do viajante, são as histórias e as imagens relatadas ao retornar. Quando falamos de viajante é importante lembrar que viajante não é turista. Seu olhar é diferente, é ainda um olhar tradicional, julga, mas não dissolve, acrescenta ao seu saber vivido os mundos fora do seu mundo. O olhar do turista é um olhar reificado no sentido de alienação, sem profundidade, olha sem se comprometer, olha sem olhar. Antes de olhar possui informações prévias do que vai conhecer e visitar, seu olhar não é instrumento do vivido e da experiência, mas da confirmação. É o olhar das coisas sobre os homens, o olhar do lazer, entretenimento, da fotografia, das férias. Não é o olhar da busca, mas o olhar do descanso das coisas, em férias. Para os autóctones a percepção da metrópole está camuflada entre hábitos, rotinas e na enxurrada de informação que é dada ao cidadão. A imagem é construída através de lembranças e impressões dos moradores, uma humanidade em trânsito permanente, recusados e aceitos na metrópole. Para eles as sensações relevantes serão um ruído, algo novo que desfie o ver cotidiano para um olhar que seja o do viajante. Perante a visão dos autóctones, a paisagem perde as suas nuances.

“O olhar metropolitano se fixa no horizonte e ao mesmo tempo espreita em torno”. (Iozzi, apud, Benjamin, 1998, p.137).

Em Flores do Mal, Baudelaire insinua a figura urbana do olhar que com ele se cruza na multidão, o olhar momentâneo, recluso e entediado da mulher que se exibe à medida que se oculta, que se nega à medida que se oferece; o bulevar é o local que permite e estimula esse olhar feito de sexo e a multidão é a espectadora, talvez desinteressada dessa posse:

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A uma passante A rua em torno era um frenético alarido. Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa, Uma mulher passou, com sua mão suntuosa Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua era-lhe a imagem nobre e fina. Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia No olhar, céu lívido onde aflora a ventania, A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz... e a noite após! _ Efêmera beldade Cujos olhos me fazem nascer outra vez, Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! Tarde demais! Nunca talvez! Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste, Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste! (Baudelaire)

Esse anônimo habitante da metrópole é recolhido por Benjamin na figura de um flâuner, estranha figura urbana que circula na Paris, capital do século XIX, como sua terra prometida (Benjamin, 1997). Em A uma passante, a prostituta era na verdade a versão feminina do flâuner, esta diferença de sexo torna visível no espaço público a posição privilegiada dos homens. O flâuner é um habitante da cidade, diferente dos autóctones, seu olhar está voltado para a imagem urbana, percorre ruas e ruas, à procura de uma visão romântica da paisagem, uma paisagem construída puramente da vida urbana. Se interessa pela cidade em geral, pelos edifícios, estações ferroviárias, salas de exposições..., no qual ele guarda em

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sua memória e esquiva-se na solidão de seu quarto, revivendo a lembrança da imagem, uma visão passageira, porém resgatada pelos quilômetros percorridos nas ruas da metrópole. O flâuner por se reservar na sua intimidade, após percorrer pelas ruas da cidade, ainda surpreende-se e choca-se perante a imagem urbana. Não está condicionado pelo hábito que automatiza a percepção e impede a apropriação da cidade pelo cidadão, essa doença a que, perplexos assistimos corroer a imagem da metrópole moderna. O que encanta Benjamin através do personagem (flâuner) de Baudelaire, é a cidade da experiência urbana assumida e, por isso, torna-se a cidade lírica que faz do poeta fisionomista da imagem urbana. Apesar de o flâuner ser um cidadão, destaca-se na multidão por ter um olhar mais atento, um olhar que se aproxima do olhar do viajante, preocupado com a paisagem urbana, com a paisagem que lhe é gravado na memória. Dessa concepção de olhar parte à narrativa de Calvino, a preocupação de preservação da imagem da cidade moderna, através de olhares preocupados com a paisagem, que tem um repertório criado através da história e da memória. Isto é apresentado em seu personagem de As Cidades Invisíveis, Marco Polo. A cidade é convertida numa paisagem, e as ruas, o universo das ruas passa a ser o lugar da experiência da literatura moderna. A cidade parece um enigma para ser decifrado. É nas ruas que se arma a matéria-prima de Calvino. Certamente essa coisa que se desdobra sobre o olhar do escritor é um poderoso estímulo para captar novos mundos e perceber o invisível que estava no ar, há um inesperado na cidade que atua com grande força. No texto abaixo, Otto Lara Resende afirma a sua preocupação com o olhar das coisas, da estratégia do olhar.

“Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou. Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente

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banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio”. (Resende, 1992, http://www.releituras.com.br). Nós não reconhecemos mais a cidade tal qual estava e reconhecemos de modo diferente, nisso se cumpre um dos lados mais notáveis da arte, no caso da literatura, que nos afasta daquilo que estamos metidos para mostrar aquilo sobre outro aspecto, vamos dizer se cumpre um “mandamento”, que é de nos tirar da realidade para nos entranhar mais profundamente nela e nos obrigar a um reconhecimento até de coisas invisíveis, coisas que não víamos antes. A literatura Calviniana nasce ligada às novas formas de vida que dependiam ou que passaram a depender do universo urbano, podemos dizer que as paisagens urbanas também são paisagens poéticas. Rostos, gestos e paisagens exigem contemplação. É preciso saber ver, aquilo que muitas vezes nos escapa, imagens que tem a beleza do pequeno gesto e das grandes paisagens. Imagens que procurem olhar o mundo nos olhos, que tentem deixar as coisas no olhar. Perceber o que faz as coisas falarem, perceber a luz, olhar o mundo como uma paisagem, algo dotado de luz, que tenha a capacidade de nos responder o olhar. Não se trata de procurar cenas naturais, mas de um modo de ver.

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O Marco Polo

“E jamais a homem algum, cristão, tártaro ou pagão, foi dado ver o que o Misser Marco Polo, filho do nobre Nicola Polo de Veneza pôde ver pelo mundo...”

Rusticiano de Pisa

Marco Polo personagem de As Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino, foi inspirado em Marco Polo narrador de O livro das Maravilhas, que originalmente foi um mercador e viajante italiano, que nasceu em Curzola, na Dalmácia (atual Croácia), na época província veneziana. Aos 17 anos acompanha o pai e o tio, ambos mercadores, em uma viagem de 24 anos ao Extremo Oriente. Por volta do ano de 1272, Marco Polo chega à China, e passa a exercer funções administrativas e diplomáticas na corte do soberano Kublai Khan, neto de Genghis Khan. Em 1295, Marco Polo volta a Veneza, com riquezas e especiarias. Três anos depois, é feito prisioneiro em uma batalha entre venezianos e genoveses. Na prisão, em Gênova, narra suas aventuras no Oriente ao escritor toscano Rustichello, que redige o Livro das Maravilhas - A Descrição do Mundo. Marco Polo torna-se famoso. Muitos de seus contemporâneos consideram seus relatos fantásticos e exagerados. O livro de Marco Polo apresenta-se ao leitor de hoje não somente como uma geografia completa de seu tempo, mas como um testemunho único que exibe aos olhos de uma Europa em crise as incomparáveis riquezas e o alto grau de civilização da Ásia. Marco Polo enterra a era dos geógrafos do lendário para inaugurar a dos exploradores e colonizadores dos tempos modernos.

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Ítalo Calvino ao reler O Livro das Maravilhas, retoma os personagens e o tempo em que se relatavam terras distantes, dando um novo sentido. Ele expõe suas reflexões referentes à literatura contemporânea, além de expressar sua preocupação com os problemas urbanos da atualidade.

“(...) é o desesperado momento em que se descobre que este império, que nos parecia à soma de todas as maravilhas, é um esfacelo sem fim e sem forma, que a sua corrupção é gangrenosa demais para ser remediada pelo cetro, que o triunfo sobre os soberanos adversários nos fez herdeiros de suas prolongadas ruínas. Somente nos relatórios de Marco Polo, Kublai Khan conseguia discernir, através das muralhas e das torres destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as mordidas dos cupins”. (Calvino, 2003, p.09).

Já O Livro das Maravilhas é visto apenas como um repertório de notícias e informações, uma tentativa de catequização. Polo, sempre preocupado em tomar precaução ou em fornecer provas de seu testemunho pessoal, relata milagres, visando provar a superioridade da fé cristã perdida entre os infiéis.

“E quando chega a Quaresma, pelo contrário, surgem peixes em grande quantidade, até ao sábado Santo, ou seja, na véspera da Páscoa da Ressurreição. De forma que, nesta época, há milagres de peixes, e no resto do ano, como vos digo, não fica nem um só”. (Polo, 1999, p.71).

O livro das Maravilhas, durante muito tempo, foi tido como uma narração fantástica, um relatório de fábulas e mentiras extraordinárias, o motivo condutor do livro seria a curiosidade apaixonada de Marco Polo pelos costumes, pela vida, as tradições, os hábitos dos inúmeros povos entre os quais ele se aventurou na sua viagem. O sentido do desconhecido, o desejo por tudo aquilo que esta além do horizonte, o interesse pelo aspecto novo. O instinto do viajante é o que movia Polo nas suas explorações, foi o primeiro homem das histórias modernas que soube viajar com os olhos abertos, tomado pelo

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entusiasmo a cada nova cidade encontrada, entusiasmo que aflora sua narrativa. Polo não alegoriza e nem moraliza, apenas registra os caminhos percorridos, que são na verdade os caminhos comerciais. Para Benjamin, narrador é aquele que possui experiências a transmitir e é o retorno do viajante para casa ou a sua saída de trânsito que permite esta transmissão.(Benjamim, 1986). O Marco Polo de Calvino, diferentemente daquele histórico, é um Marco Polo distorcido e atualizado e sua grande dificuldade parece ser a de descrever a realidade. Os relatos que apresenta a Kublai Khan são tecidos através de seu imaginário, sem uma preocupação em legitimar como autêntica e verídica as narrativas. Kublai queria a verdade, mas Marco “oferece-lhe em suas impressões de viagens, aparências ilusórias”. (Gomes, 1994, p.48). As descrições deste Polo variam com o passar do tempo. O explorador recém chegado ignora completamente as línguas da região, não podendo se expressar de outra maneira senão por gestos e pantomimas. Para Kublai Khan tais descrições conservam sempre um grau de extrema vagueza, pois as cidades evocadas parecem situar-se fora do tempo e do espaço. Mesmo diante de cidades desconhecidas, ele sempre tem muito a dizer. Tanto o Marco Polo Calviniano, como o histórico, manifestam a consciência da dificuldade do leitor em acreditar naquilo que é narrado e já nas primeiras palavras do livro, Calvino relata esta dúvida.

“Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz Marco Polo quando este lhe descreve as cidades visitadas em suas missões diplomáticas, mas o imperador dos tártaros certamente continua a ouvir o jovem veneziano com a maior curiosidade e atenção do que a outro de seus enviados ou exploradores”. (Calvino, 2003, p.09).

As Cidades Invisíveis apresenta-se como uma metáfora da memória, o mistério das cidades é rapidamente revelado pelo imperador Kublai Khan antes mesmo que Marco Polo forneça uma explicação para isso. As descrições do jovem italiano referem-se todas a

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Veneza, cidade que ele jamais nomeia. Veneza torna-se o modelo de cidade formada pelo desejo, pela saudade da infância perdida, o ponto de partida de comparação de todas as cidades descritas, todas a ela se assemelha e todas dela se diferenciam. Por isso todas as cidades descritas por Marco Polo são Veneza, viagens na memória. São reflexos das sua lembranças e sonhos sua geografia interior.

“(...) -Todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza. - Quando pergunto das outras cidades, quero que você me fale a respeito delas. E de Veneza quando pergunto a respeito de Veneza. - Para distinguir as qualidades das outras cidades devo partir de uma primeira

que

permanece

implícita.

No

meu

caso,

trata-se

de

Veneza.”(Calvino, 2003, p. 82).

O itinerário de viajem do personagem está ligado à distância entre o sonho e a realidade, procurando ter consciência de que todos os caminhos são possíveis e de que o mundo é formado por uma infinidade de fragmentos e que a cidade ideal só pode ser aprendida por meio de fragmentos.

“(...) Às vezes, basta-me uma partícula que se abre no meio de uma passagem incongruente, um aflorar de luzes na neblina, um diálogo de dois passantes que se encontram no vai e vem, para pensar que partindo dali construirei pedaço por pedaço, a cidade perfeita, feita de fragmentos misturados com o resto, de instantes separados por intervalos de sinais que alguém envia e não sabe que capta. Se digo que a cidade para qual tende a minha viajem é descontínua no espaço e no tempo, ora mais rala, ora mais densa você não deve crer que pode parar de procurá-la. Pode ser que enquanto falamos, ela esteja aflorando dispersa dentro dos confins de seu império; é possível encontrá-la, mas da forma que eu disse.” (Calvino, 2003, 149).

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Constata-se nesta concepção de utopia, subentendida nas palavras de Marco Polo, a intenção de dois pólos de pensamento que guiam grande parte da escrita do livro de Calvino, pólos estes apontados com propriedade por vários críticos de sua obra. De um lado a consciência da dissolução da idéia de totalidade, capaz de englobar homogeneamente uma visão de mundo e, de outro, a noção da possibilidade de trabalhar com o parcial, com o fragmentário, seguindo hipóteses que podem, posteriormente, ser estendidas a sistemas mais complexos. Em outras palavras, pode-se dizer que a poética de Calvino é constituída pela divergência entre a consciência e a ação, pela contemplação do mundo e pela participação ativa por meio do trabalho da escrita. Para ele, o escritor deve estar consciente da complexidade da realidade na qual vive, sem nunca renunciar ao empenho, ou pelo menos à esperança de poder transformá-la. As descrições das cidades visitadas, feitas por Marco Polo ao Gran Khan, e a sua transposição literária revelam a intencionalidade e o duplo jogo do autor, que gostaria de chegar a um novo modelo literário, não somente ideológico, mas também estrutural. A diferença essencial entre a viagem do Marco Polo e o Marco Polo Calviniano é a ausência de um itinerário preciso. A narrativa deste último salta da descrição de uma cidade para outra sem que haja nenhuma referência à ligação geográfica no percurso seguido pelo viajante. Tal omissão poderia se justificada pela imagem da cidade contínua que se estende sem limites, mas poderia também explicada pelo fato de o percurso de viagem seguido por Marco Polo em As Cidades Invisíveis relaciona-se à memória e é regido pela lógica do descontínuo, do discreto. Os dois Marco Polo trazem à tona uma questão: o episódico, o fragmentário, construído pelo olhar de um narrador sem experiências, que vive em trânsito, sem destino, que pode constituir um relato de viagem.

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AS CIDADES INVISÍVEIS

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Propostas para uma Cidade Ideal “A realidade do mundo se apresenta a nossos olhos múltipla, espinhosa, com estratos densamente sobrepostos. Como uma alcachofra. O que conta para nós na obra literária é a possibilidade de continuar a desfolhá-la como uma alcachofra, descobrindo dimensões de leitura sempre novas.” Ítalo Calvino

Propostas para uma cidade ideal trata-se de uma relação do livro Seis Propostas para o Próximo Milênio de Ítalo Calvino com a idéia de cidade moderna. O livro tem como proposta a recuperação da literatura no novo milênio. Procuraremos relacioná-lo à cidade moderna dando um novo sentido à maneira de percebê-la. Seis Propostas para o Próximo Milênio foi o último livro escrito por Ítalo Calvino, na verdade trata-se de conferências por ele escritas a pedido da Universidade de Harvard, a qual não foi apresentada, devido seu falecimento em 1985. Ele organiza suas conferências em torno de algumas categorias interpretativas: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência, (esta última não chegou a completar), virtudes descritas e endereçadas não apenas a escritores, mas a cada um de nossa existência. Calvino traça em seu livro o melhor mapa descritivo da sociedade e da cultura pós moderna.

“(...) seguramente um dos mais refinados esquemas conceituais pensados por um observador, ou cartógrafo, para penetrar no novo mundo que nos circunda e entender as forças principais que o movem” (Iozzi, 1998, p.82).

Na introdução de Seis Propostas para o Novo Milênio Calvino escreve: " Quero pois dedicar estas conferências a alguns valores ou qualidades ou especificidade da literatura que me são particularmente caros, buscando situá-los na perspectiva do novo 42

milênio". Trata-se de uma mensagem na garrafa, navegando à deriva pelo tempo, endereçada à humanidade do novo milênio. Calvino oferece para o leitor - de forma generosa e magistral -, uma reflexão sobre valores e conceitos literários que ele julga fundamentais para que a literatura siga contribuindo com o crescimento intelectual e espiritual do homem do novo milênio. Ítalo Calvino, mostra sua consciência em relação à crise pela qual passa a metrópole submetida a uma crescente inflação de imagens pré-fabricadas, e sugere alguns caminhos a serem seguidos no próximo milênio, a respeito disso Calvino diz:

“A literatura fantástica será possível no ano 2000, submetido a uma crescente inflação de imagens pré-fabricadas? Os caminhos que vemos abertos até agora parecem ser dois: 1) Reciclar as imagens usadas, inserindoas num contexto novo que lhes mude o significado. O pós-modernismo pode ser considerado como a tendência de utilizar de modo irônico o imaginário dos meios de comunicação, ou antes, como a tendência de introduzir o gosto do maravilhoso, herdado da tradução literária, em mecanismo narrativos que lhe acentuem o poder de estranhamento. 2) Ou então apagar tudo e começar do zero. Samuel Beckett obteve os mais extraordinários resultados reduzindo ao mínimo os elementos visuais e a linguagem, como num mundo de depois do fim do mundo”. (Calvino, 2000, p.111).

Para Calvino vivemos numa sociedade baseada na multiplicidade das linguagens e está sempre preocupado em prever na sociedade o aflorar de novos sentimentos e comportamentos coletivos, sempre dotados de um aparato perceptivo, tendo uma preocupação com a complexidade do mundo, a instabilidade das estruturas que sustentam as nossas sociedades, a necessidade de colocar-se a distância para entender fenômenos tão complexos. A primeira conferência é dedicada à oposição leveza e peso, argumentando em favor da leveza sem considerar o peso. Calvino considera a leveza antes um valor que um defeito e para entendermos o princípio de leveza é necessário fazer a subtração do peso, retirar o peso das figuras 43

humanas, dos corpos celestes, das cidades, sua literatura é sem duvida um exemplo disto, no qual o autor se esforça em tirar o peso da estrutura da narrativa e da linguagem. Isso se aplica à discussão de design urbano. Para obtermos imagens poéticas da cidade real, é necessário subtrairmos o peso no qual a metrópole se impõe. É preciso examinar a imagem com a realidade visual e descobrir que formas contribuem para dar maior força à imagem, de modo a surgir alguns princípios de design urbano.

“Logo me dei conta de que entre os fatos da vida, que deviam ser minha matéria-prima, e um estilo que eu desejava ágil, impetuoso, cortante, havia uma diferença que eu tinha cada vez dificuldade de superar. Talvez que só então estivesse descobrindo o pesadume, a inércia, a opacidade do mundo – qualidades que se aderem logo à escrita, quando não encontram um meio de fugir a elas”. (Calvino, 2000, p.16)

É muito difícil representarmos a idéia de leveza ilustrando-a com exemplos tirados da vida contemporânea, sem condená-la a ser objeto inatingível. Sobre isso podemos citar Milan Kundera em seu romance A Insustentável Leveza do Ser, o escritor narra o peso de viver, o romance nos mostra como tudo o que apreciamos pela leveza acaba por ser um peso insustentável.

“Se cada segundo de nossa vida deve se repetir um número infinito de vezes, estamos pregados na eternidade como Cristo cruz. Essa idéia é atroz. No mundo do eterno retorno, cada gesto carrega o peso de uma responsabilidade insustentável. É isso que levava Nietzche a dizer que a idéia do eterno retorno é o mais pesado dos fardos (das schwerste gewicht). Mas será mesmo atroz o peso e a bela leveza?” (Kundera, 2004, p.11).

Segundo Kundera, cada vez mais a sociedade parece condenada ao peso, mas não se trata de buscar a leveza no sonho, no irreal, mas sim mudar o ponto de observação “as imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e futuro, dissolver-se como sonhos...” (Calvino, 2000, p. 19).

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Podemos citar Dante Alighieri, sobre sua visão de leveza, para ele tudo se move tão rapidamente que não podemos nos dar conta de sua consistência, mas apenas de seus efeitos, tudo adquire consistência e estabilidade, o peso das coisas é estabelecido com exatidão. Dante sempre assinala o peso exato da leveza [“Como em água profunda algo pesado”] (Calvino, apud, Dante, 2000, p.27). Na metrópole tudo pode adquirir novas formas, a pulverização da realidade torna as paisagens visíveis. É como se tirássemos o peso da paisagem e tivéssemos uma visão mais leve da forma urbana. A cidade não é de modo algum perfeita, mesmo no sentido da imagibilidade mesmo no processo visual, a cidade extremamente visível é uma raridade, mas sempre há um prazer simples e automático, um sentimento de satisfação que decorre da contemplação da cidade ou da possibilidade de caminharmos pelas ruas e apreciarmos a sua leveza.

“Destacar apenas um dos elementos que compõem a cidade, e suprimi-la, é uma forma de retirar seu peso, e perceber suas diferentes camadas, os fios de diferentes materiais e cores que se entrelaçam conformando o espaço urbano. Como a cidade de Armila em As Cidades Invisíveis, Ítalo Calvino (1972), cidade sem paredes ou telhados, onde tudo foi excluído, ou nem chegou a ser construído, com exceção dos encanamentos hidráulicos, lavabos e banheiras, habitados por ninfas e naiádes.” (Velloso, CD- Rom, 2001).

Ao tratar de leveza Calvino não se contrapõe ao peso, da mesma forma como na rapidez (sua segunda conferência), não desconsidera o retardamento. O valor de rapidez para Calvino, está na literatura, onde o tempo é uma riqueza que se pode dispor com prodigalidade, a economia do tempo é uma coisa boa, porque quanto mais tempo economizamos, mais tempo podemos perder. A rapidez é nada mais que agilidade, mobilidade, desenvoltura, que se aplica à literatura propensa de divagações. O tempo é uma riqueza, que somos desprovidos. Numa época onde tudo muda incessantemente, onde as áreas metropolitanas aumentam com uma velocidade descontrolada, temos grandes problemas com a percepção urbana. O momento de

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contemplação da cidade é um ato intrínseco, no qual nos desprovemos da rapidez, mesmo ela estando no contexto. A percepção de tempo da cidade oscila entre o fluxo irreparável de coisas que se transformam e o senso do instantâneo, de um instante revelador e decisivo da sensibilidade poética nascente da modernidade, na mudança entre um tempo contínuo e um tempo descontínuo. A percepção é ora algo de um momento epifânico que se desvanece no movimento urbano, ora é uma tentativa de se resgatar objetos que foram perdidos numa espécie de museu urbano. Essa questão do ritmo urbano delimita uma nova linguagem porque não é mais a linguagem da continuidade, do narrador tradicional, o narrador que nós temos agora é o narrador de coisas descontínuas que monta, ou junta coisas descontínuas, é o narrador do cinema, que é uma arte que surge no momento das grandes cidades é o oficio do século XX, que justamente trabalha com a montagem, com a junção metonímica de partes que podem dar uma metáfora uma terceira coisa, mas que trabalha com a junção de fragmentos. A narrativa moderna é obrigada a trabalhar com fragmentos descontínuos e não mais aquela fala do narrador que emenda uma coisa na outra, de certa forma trabalha com a rapidez. Calvino termina a conferência rapidez, com uma história chinesa, que resume à idéia de rapidez e retardamento:

“Entre as múltiplas virtudes de Chuang-Tsê estava a habilidade para desenhar. O rei pediu-lhe que desenhasse um caranguejo. Chuang-Tsê disse que para fazê-lo precisaria de cinco anos e uma casa com doze empregados. Passados cinco anos, não havia sequer começado o desenho. “Preciso de outros cinco anos”, disse Chuang-Tsê. O rei concordou. Ao completar o décimo ano, Chuang-Tsê pegou o pincel e num instante, com um único gesto, desenhou um caranguejo, o mais perfeito caranguejo que jamais viu”. (Calvino, 2000, p.67).

A terceira conferência de Calvino trata-se da exatidão, na qual ele invoca dois símbolos opostos e complementares, a chama e o cristal:

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“Nesses livros científicos em que costumo meter o nariz à procura de estímulos para a imaginação, aconteceu-me ler recentemente que os modelos para o processo de formação dos seres vivos são:“ de um lado o cristal (imagem de invariância e de regularidade das estruturas específicas), e de outro a chama (imagem da constância de uma forma global exterior, apesar de incessantemente agitação interna).” (Calvino, 2000, p.84,).

A chama simboliza a constante agitação interior, enquanto o cristal seria a imagem da regularidade e da invariância. Para falar da busca da exatidão, Calvino discute a justaposição do cristal e da chama, do valor da iniciativa somado a persistência, do movimento em equilíbrio.

“A partir do momento em que escrevi esta página percebi claramente que minha busca da exatidão se bifurcava em duas direções. De um lado, a redução dos acontecimentos contingentes a esquemas abstratos que permitissem o cálculo e a demonstração de teoremas; do outro, o esforço das palavras para dar conta, com a maior precisão, do aspecto sensível das coisas”. (Calvino, 2000, p.88).

Essa tensão tão cara ao ofício de escrever, também está presente na visão de um designer para o urbano. O desafio ao designer é o de desenvolver um olhar que busque exatidão através da flexibilidade, da capacidade de se recompor e de reconfigurar. Precisamos tanto da agilidade da iniciativa, da capacidade de se modificar e de se adaptar continuamente e isso se dá para Calvino através do projeto, bem definido e calculado, a evocação de imagens visuais nítidas, memoráveis, a capacidade de traduzir as nuances do pensamento e da imaginação. Vivemos sob uma chuva ininterrupta de imagens, não se faz outra coisa senão transformar o mundo num jogo de espelhos, imagens são destituídas na maioria das vezes da necessidade interna, como forma e significado. Grande parte dessa nuvem de imagens se dissolve como sonho, e não deixam traços na memória.

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“Mas talvez a inconsistência não esteja somente na linguagem e nas imagens: está no próprio mundo. O vírus ataca a vida das pessoas e a história das nações, torna todas as histórias informes, fortuitas, confusas, sem princípio nem fim. Meu mal estar advém da perda de forma que constato na vida, à qual procuro opor a única defesa que consigo imaginar”. (Calvino, 2000, p.73).

A respeito disso, o símbolo em que Calvino mais se preocupou em buscar a exatidão, foi a cidade, foi o que permitiu a ele maiores possibilidades de exprimir a tensão entre racionalidade geométrica e o emaranhado das existências humanas.

“O que me interessa aqui é a justaposição dessas duas figuras, como um daqueles emblemas do século XVI, de que lhes falei na conferência anterior. Cristal e chama, duas formas da beleza perfeita da qual o olhar não consegue desprender-se, duas maneiras de crescer no tempo, de despender a matéria circunstante, dois símbolos morais, dois absolutos, duas categorias para classificar fatos, idéias, estilos e sentimentos. Fiz menção ainda há pouco a um partido do cristal na literatura de nosso século; creio que se poderia organizar igualmente uma lista dos partidários da chama. Quanto a mim, sempre me considerei membro do partido dos cristais, mas a página que citei não me permite esquecer o valor da chama enquanto modo de ser, forma de existência. Assim também gostaria que todos os que se considerem sequazes da chama não perdessem de vista a serena e difícil lição dos cristais”. (Calvino, 2000, p.85).

Sua escrita sempre se defrontou com duas estradas divergentes: uma que se move no espaço mental de uma racionalidade desincorporada, em que se podem traçar linhas que conjugam pontos, projeções, formas abstratas e outra que move num espaço repleto de objetos e busca criar equivalente verbal daquele espaço enchendo a página com palavras, suas pulsões distintas no sentido exatidão que jamais alcançam a satisfação completa.

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Em sua quarta conferência a visibilidade, Calvino remete a questão de como pode um escritor transmitir idéias e dar ao leitor uma visão de suas “imagens mentais”.

“Se inclui a visibilidade em minha lista de valores a preservar foi para advertir que estamos correndo o perigo de perder uma faculdade humana fundamental: a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens. Penso numa possível pedagogia de imaginação que nos habitue a controlar a própria visão interior sem sufocá-la e sem, por outro lado, deixá-la cair num confuso e passageiro fantasiar, mas permitindo que as imagens se cristalizem numa forma bem definida, memorável, auto-suficiente, icástica”. (Calvino, 2000, p.108).

Calvino afirma ter incluído a visibilidade como uma de suas propostas, com a intenção de advertir que estamos correndo o risco de perder uma faculdade humana fundamental: a capacidade de por em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas, de pensar por imagens, permitir que as imagens se cristalizem numa forma bem definida, memorável, autosuficiente, “iscástica”. A propósito de visibilidade Kevin Lynch explica que temos a necessidade de reconhecer e padronizar nosso ambiente. A visibilidade é de enorme importância prática e emocional para o indivíduo. Uma imagem nítida nos permite uma locomoção mais rápida e clara, é uma base valiosa para o desenvolvimento individual. Oferece ao seu possuidor um sentimento de segurança além de reforçar a experiência humana, é o oposto do medo que decorre da desorientação.

“Embora a vida esteja longe de ser impossível no caos visual da cidade moderna, a mesma ação cotidiana poderia assumir um novo significado se fosse praticada num cenário de maior clareza. Potencialmente, a cidade é em si o símbolo poderoso de uma sociedade complexa. Se bem organizada em termos

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visuais, ela também pode ter um forte significado expressivo”. (Lynch, 1999, p.05).

E para falar de multiplicidade, a última conferência escrita por Calvino, faremos como ele, começaremos com uma citação:

“Vadeado o rio, transposto o vale, o viajante encontra-se subitamente, diante da cidade de Moriana, com as portas de alabastro transparentes à luz do sol, as colunas de coral que sustentam frontões incrustados de serpentina, as aldeias inteiramente de vidro com aquários em que nadam as sombras de dançarinas com adornos prateados sob os lampadários em forma de medusa. Se não é a sua primeira viagem, o viajante já sabe que cidades como esta têm um avesso: basta percorrer um semicírculo e ver-se-á a face obscura de Moriana, uma ampla lâmina enferrujada, pedaços de pano, eixos hirtos de pregos, tubos negros de fuligem, montes de potes de vidro, muros escuros com escritas desbotadas, caixilhos de cadeiras despalhadas, cordas que servem apenas para se enforcar numa trave podre. Em toda sua extensão, a cidade parece continuar a multiplicar o seu repertório de imagens: no entanto, não tem espessor, consiste somente de um lado de fora e de um avesso, como uma folha de papel, com uma figura aqui e outra ali, que não podem se separar nem se encarar.”(Calvino, 2003, p. 97).

Em As Cidades Invisíveis, Calvino coloca em prática a idéia de que a linguagem nasce da exigência de formular uma imagem do mundo e ordená-lo. A multiplicidade é invocada por Calvino para discutir o romance contemporâneo, como uma enciclopédia, como um método de conhecimento e principalmente como rede de conexões entre fatos, pessoas, entre as coisas do mundo.

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“ (...) é a consciência da inconcialiabilidade entre duas polaridade contrapostas: uma, que denomina ora exatidão, ora matemática, ora espírito puro, ou mesmo mentalidade militar, e outra que chama ora de alma, ora de irracionalidade, ora de humanidade, ora de caos. Tudo o que sabe ou pensa, deposita-o num livro enciclopédico que procura manter sob a forma de romance, mas como a estrutura da obra se modifica continuamente e se desfaz em suas mãos... a impressão de sempre compreender tudo na multiplicidade dos códigos e dos níveis sem nunca se deixar envolver.”(Calvino, 2000, p.125)

O autor advoga em favor da multiplicidade dos possíveis, da percepção de cada um como combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações. Isso nos remete a questão da tolerância com as múltiplas visões do mundo. O adventos da cidade moderna, que vemos delinear-se, não faz parte apenas da cor do tempo, mas da própria forma da obra, de sua razão interna, de sua ânsia de dar consistência à multiplicidade de uma vida que nos consome. O desafio a qual nos deparamos é o de tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos códigos numa visão pluralística e multifacetada do mundo, para

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construirmos a cidade ideal. Com as cinco conferências de Calvino temos a oportunidade de transformar o nosso mundo urbano numa paisagem passível de imagibilidade, visível, coerente e clara, mas isso exige uma nova atitude dos usuários urbanos e as novas formas por sua vez devem ser agradáveis ao olhar. A forma urbana da cidade ideal é dada como perfeita, completa e racionalmente desenhada. É pura unidade, é geométrica e torna forma de um cristal. As Seis propostas para o próximo milênio inoculam anticorpos, dentro de uma "garrafa", mutação do objeto livro nos dias de hoje, lançada neste vasto oceano inconsistente em que tentamos navegar. É inquietante e talvez profético que Calvino não tenha podido escrever a sua sexta conferência, justamente sobre consistência.

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As Cidades de Ítalo Calvino “ O que é a cidade hoje, para nós? Penso haver escrito algo como um último poema de amor à cidade, no momento em que se torna muito difícil viver na cidade. Talvez estejamos nos aproximando de um momento de crise da vida urbana, e As Cidades Invisíveis são um sonho que nasce do coração da cidade invisível.” Ítalo Calvino

Com a sua escrita não-linear, Ítalo Calvino relata as cidades como o olhar de um viajante. A estrutura do texto que Calvino aplica em As Cidades Invisíveis é analisado por pesquisadores como Adriana Iozzi, que apresenta como o principal fator do livro a questão de dois pontos de vista. Um lógico e concreto e um outro sentimental, com valores emocionais e pontos sensoriais relevantes. Em As Cidades Invisíveis, os contos independem uns dos outros, mas com a mesma essência, uma visão utópica da vida urbana em que cada elemento vital está inserido dentro de um complexo sistema social, aonde o método e a maneira como esses elementos aparecem formam uma rede de informações que podem e são estudados separadamente. No livro As Cidades Invisíveis são descritas onze tipos de cidades, ou talvez, onze maneiras de se descrever uma única cidade, pois no decorrer do livro através dos relatos das cidades visitadas por Marco Polo e as descrições dele para o grande e poderoso Kublai Khan, não fica claro se os relatos são diferentes cidades ou vários aspectos do ponto de vista de uma mesma cidade. Para a análise da metrópole usaremos as cidades de Calvino sob a ótica de diferentes formas de se olhar uma mesma cidade; ou seja, separar alguns dos fragmentos da cidade, na qual não existe apenas um, mas diversas formas e pedaços desses fragmentos

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misturados em uma cidade, onde os objetos urbanos criam e caracterizam, pelo seu número o aspecto assim chamado de metrópole, onde o olhar pode seguir diversos caminhos. Em suas cidades, a maioria delas tem nomes femininos, como uma maneira de descrever o lado menos racional e costumeiro do cotidiano metropolitano e exaltar uma visão sensorial mais aguçada de elementos urbanos despercebidos aos olhos agitados e sinuosos de uma vida urbana, mas contendo em si um duplo significado, o da realidade imediatista e o da inspiração para escritores e artistas em geral. As cidades são agrupadas de cinco em cinco. Dentro de cada grupo de cidade (As cidades e a memória, As cidades e o desejo, As cidades e os símbolos, As cidades e as trocas, As cidades e os olhos, As cidades e o nome, As cidades e os mortos, As cidades e o céu, As cidades contínuas e As cidades ocultas) onde são levantados aspectos diferentes de percepção das cidades.

“- Então você deveria começar a narração de suas viagens do ponto de partida, descrevendo Veneza inteira, ponto por ponto, sem omitir nenhuma das recordações que você tem dela”. (Calvino, 2003, p. 82).

Uma das maneiras de se analisar uma metrópole, e talvez uma das mais intrigantes, é através da memória. A memória coletiva de quem vive nela ou a memória de como ela é lembrada por outras pessoas e cidades. As recordações de fatos e acontecimentos fazem reviver o tempo passado, os idosos transmitem aos mais novos o que não pode ser esquecido, as peculiaridades que ficam na memória daqueles que apenas passam, características que são próprias, incorporadas pelos autóctones e ressaltadas aos olhos do viajante. Portanto a perda da memória na paisagem urbana é a própria perda da memória dos autóctones. Em comparação ao campo, guardadas as proporções, a montanha de hoje vai ser a mesma do dia seguinte, já para um prédio a observação pode não ser a mesma. Em sua descrição de Zora, Calvino levanta o problema de se viver do passado, em uma cidade apenas de memória em oposição à evolução natural de organização e reconstrução em que uma cidade passa, ao se prender na memória passada e perder a sua capacidade de sedução e surpresa até mesmo para o viajante. Essa imutabilidade pode provocar o próprio desaparecimento da memória urbana para a formação de uma outra

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cidade no mesmo lugar, com ligações históricas, mas com acontecimentos distintos onde a memória pertence ao passado e não mais a algo intrínseco do momento real, e atual da cidade. Neste caso a cidade passa a ter um “ciclo de vida”, que pode ser considerado como as cidades contínuas, a capacidade de mudar seus elementos como os pontos de ônibus, ou seus arranha-céus, ou mesmo as suas memórias, onde no exemplo de Calvino os lixeiros resgatam as sobras físicas como metáfora as memórias do dia anterior e levam para um lugar longe aos olhos dos moradores. Como se houvesse a necessidade de se reciclar os elementos da vida urbana e que essa cidade criasse um fluxo contínuo; que a cada dia algo novo acontece e interfere não só na paisagem mas na percepção dela também; pontos de referências podem não ser mais os mesmos. As cidades contínuas não se distinguem, elas podem ser a mesma, o que uma metrópole tem; pode ser notado em outra metrópole, fazendo com que o nome e o lugar mudem, mas as sensações não, são as mesmas, a vida urbana é urbana não importando onde.

“-Não pode ser! – Gritei. – Eu também, não sei desde quando, entrei numa cidade e continuei a penetrar por suas ruas. Mas como pude chegar aonde você diz se me encontrava em outra cidade, muito distante de Cecília, e ainda não tinha saído de lá?” (Calvino, 2003, p. 139).

Para Kevin Lynch as pessoas e suas atividades são tão importantes quanto as partes físicas da cidade. Esta observação pode também ser percebida na obra de Ítalo Calvino, nas descrições de cidades como as cidades e o desejo, as cidades e os olhos e as cidades e os mortos, elas fazem do sujeito mais do que nunca o protagonista do conto, é sobre sua ótica que as cidades são relatadas. Os habitantes e as suas relativas funções na cidade tem uma importância fundamental nos contos. Ao tratar de pessoas, os sentimentos humanos como as emoções, os sonhos e os desejos são uma faceta dessa grande cidade. Os sonhos e os desejos em uma metrópole são para Calvino parte de uma armadilha. As cidades e o desejo seriam uma armadilha para aqueles que vão à sua procura ou que vejam na cidade algo de essencial para sonhar. É possível encontrar em Dorotéia,

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Anastásia, Despina, Fedora e Zobeide uma espécie de empecilho para se chegar até elas, são cidades que apenas a força do desejo é capaz de nós levar, entretanto ao alcançá-las, é como se uma outra face dessa cidade se mostra, aonde o desejo da aparência se desfez, e o seu íntimo fosse revelado. Uma armadilha, pois, à vontade de se buscar o desejo se desfaz dentro da própria cidade e o desejo, levando o sujeito a perceber que o desejo não está mais lá, mas sim aqui.

“... Anastácia desperta uma série de desejos que deverão ser reprimidos, quem se encontra uma manhã no centro de Anastácia será circundado por desejos que se despertam simultaneamente”. (Calvino, 2003, p. 16).

A busca desse desejo, que fez o sujeito transpor obstáculos para se chegar, torna em vão. Porém a cidade tem o poder de absorver os seus desejos e mostrar como seria esta cidade singular.

“Agora Fedora transformou o palácio das esferas em museu: os habitantes o visitam, escolhem a cidade que corresponde aos seus desejos, contemplam-na refletidos no aquário de medusas que deveria conter as águas do canal...” (Calvino, 2003, p. 32).

A questão de como esses desejos são criados também é abordada por Calvino. As formações desses desejos poderão ser geradas dentro da própria cidade, que impõem uma dependência aos seus cidadãos, o sujeito se vê dentro de uma armadilha do desejo.

“Anastácia, cidade enganosa, tem um poder, que às vezes se diz maligno e outras vezes benigno: se você trabalha oito horas por dia como minerador de ágatas ônix crisóprasos, a fadiga que dá forma aos seus desejos toma dos desejos a sua forma, e você acha que está se divertindo em Anastácia quando não passa de seu escravo”. (Calvino, 2003, p. 16).

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Algo é desejado, muitas das vezes pela sua aparência, que são suas imagens, e ou como essa aparência se faz aos olhos das pessoas ou observadores.

“É o humor de quem olha que dá a forma à cidade de Zemrude”. (Calvino, 2003, p. 64).

Além de formas de vistas diferentes por causa de deficiências visuais naturais como os daltônicos ou, por exemplo, os cegos que já foram citados. Existem aquelas pessoas que o olhar possui um caminho próprio, parece que a cidade induz o olhar do sujeito para determinados lugares, que podem ou não, serem algum tipo de ponto de referência. No conto da cidade de Zemrube, Calvino apresenta aquelas pessoas que hipoteticamente somente olham para cima, com o nariz empinado. Essas pessoas possuem uma cidade feita para elas, com luminosos, objetos e imagens voltados no sentido do olhar delas, são elementos que guiam o olhar e estão, onde estão, justamente para cumprir essa tarefa. Em contra ponto existem as pessoas que no imaginário de Calvino só olham para baixo, tendo uma outra visão da cidade que pode gerar uma outra percepção. Portanto, para Calvino, a visão que é fornecida pela cidade aparece de múltiplas maneiras.

“Em toda sua extensão, a cidade parece continuar a multiplicar o seu repertório de imagens: no entanto, não tem espessor, consiste somente de um lado de fora e de um avesso, como uma folha de papel, com uma figura aqui e outra ali, que não podem se separar nem se encarar”. (Calvino, 2003, p. 97).

As figuras presentes em uma cidade parecem se fixarem à paisagem como um todo, ou seja, apesar de inúmeras formas de visão desta paisagem cada detalhe presente vem a contribuir para a formação da imagem. Esta situação, somada ao espaço tempo do imaginário de Calvino, faz com que um detalhe do passado se funde as futuras imagens. É como se o presente, o passado e o futuro se misturassem e resultassem para cada indivíduo uma cosmovisão do espaço a sua volta. Nas cidades e os mortos essa situação é colocada de uma maneira especial. Em Melânia,

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Adelma, Eusápia, Argia e Laudômia, mais uma vez é mostrado o lado humano e subjetivo que a cidade pode apresentar.

“A população de Melânia se renova: os dialogadores morrem um após o outro, entretanto nascem aqueles que assumirão os seus lugares no diálogo, uns num papel, uns em outro”.(Calvino, 2003, p.76).

Ao se tratar das diferenças da cidade os fatos naturais como as diferentes formas de desenhos do céu merecem a atenção de Calvino. Em suas cidades os habitantes conseguem transformar até as formas celestes, ou seja, mais uma vez é a percepção do sujeito que faz uma forma ter ou não algum significado representativo para ele. A natureza não é de todo afastada da construção de uma cidade, o elemento do céu trás para a formação da imagem da cidade algo importante na medida que é através do céu, que se pode ter uma vista aérea e plana da distribuição urbana aonde qualquer construção pode ser percebida. A importância e o cuidado que esses elementos urbanos devem ter estão ligados à formação de uma imagem como um todo, com, por exemplo, pensar atualmente em olhar para o céu do Rio de Janeiro e não ver o Cristo Redentor é como desfigurar a cidade, no caso, a cidade perde muito a sua identidade.

“Do caráter dos habitantes de Ândria, duas virtudes merecem ser recordadas: a confiança em si mesmos e a prudência. Convictos de que cada inovação na cidade influi no desenho do céu, antes de qualquer decisão calculam os riscos e as vantagens para eles e para o resto da cidade e dos mundos”. (Calvino, 2003, p.137).

Dentre os vários aspectos descritos As cidades delgadas que Marco Polo relata são as mais enigmáticas e confusas, onde a paisagem se faz por encanamentos de água que por sua vez estão sob o domínio de ninfas e náiades. Cidades compreendidas por completo somente talvez pelo próprio Calvino, um lugar que ao caminhar agarra-se em fios de cânhamo, uma cidade vertical, com objetos pendentes.Uma imaginação fértil, que constrói uma imagem completamente utópica de um contexto urbano conhecido até hoje.

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“O fato é que não há paredes, nem telhados, nem pavimentos: não há nada que faça com que se pareça com uma cidade, exceto os encanamentos de água, que sobem verticalmente nos lugares em que deveria haver casas...” (Calvino, 2003, p.49).

Em contra ponto As cidades e os nomes e As cidades e as trocas, estão bem aparentes ao nosso alcance e entendimento. Num ambiente que as ruas, praças, viadutos, monumentos e tudo o mais que a compõe possui um nome que lhe é dado, mas que pode ser trocado, cria uma atmosfera no mínimo complexa, porém compreensível. Ao se pensar o cenário de Pirra, os elementos que a compõem, sua luz e suas ruas em linhas retas, fazem que o nome Pirra traga ao sujeito uma composição visual que caracteriza esse nome. Fazendo uma comparação da cidade com uma composição gráfica, seria dar nome a uma composição que apresentasse determina cor ou formação geométrica e para todo tipo dessa imagem fossem atribuído o mesmo nome. Portanto a cidade real concebida de nomes préestabelecidos não é difícil de se configurar, mas as trocas desses nomes por outros não convencionais formariam uma outra percepção.

“O resultado é o seguinte: a cidade que dizem possui grande parte do que é necessário para existir, enquanto a cidade que existe em seu lugar existe menos” (Calvino, 2003, p.65).

As trocas abordadas por Calvino ocorrem em diversos níveis desde a troca de meios de transportes até as trocas de olhares, e são essas ligações inesperadas que dão à cidade uma característica múltipla.

“... os habitantes de Esmeraldina são poupados do tédio de percorrer todos os dias os mesmos caminhos. E não é tudo: a rede de trajetos não é disposta numa única camada; segue um sobe-desce de escadas, bailéus, pontes arqueadas, ruas suspensas. (...) Em Esmeraldina,

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mesmo as vidas mais rotineiras e tranqüilas transcorrem sem se repetir”. (Calvino, 2003, p.83).

O mais complicado seria imaginar uma cidade oculta, que não se mostra, mas para Calvino essas cidades também precisam ser observadas com detalhe. A figura do rato ocorrentes nas cidades de Teodora ou Marósia carrega uma simbologia de um submundo escondido pelos esgotos e galerias, algo sombrio, um mundo que se esconde há maioria dos olhares. O ponto relevante dessas cidades é o fato que Calvino as coloca presentes em todas as outras cidades, porém estão ocultas, tem que se vasculhar para encontrar os elementos que não se apresentam claramente nas paisagens urbana.

“Mas o que eu queria observar é outra coisa: que todas as futuras Berenices já estão presentes neste instante, contidas uma dentro da outra, apertadas espremidas inseparáveis”. (Calvino, 2003, p.147).

Por fim, em cada uma das cidades existe algumas características que podem se converter em símbolos delas mesmas. Especificamente em As cidades e os símbolos Calvino descreve as suas cidades com uma grande riqueza de metáforas que remete a imagens que tornam o ambiente das cidades um lugar minucioso e cheio de detalhes o que ocasiona uma rica discussão da linguagem visual que a cidade pode apresentar.

“- Os símbolos formam uma língua, mas não aquela que você imagina conhecer”. (Calvino, 2003, p.48).

A linguagem que os símbolos nos oferecem para a leitura de uma metrópole pode ser manipulada ou por quem a faz, ou quem a coloca a disposição para ser vista.

“Você sabe melhor do que ninguém, sábio Kublai, que jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve”. (Calvino, 2003, p.59).

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Os objetos urbanos tendem a possuir um teor fundamentado em algum objetivo, pela sua própria formação em meios industriais e interesses capitalistas na utilização dos símbolos, a isso se soma à percepção individual de cada cidadão o que resulta em uma leitura fragmentada e encoberta pela verdadeira finalidade.

“A mentira não está no discurso, mas nas coisas”. (Calvino, 2003, p. 60).

Como será a imagem dessas cidades, principalmente para Kublai Khan, que é obrigado a criar na sua mente as imagens dessa cidades.

“Ao contemplar essas paisagens essenciais, Kublai refletia sobre a ordem invisível que governa a cidade, sobre as regras a que respondiam o seu surgir e formar-se e prosperar e adapta-se às estações e definhar e cair em decadência”. (Calvino, 2003, p. 112).

A repetição de símbolos para Calvino é algo que faz uma cidade começar a existir, a sua linguagem cria um condicionamento por repetição. As cidades com os seus símbolos lhe mostram o caminho que se deve seguir, os símbolos guiam teu olhar que se adequam a uma convivência formal e determinada. Portanto a aparição dos símbolos, a essência para construção dessas cidades embutidas em apenas uma, torna da cidade uma discussão de design, um processo de design.

“... o designer, (...). Poderia sugerir a localização ou a preservação de marcos, o desenvolvimento de uma hierarquia visual de vias públicas, o estabelecimento dos pontos nodais. Acima de tudo, lidaria com as interrelações dos elementos, com sua percepção em movimento e com a concepção da cidade como forma visível total”. (Lynch, 1999, p. 130).

A forma invisível dessas cidades torna-se aparentes durante o livro em partidas de xadrez. Entre as descrições das cidades Kublai Khan recorre frementemente ao esquema e as estratégias do jogo de xadrez para exemplificar o seu império.

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“Kublai Khan já não precisava mandar Marco Polo em expedições distantes:

detinha-o

para

intermináveis

partidas

de

xadrez.

O

conhecimento do império escondia-se no desenho traçado pelos angulosos saltos do cavalo, pelos espaços diagonais que se abrem nas incursões do bispo, pelo passo arrastado e prudente do rei e do humilde peão, pelas alternativas inexoráveis de cada partida”. (Calvino, 2003, p. 112).

Os sentidos e as imagens que As Cidades Invisíveis fornecem, são um campo inesgotável para imaginação e representação da realidade contemporânea das cidades. A idealização de se traduzir literariamente através das cidades um emaranhado sistema social, faz com que o escritor Ítalo Calvino use a escrita como única forma possível de transformar a própria realidade num reflexo, ou seja, para ele através somente da escrita foi possível demonstrar o incerto, o ambíguo, o instável e o relativo da vida urbana. Para Kevin Lynch a questão da forma visual da cidade é um problema de design, esta multiplicidade aparente nos grandes centros urbanos é algo que deve ser planejado para que o ambiente seja visível.

“O designer deve, portanto, criar uma cidade que seja pródiga em vias, limites, marcos, pontos nodais e bairros, uma cidade que use não apenas uma ou duas qualidades de forma, mas todas elas. Se assim for, diferentes observadores terão ao seu dispor um material de percepção compatível com seu modo específico de ver o mundo”. (Lynch, 1999, p. 123).

As cidades invisíveis são a junção de várias maneiras de se viver que se encontram em um mesmo lugar.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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O Desejo da Paisagem Urbana “Seja qual for o método urbanístico adotado e os objetivos propostos pelo urbanista, terá ele que partir de uma realidade existente: a cidade, conceituada como um organismo, dotada, portanto, de vida: uma estrutura complexa, suportando uma infinidade de atividades que a transformam constantemente. Para retratar essa realidade dinâmica, é preciso buscar sua compreensão, diagnosticando e prognosticando, estabelecendo uma simplificação suficiente de seus elementos componentes, a fim de estabelecer, tentativamente, quais elementos são predominantes, significativos, substantivos.”

Jorge Wilheim

A cidade, assim como o convívio social existente nela, serve de referência para discussão e opiniões de diversos pensadores e escritores contemporâneos. A conclusão a respeito da concepção e forma perceptiva de cidade não está totalmente completa, ainda tem-se muito a explorar, por conter um vasto repertório a ser discutido, torna-se fonte e objeto de pesquisa. A imagem da cidade reside, na idéia de cultura como receptáculo das multiplicidades, linguagens, saberes, pesquisas e produções. Por ser muito complexa necessita de uma análise intrínseca quanto a sua percepção. As cidades são tristes quando uma curiosidade, uma presença, ou um lugar não aquece a solidão de quem vive a abstração da vida cotidiana. Nada tem sentido. A falta sempre remete a uma espécie de deserto que desorienta o viajante solitário de seu próprio espaço. – Será que as cidades deveriam ser habitadas por imagens que desejamos e por imagens poéticas? Mas o desejo, a poesia, o riso fazem necessariamente a vida deslizar no sentido contrário, indo do conhecido ao desconhecido.

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Ítalo Calvino nos propõe uma cidade interpretada de maneira diferente, não usual, descreve uma cidade que só existe em sua mente, em sua memória, nos apresenta uma geografia fantástica, onde a vertigem do detalhe leva a mais abrangente simbologia, mergulha na trama do urbano, por entre as filigranas das relações sociais representadas por fios coloridos, que expressam, metaforicamente, redes de sociabilidade infinitas nas suas possibilidades.

“Em Ercília, para estabelecer as ligações que orientam a vida da cidade, os habitantes estendem fios entre as arestas das casas, brancos ou pretos ou cinza ou pretos e brancos, de acordo com as relações de parentescos, troca, autoridade, representação. Quando os fios são tantos que não se pode mais atravessar, os habitantes vão embora: as casas são desmontadas; restam apenas os fios e os sustentáculos dos fios. Do costado de um morro, acampados com os móveis de casa, os prófugos de Ercília olham para o enredo de fios estendidos e os postes que se elevam na planície. Aquela continua a ser a cidade de Ercília, e eles não são nada.” (Calvino, 2003, p.72).

Ao embarcarmos em suas cidades nos damos conta de uma outra realidade. A discussão semeada por Calvino traz o desejo de pensar sobre esse espaço urbano e a relação entre seus habitantes. A estratégia desta pesquisa propõe exatamente um retorno, uma revisão, um reconhecimento do usuário em relação ao seu cotidiano, a fim de que se aproprie dessas representações através da informação, dos sentimentos e da memória e crie sua própria paisagem urbana. É a tentativa de buscar na cidade uma resposta para suas questões filosóficas, buscar sua paisagem invisível ao um olhar desacostumado, passível de rotina e informação e torná-la visível. Essas paisagens só existem aos olhos de quem tente explorá-

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las, e para isso é preciso saber se pôr no lugar de observador e de observado, saber se distanciar para julgar e enxergar a paisagem urbana. Não se trata de um manual de percepção da cidade, não há regras, cada um enxerga sua cidade através de seu repertório, de seus sentimentos, do imaginário coletivo, mas, é apenas uma proposta para nos darmos conta da perda da paisagem urbana e que há possibilidades de recuperá-la. Enfrentar o desconhecido é uma tarefa difícil para o homem, principalmente quando ele vive em cidades hostis ao mundo do conhecimento.

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ANEXOS

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Biografia de Ítalo Calvino (1923 - 1985)

"Ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos” Italo Calvino

Novelista italiano, dono de um currículo literário invejável, com mais de 12 livros publicados em seu nome, além de artigos, obras teatrais e poemas. Ítalo Calvino, procurava refletir em suas obras o paradoxo da existência do homem e o universo. Acreditava, segundo um retrato próprio – publicado anos depois no Una Pietra Sopra (SILVA, 2002) – que a literatura era um grande instrumento para ajudar a humanidade a entender o seu crescimento exponencial sobre o planeta, na tentativa de torná-lo mais habitável. É sob essa idéia que desenvolve uma narrativa de múltiplas formas e temas vinculada a sua influencia pelas progressivas transformações culturais da época. O escritor italiano Ítalo Calvino não nasceu na Itália como muitos pensam, mas em Santiago de Las Vegas, em Cuba, a 15 de outubro 1923, onde seus pais estavam de passagem. Passou sua infância em San Remo. Em 1941, matriculou-se na faculdade de agronomia de Turim, mas o desenrolar da II Guerra Mundial acabou levando Calvino a participar da resistência ao fascismo. Em 1947, lançou sua primeira obra, Il Sentiero dei Nidi di Ragno, uma novela neorealista inspirada em sua participação na Resistência Italiana e na luta dos partigiani. Na mesma linha é seu segundo livro, Ultimo Viene il Corvo. São livros nos quais o pensamento da Resistência Italiana aparece em quase todas as páginas, com a narração de histórias que Calvino colheu durante sua participação nos conflitos. A forte influência do neo-realismo nos primeiros textos de Calvino se deve à predominância do movimento na Itália e à grande presença de autores como Cesare Pavese e Elio Vittotini, sem dúvida alguma os escritores mais significativos dos anos que vão de 1930 a 1950 (esta última data do suicídio de Pavese).

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Ao final da II Guerra, Calvino foi morar em Turim, onde se doutorou em Letras com uma tese sobre Joseph Conrad. Em seguida, passou a trabalhar para o jornal comunista L''Unità, depois, trabalhou como editor da Eunadi. É só a partir dos anos 50 que Calvino passa a escrever as obras que o tornariam famoso internacionalmente. Seus primeiros grandes sucessos são Visconde Partido ao Meio, Cavaleiro Inexistente e O Barão nas Árvores. Estes livros podem ser compreendidos dentro de uma tendência que podemos chamar de reformística e fantástico-iluminista. Em Visconde Partido ao Meio, conta-se a história de um homem que acaba dividindo-se em dois: um totalmente bom, outro totalmente mau; em Cavaleiro Inexistente, narra-se a história de uma cavaleiro que não existe, em seu lugar há apenas uma armadura que se diz cavaleiro; em O Barão nas Árvores, o protagonista Cosimo de Rondò, depois de se revoltar com a obrigação de tomar uma sopa de escargots, passa a viver suspenso nos ramos das árvores, "no meio do caminho entre o céu e a terra, em ótima posição de ver e julgar", segundo nos diz Luperini, no Tomo II do seu Il Novecento. Em 1956, Calvino se desliga do Partido Comunista e publica seu primeiro trabalho de literatura infantil, Quem Ficar Zangado Primeiro Perde. Neste livro o escritor também transforma a realidade em fábula. O bom humor é o objeto mágico central, que substitui as soluções tradicionais dos contos de fada, como árvores ou animais encantados. De 1959 a 1966 ele editou, junto a Elio Vittorini, a revista de esquerda Il Menabò di Letteratura, que produziu uma seqüência de importantes debates sobre o papel dos intelectuais frente à crise das ideologias e sobre o problema específico da profissão de escritor. Em 1972, publica o livro As Cidades Invisíveis, no qual o veneziano Marco Polo conta ao conquistador Kublai Khan todas as viagens que já havia feito. O livro é um desdobrar de territórios e uma viagem pelo reino da linguagem. Mostra a qualidade de um trabalho extremamente depurado que forma, ao final, uma metrópole atemporal e superpovoada de sentidos.

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Calvino mostra em As Cidades Invisíveis um império sem fim e sem forma, um domínio que se destrói e se reconstrói. São lugares que abrem, se bifurcam e nunca são iguais. Anastirma, Diomira, Dorotéia, Isaura, Maurília, Zaíra, Zenóbia e outras tantas. Suas praças, ruas, vielas, pessoas gostos e cheiros que não podem ser representados totalmente no papel, ou na voz de Marco Polo, o eterno estrangeiro."Se um viajante numa noite de inverno", publicado em 1979, é um dos mais elogiados romances de Calvino. Uma obra de ficção que empreende uma reflexão sobre a linguagem do romance, rastreando e ironizando as múltiplas direções da narrativa contemporânea. Em seu livro seguinte Palomar, publicado em 1983, Calvino afirma que ''tudo aquilo que os modelos procuram modelar é sempre um sistema de poder; mas, se a eficácia do sistema se mede pela sua invulnerabilidade e capacidade de durar, o modelo se torna uma espécie de fortaleza cujas muralhas espessas ocultam aquilo que está fora''. Em seu livro Seis Propostas para o Próximo Milênio, onde há na verdade apenas cinco propostas, o escritor fala da leveza, da rapidez, da exatidão, da visibilidade e da multiplicidade."O mais das vezes, minha intervenção se traduziu por uma subtração do peso; esforcei-me por retirar peso, ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades; esforcei-me sobretudo por retirar peso à estrutura da narrativa e à linguagem."O último livro de Calvino lançado no Brasil é Um General na Biblioteca, uma reunião de contos. Calvino morreu no dia 19 de setembro de 1985, na cidade de Siena, na Itália, aos 61 anos, de hemorragia cerebral. Italo Calvino é, talvez, o maior de todos os aprendizes de Borges. É, assim como seu mestre, um artesão das ilusões, incluindo a da originalidade. Deixou um legado que está além da delicadeza que marca suas obras. Fez uma literatura que mostra ao leitor a maneira como foi feita, que mostra a sua natureza mágica, lúdica. A obra de Calvino não esconde os truques utilizados pelo autor. É uma literatura sincera, delicada e extremamente ágil. O que a aproxima de seu criador, pois Calvino foi, apesar das muitas mudanças na carreira e nas escolhas literárias, um humanista durante toda a sua vida, mantendo sempre uma postura ética e generosa.

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Obras publicadas: Fábulas Italianas O Cavaleiro Inexistente O Visconde Partido ao Meio O Barão nas Árvores Os Nossos Antepassados As Cosmocômicas Amores Difíceis Cidades Invisíveis O Castelo dos Destinos Cruzados Marcovaldo ou As Estações na Cidade Se Um Cavaleiro Numa Noite de Inverno Palomar Sob o Sol-Jaguar O Caminho de San Giovanni Perde Quem Fica Zangado Primeiro Por que Ler os Clássicos Seis Propostas Para o Próximo Milênio - Lições Americanas Um General na Biblioteca

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