Através da análise das teorias democráticas de Aristóteles, Hans Kelsen e .....
Kelsen ao responder a questão sobre o que é justiça, deixa expresso que só ...
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Os Fundamentos da Democracia: Análise das Teorias Democráticas de Aristóteles, Kelsen e Bobbio * Patrícia da Silva França
Sumário. 1. Considerações Iniciais – 2. Aristóteles: a democracia deliberativa – 3. Hans Kelsen: a democracia procedimental – 4. Norberto Bobbio: a democracia minimalista – uma análise do nosso tempo – 5. Considerações Finais - Bibliografia “Toda consciência aspira a colocar-se como sujeito soberano. Toda consciência tenta realizar-se reduzindo a outra à escravidão. O drama pode ser resolvido pelo livre reconhecimento de cada indivíduo no outro, cada qual pondo, a um tempo, a si e ao outro como objeto e como sujeito em um movimento recíproco. Mas a amizade e a generosidade que realizam concretamente esse reconhecimento das liberdades, não são virtudes fáceis; são seguramente a mais alta realização do homem e, desse modo, é que ele se encontra em sua verdade: mas essa verdade é a de uma luta incessantemente esboçada e abolida. Ela exige que o homem se supere a cada instante.” Simone de Beauvoir
1. Considerações Iniciais
O presente trabalho parte da curiosidade acadêmica em estudar os fundamentos teóricos da democracia, uma vez que, não só o Brasil, mas a maioria dos Estados modernos possui formas de governos democráticas. O funcionamento da democracia moderna, o que se observa na realidade, é fruto de um longo debate através dos séculos. Os grandes pensadores preocupados em elaborar teorias ideais, construíram concepções de democracias baseadas em diferentes visões de mundo, e consequentemente, diferentes visões do ser humano. Através da análise das teorias democráticas de Aristóteles, Hans Kelsen e Norberto Bobbio, se tem a possibilidade de observar diferentes propostas para a constituição de uma democracia ideal, elaboradas em épocas e sob circunstâncias muito diversas. A partir do estudo é possível visualizar mecanismos e idéias que possam vir a contribuir para o aperfeiçoamento e o desenvolvimento, sempre necessário, da democracia brasileira. A democracia deliberativa idealizada por Aristóteles, a República, nasce da exposição de opiniões coletivas, opiniões que divergem e convergem instituindo um intenso
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diálogo, que almeja o alcance da verdade prática, a qual orienta toda ação política. Assim, o fundamento da democracia é a razão prática (prudência) que busca uma verdade prática. A concepção teleológica de mundo de Aristóteles deve ser observada para que se possa entender a democracia deliberativa como uma forma de governo capaz de aproximar o homem da realização do seu telos (finalidade). A democracia procedimental de Kelsen é entendida como um método capaz de criar a ordem social coletiva. A regra da maioria é característica essencial da democracia procedimental, esta permite preservar a liberdade do maior número de indivíduos da sociedade. A visão relativista de mundo justifica a democracia kelseniana, que é fundada na liberdade, já que o indivíduo é livre (autônomo) para criar suas verdades e seus valores. Bobbio parte de uma definição mínima de democracia, como conjunto de regras do jogo. Considera que a regra da maioria é simplesmente uma regra para o cálculo dos votos, que não pode ser considerada como um ideal no qual se sustenta um sistema democrático. O ideal que realmente sustenta um sistema democrático é a supremacia do poder ascendente. Este ideal só poderá ser realizado onde existir o sufrágio universal. . Bobbio identifica três espécies de limites do princípio da maioria: o limite de validade, os limites de aplicação e os limites de eficácia. Finalmente, passa-se a observar a lúcida análise feita por Bobbio acerca dos ideais democráticos e a efetiva realização destes ideais, isto é, uma análise do que foi prometido e do que de fato foi realizado. Entendemos que o estudo deste ponto particular da obra de Bobbio é de enorme relevância prática, especialmente em país como o Brasil que está paulatinamente se desenvolvendo e se aperfeiçoando como um Estado democrático.
2. Aristóteles: a democracia deliberativa
A prudência (phronesis) ou razão prática é o saber que possibilita orientar-se na busca da ação correta, é o saber que encontramos na política e na moral, e se preocupa com o que fazer em um determinado momento, aqui e agora. A prudência é o saber que nasce do ensino e da experiência. Lembrando Homero “quem delibera não é o valente Aquiles, mas o prudente Ulisses” 1, a ação política deve ser orientada pela prudência, como ensina Aristóteles:
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Idem, p. 44.
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(...) a sabedoria prática relaciona-se com as coisas humanas, e coisas que podem ser objeto de deliberação; com efeito, dizemos que deliberar é acima de tudo a função do homem dotado de sabedoria prática, aliás, deliberar bem; no entanto ninguém delibera sobre coisas invariáveis, nem sobre coisas cujo fim não seja um bem que possa ser obtido pela ação. Delibera bem, no sentido absoluto da palavra, o homem que visa calculadamente ao que há de melhor para os homens, naquilo que é atingível pela ação 2.
A democracia deliberativa encontra seu fundamento na razão prática ou prudência, onde os cidadãos reunidos expõem suas opiniões, estabelecendo um diálogo racional, para deliberar sobre as ações e as decisões coletivas futuras. “A deliberação consiste em combinar meios eficazes em vista de fins realizáveis. É assim, pois, que o futuro se abre para nós” 3. A ação política para Aristóteles é a mesma coisa que a razão prática (prudência), porém com essência diferente, assim a prudência é a razão que orienta o agir individual, e a política o agir em relação a toda sociedade cívica4. A ação política racional deve ser guiada pela prudência. A concepção teleológica de mundo de Aristóteles deve ser observada para que se possa entender a democracia deliberativa como uma forma de governo capaz de aproximar o homem da realização do seu telos (finalidade). O homem em sua essência é um animal racional e social, é o “animal cívico”. Como Aristóteles refere na obra Política:
Assim, o homem é um animal cívico, mais social do que as abelhas e os outros animais que vivem juntos. A natureza, que nada faz em vão, concedeu apenas a ele o dom da palavra, que não devemos confundir com os sons da voz. Estes são apenas a expressão de sensações agradáveis ou desagradáveis, de que os outros animais são, assim como nós, capazes. A natureza deu-lhes um órgão limitado a este único efeito; nós, porém, temos a mais, senão o conhecimento desenvolvido, pelo menos o sentimento obscuro do bem e do mal, do útil e do nocivo, do justo e do injusto, objetos para a manifestação dos quais nos foi principalmente dado o órgão da fala. Este comércio da palavra é o laço de toda sociedade doméstica e civil 5.
A essência humana é o que define o seu telos (finalidade), assim a vida humana tem por objetivo o desenvolvimento do telos. O bem comum é o conjunto de condições materiais e morais, que torna possível a cada membro da coletividade desenvolver plenamente a sua essência (racionalidade e sociabilidade). Para que a vida humana venha a ser bem sucedida, ela deve estar sempre em busca da realização do telos. Assim, também a prudência 2
Aristóteles. Ética a Nicômanos. 1141b. Aubenque, Pierre. A Prudência em Aristóteles. 1ª ed., São Paulo: Discurso Editorial, 2003, p.182. 4 Barzotto, Luis Fernando. A Democracia na Constituição. 1ªed., São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, p.57. 5 Aristóteles. Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 3ªed., São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 5. 3
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tem uma contextura teleológica, ou seja, a busca pela ação correta em um determinado momento, visando o futuro, se dá de acordo com a realização do telos. “A ação correta é aquela que aproxima o homem à realização da sua finalidade, a eudaimonia, a vida boa para o homem, a vida feliz” 6. Conforme o exposto, o ser humano dotado de razão prática (prudência), sabe deliberar, e por isso, torna-se cidadão na democracia deliberativa, teleológica, de Aristóteles:
Quanto à sabedoria prática, poderemos chegar à sua definição considerando as pessoas que são dotadas dessa virtude. Julga-se que seja característica de um homem dotado de sabedoria prática ser capaz de deliberar bem acerca do que é bom e conveniente para ele, não sob um aspecto particular (...), mas sobre espécies de coisas que contribuem para a vida boa de um modo. Isso fica claro pelo fato de atribuirmos sabedoria prática a um homem, quando ele calculou bem visando a alguma finalidade boa (...) 7.
A prudência está presente na democracia deliberativa, a República, que é o governo dos muitos, portanto, esta é a forma de governo que possibilita a maior participação dos cidadãos nas deliberações acerca da administração dos negócios públicos. Assim, Aristóteles é enfático em prol dos muitos, que a seu ver, são superiores à elite. A maioria é a mais indicada ao exercício do poder soberano, já que individualmente cada um tem uma parcela de bondade e prudência, e quando reunidos, coletivamente, podem assumir uma só personalidade quanto às faculdades morais e intelectuais. Para concretizar um ideal de democracia deliberativa, esta maioria deverá ser a classe média, já que é a classe que mais facilmente age de acordo com a razão. O que vale ressaltar quanto ao critério valorativo utilizado por Aristóteles para designar os bons e maus governos, é que este está diretamente ligado ao conceito de polis. A polis é a comunidade criada para buscar o bem comum, em outras palavras, o objetivo dos indivíduos ao se reunirem na polis é “viver bem”. Assim, pelas palavras de Aristóteles:
É obvio, então que as constituições cujo objetivo é o bem comum são corretamente estruturadas, enquanto as que visam apenas o bem dos próprios governantes são todas defeituosas e constituem desvios das constituições corretas; de fato, elas passam a ser despóticas, enquanto a cidade deve ser uma comunidade de homens livres 8.
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Barzotto, Luis Fernando. A Democracia na Constituição. 1ªed., São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, p.43. Aristóteles. Ética a Nicômanos. 1140a. 8 Aristóteles. Política. 1279a. 7
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O que chama a atenção na definição da república aristotélica é que ela se forma mesclando dois regimes maus 9, a saber, a oligarquia e a democracia. Assim, vale referir que o critério que distingui a oligarquia da democracia não é quantitativo, mas qualitativo, ou seja, o critério é a diferença entre ricos e pobres10. Neste sentido, Aristóteles: “Só os Estados mistos consideram ao mesmo tempo os ricos e os pobres, a opulência e a liberdade (...)” 11.
(...) o que difere a democracia da oligarquia é a pobreza e a riqueza; conseqüentemente, onde quer que os governantes exerçam o poder por causa da riqueza, sejam eles minoria ou maioria, ter-se-á uma oligarquia, e onde os pobres governarem ter-se-á uma democracia12.
A república é a mescla entre dois regimes. O homem prudente é capaz de deliberar com vista ao bem viver em geral, é através do discurso político, da troca de opiniões com seus semelhantes, que alcançará a decisão correta. Somente a forma de governo fundada em concordância com a natureza humana, ou seja, que possibilite ao homem realizar-se como animal social e racional, com vista ao bem comum, pode oferecer as condições para a vida boa (eudaimonia). A república, a democracia deliberativa de classe média, é o governo dos muitos, assim, proporciona as possibilidades do desenvolvimento da razão prática, e é a forma de governo que visa o bem comum, por isso, fornece as condições para os cidadãos alcançarem a vida boa. A república é o governo racional que se pode e se deseja realizar. Segundo o critério qualitativo, a oligarquia é o governo dos ricos, a democracia, o dos pobres, e a república, o da classe média. A república é o governo misto inspirado no ideal da Ética aristotélica, a “mediação”, que se funda em um valor elevado e positivo de tudo o que está entre dois extremos13.
(...) se dissemos com razão na Ética que a vida feliz é a vivida de acordo com os ditames da moralidade e sem impedimentos e que a moralidade é um meio termo, segue-se necessariamente que a vida segundo este meio termo é a melhor – um meio termo acessível a cada um dos homens 14.
O critério anteriormente citado (a “mediação”) é utilizado por Aristóteles para definir qual a melhor classe de cidadãos para deliberar, e esta é a classe média, já que está 9
Bobbio, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Tradução de Sérgio Bath. 10ªed., Brasília: Editoria Universidade de Brasília, 1997, p.60. 10 Idem, p.60-61. 11 Aristóteles. Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 3ªed., São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 114. 12 Aristóteles. Política. 1280a. 13 Bobbio, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Tradução de Sérgio Bath. 10ªed., Brasília: Editoria Universidade de Brasília, 1997, p.62. 14 Aristóteles. Política. 1295 b.
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entre os dois extremos (ricos e pobres): “É igualmente claro que a comunidade política administrada pela classe média é a melhor, e que é possível governar bem as cidades nas quais a classe média é a mais numerosa (...)” 15. Aristóteles, ainda constata que os melhores legisladores eram membros da classe média: “Um poderoso argumento a favor da mediocridade é que os melhores legisladores foram cidadãos de média fortuna. Sólon declara-se tal em suas poesias (...)” 16. A razão prática é o fundamento de toda a ação política, neste sentido Aristóteles acredita que a classe média possui as melhores condições para o exercício da razão prática. Já que os mesmos possuem a virtude de um bom cidadão: “virtude de um cidadão consiste na capacidade de bem governar e de bem obedecer” 17. O cidadão da classe média sabe ordenar, diferentemente dos pobres que estão sujeitos à submissão, e que por isso não se deparam com situações de tomada de decisão, ou seja, não se utilizam da razão prática (saber que possibilita orientar-se em busca da ação correta) 18. Ainda, os membros da classe média sabem obedecer, diferente dos ricos que só fazem mandar e não estão acostumados a obedecer: “Desde a infância, são tomados por essa arrogância doméstica e a tal ponto corrompidos pelo luxo que desdenham na escola até mesmo escutar o professor”
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. A classe média é a melhor classe
para governar, pois sabe ordenar e obedecer, utilizando-se melhor da razão:
(...) é sem dúvida melhor desfrutar moderadamente de todos os bens proporcionados pela sorte, pois nessa condição de vida é mais fácil obedecer a razão. (...) a classe média é menos propensa a fugir ao exercício de funções públicas ou busca-las sofregamente, e ambas estas atitudes são prejudiciais à cidade20.
A estabilidade gerada pelo governo da classe média, a república ou democracia deliberativa, é o que fundamenta a vantagem do regime21. O cidadão medíocre não sofre insurreições, já que não cobiça as coisas dos outros, como os pobres, e nem mesmo atraí inveja, como os ricos. Para Bobbio, o critério da estabilidade é central nas reflexões históricas acerca da forma de governo, e é o que permite diferenciar o bom e o mau regime:
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Idem, 1296 a. Aristóteles. Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 3ªed., São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 190. 17 Aristóteles. Política. 1277. 18 Barzotto, Luis Fernando. A Democracia na Constituição. 1ªed., São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, p.62. 19 Aristóteles. Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 3ªed., São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 188. 20 Aristóteles. Política. 1295 b. 21 Bobbio, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Tradução de Sérgio Bath. 10ªed., Brasília: Editoria Universidade de Brasília, 1997, p. 62. 16
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Chamamos a atenção do leitor para este tema: a estabilidade. Um tema verdadeiramente central na histórica das reflexões acerca do “bom governo”, pois um dos critérios fundamentais que permite distinguir (ainda hoje) o bom governo do mal é sua estabilidade. O que faz com que a mistura de democracia e oligarquia seja boa (...) é justamente o fato de que está menos sujeita às mutações rápidas provocadas pelos conflitos sociais – os quais, por sua vez, resultam da divisão muito nítida entre classes contrapostas22.
De acordo com a visão de mundo teleológica de Aristóteles, a democracia deliberativa (a república) é a forma de governo que mais se assemelha à natureza humana, por isso é a mais natural. Assim, este regime é o que melhor se relaciona com a essência humana, pois é também, a essência da polis. O homem por natureza é um animal racional e político, e somente através de um governo dos muitos, vinculado com a razão prática (prudência) estabelecida através do diálogo democrático, é que se pode garantir um governo que satisfaça o ideal de vida humana que é o telos, ou seja, que é o bem dos homens, assim: “O homem é, por natureza, um animal democrático” 23. A democracia deliberativa de classe média é a melhor forma de governo, já que, proporciona as melhores condições sociais e econômicas para a realização da razão prática. Assim, o homem encontra um caminho para a plena realização de sua essência, como ser racional e político, o que possibilita todas as condições para ele viver bem e feliz.
3. Hans Kelsen: a democracia procedimental
A democracia procedimental é entendida como um método capaz de criar a ordem social coletiva, ou seja, esta é a forma de governo que prevê regras e procedimentos que possibilitam aos cidadãos tomarem decisões. Estas regras não dizem respeito ao conteúdo das decisões, mas operam de forma a estabelecer quem são os cidadãos aptos a decidir e de que forma se realizam tais decisões: “(...) a democracia é apenas uma forma, apenas um método de criação da ordem social (...)” 24. A regra da maioria, assim entendida, é característica essencial da democracia procedimental, e é ela que preserva a liberdade do maior número de indivíduos da sociedade. O homem, para Kelsen, é um indivíduo anti-social e auto-interessado por natureza, assim, naturalmente o homem exige liberdade, querendo impor sua vontade para satisfazer seus
22
Idem, p. 62. Barzotto, Luis Fernando. A Democracia na Constituição. 1ªed., São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, p.82. 24 Kelsen, Hans. A Democracia. 1ª ed., São Paulo: Editora Martins Fontes, 1993, p. 103. 23
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próprios interesses, acaba por se opõr ao poder coercitivo do Estado. Entendendo que a vida em sociedade é necessária, e que para tal deve haver um poder que regule as relações humanas, esta liberdade natural deve sofrer uma modificação, assim: “A liberdade natural transforma-se em liberdade social ou política”
25
. A liberdade social é entendida como
autodeterminação, ou seja, dispõe da liberdade aquele que obedece às leis as quais estão em conformidade com sua vontade. Como é impossível conciliar todas as vontades individuais com a ordem social: “(...) a existência da sociedade ou do Estado pressupõem que possa haver discordância entre a ordem social e a vontade individual”26; a regra da maioria procura a “ maximização da liberdade”27. Vale ressaltar que o valor igualdade está ligado ao valor liberdade, mas é entendido como secundário28: “É o valor de liberdade e não de igualdade que determina, em primeiro lugar, a idéia de democracia”
29
. O valor igualdade na
democracia procedimental é uma idéia formal, ou seja, é a igualdade dos direitos políticos: “(...) uma vez que todos devem ser livres na maior medida possível, todos devem participar da formação da vontade do Estado e, consequentemente, em idêntico grau” 30. Kelsen realiza uma analogia entre teoria política e partes da filosofia (a epistemologia e a teoria dos valores). Na teoria de Kelsen, em última análise, existem duas formas de Estado antagônicas: a democracia e a autocracia. E na filosofia, na esfera da epistemologia e da teoria dos valores, existe o antagonismo entre absolutismo filosófico e relativismo filosófico. Assim, segundo Kelsen:
(...) não existe apenas um paralelismo externo, mas uma relação interna entre o antagonismo autocracia/democracia, por um lado, e absolutismo filosófico/relativismo filosófico, por outro; que a autocracia como absolutismo político está coordenada com o absolutismo filosófico, enquanto a democracia, como relativismo político, está coordenada com o relativismo filosófico” 31.
O absolutismo filosófico acredita na existência de uma realidade absoluta, realidade esta que vai além das possibilidades de conhecer da mente humana: “(...) sua existência está além do espaço e do tempo, dimensões às quais se restringe o conhecimento
25
Kelsen, Hans. A Democracia. 1ª ed., São Paulo: Editora Martins Fontes, 1993, p. 28. Idem, p. 30. 27 Bobbio, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. 6ª ed., Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000, p. 435. 28 Barzotto, Luis Fernando. A Democracia na Constituição. 1ªed., São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, p. 133. 29 Kelsen, Hans. A Democracia. 1ª ed., São Paulo: Editora Martins Fontes, 1993, p. 99. 30 Idem, p. 99. 31 Idem, p.161. 26
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humano”
32
. Uma realidade absoluta pressupõe uma verdade absoluta e valores absolutos,
assim, existe uma razão sobre-humana, ou divina, criadora da realidade e detentora da verdade, e para que haja um juízo verdadeiro, não deve apenas existir de um ponto de vista da razão humana, mas remeter a uma existência absoluta 33. “A existência absoluta é idêntica à autoridade absoluta enquanto fonte de valores absolutos”
34
. Desta forma, existem valores
absolutos, que não estão condicionados ao sujeito que julga, mas são estabelecidos por uma autoridade absoluta, sendo estes valores inerentes à realidade que é entendida como: “criação e emanação do bem absoluto” 35. Esta posição epistemológica acaba por subordinar o sujeito ao objeto de conhecimento: “(...) a função do conhecimento é simplesmente refletir, como um espelho, os objetos que existem em si mesmos”
36
. Os objetos irão sempre existir, assim, o homem,
através de sua experiência sensitiva e racional, pode apenas ter uma idéia vaga e superficial do objeto, como o refletir de um espelho: A importância decisiva desta comparação da cognição humana com um espelho repousa no fato de que o mundo verdadeiro e real está além do espelho, isto é, além da cognição humana, e que, seja o que for que seja compreendido em sua moldura - o mundo tal como o homem o experimenta com os seus sentidos e a sua razão -, é apenas aparência, apenas o pálido reflexo de um mundo superior, transcendente37.
Com isso, é possível identificar a ligação entre a filosofia absolutista e a autocracia, já que nesta os indivíduos estão subordinados a uma autoridade que se diz única detentora da vontade divina, e por isso conhece a verdade absoluta e os valores absolutos:
(...) diante da autoridade do bem absoluto que tudo domina, aos que recebem a salvação desse bem só cabe a obediência, obediência incondicional e grata àquele que, de posse do bem absoluto, conhece e quer tal bem; uma obediência que, sem dúvida, só pode estar apoiada na crença de que a autoridade do legislador tem posse do bem absoluto do mesmo modo como, em sentido inverso, admite-se que o conhecimento desse bem seja proibido à grande massa dos súditos38
32
Idem, p. 164. Idem, Ibidem. 34 Idem, Ibidem. 35 Idem, Ibidem. 36 Idem, p.165. 37 Kelsen, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3ª ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1998, p. 600. 38 Kelsen, Hans. A Democracia. 1ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 104. 33
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O relativismo filosófico acredita que a realidade pode ser conhecida pelo homem, e vai além, dizendo que a realidade somente existe “na esfera do conhecimento humano”
39
. Assim, a realidade cognoscível é relativa ao sujeito cognoscente, portanto, o
homem através de seu conhecimento cria seu mundo. Ora se o homem é criador de seu mundo, não se pode falar em verdade absoluta e valores absolutos, mas somente, em verdades relativas e valores relativos:
(...) a opinião de que o conhecimento humano só tem acesso a verdades relativas, a valores relativos, e, por conseguinte, qualquer verdade e qualquer valor – assim como o indivíduo que descobre – devem estar prontos para se retirar a qualquer momento e deixar lugar a outros valores e outras verdades, leva a concepção criticista e positivista do mundo, entendendo-se com isso aquela direção da filosofia e da ciência que parte do positivismo, ou seja, do dado, do perceptível, da experiência, que pode sempre mudar e que muda incessantemente, e recusa, portanto, a idéia de um absoluto transcendente a essa experiência40.
A epistemologia relativista kelseniana é claramente influenciada pelo pensamento de Kant, inclusive, Kelsen deixa isso expresso em sua obra: “(...) a epistemologia relativista, na apresentação mais consistente que dela faz Kant, interpreta o processo de conhecimento como criação do objeto” 41. O relativismo filosófico separa definitivamente realidade e valor. Entendendo que, qualquer opinião valorativa é baseada em sentimentos, em fatores emocionais, por isso, carece de objetividade. Assim, toda opinião valorativa não pode ser baseada em um conhecimento racional da realidade. Se todo juízo de valor é subjetivo, ninguém poderá se dizer detentor de valores absolutos, da mesma forma, que ninguém poderá considerar seus valores superiores aos de outrem. O que irradia desta concepção axiológica é que a opinião individual não sendo a única possível, determina que se leve em consideração, e que se respeite, também a opinião alheia, daí o sei estreito vínculo com a democracia:
A democracia julga da mesma maneira a vontade política de cada um, assim como respeita igualmente cada credo político, cada opinião política, cuja expressão, é a vontade política. Por isso a democracia dá a cada convicção política a mesma possibilidade de exprimir-se e de buscar conquistar o ânimo dos homens através da livre concorrência 42.
39
Idem, p. 164. Idem, p. 105. 41 Idem, p. 165. 42 Idem, p.105. 40
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O que pode parecer é que uma concepção relativista de valores acaba por ser amoral, ou até mesmo imoral. Kelsen responde: “O princípio moral que fundamenta – ou do qual se pode deduzir – uma doutrina relativista de valores é o princípio da tolerância (...)” 43. Tolerância existe no campo de ação do ordenamento jurídico positivo, o qual não permite o uso da violência, devendo possibilitar a discussão intensa e pacífica. “Se a democracia é uma forma de governo justa, ela só o é por significar liberdade, e liberdade significa tolerância” 44
. Afirmar que alguma coisa é justa ou injusta é sempre um juízo de valor, e como
todo o juízo de valor é subjetivo, não será possível que a justiça seja entendida como absoluta. Kelsen ao responder a questão sobre o que é justiça, deixa expresso que só existe uma justiça relativa, e assim responde o que ele entende por justiça:
Uma vez que a ciência é minha profissão e, portanto, a coisa mais importante em minha vida, trata-se daquela justiça sob cuja proteção a ciência pode prosperar e, ao lado dela, a verdade e a sinceridade. É a justiça da liberdade, da paz, da democracia, da tolerância45.
A realidade vira objeto de conhecimento através de um processo racional de conhecimento, o qual é determinado por normas que emanam da mente humana. O sujeito cognoscitivo é livre para conhecer e se autodetermina no processo racional. Através do processo racional de conhecimento, o homem cria enunciados sobre a realidade verificáveis por fatos objetivos, diferente de um juízo de valor que é baseado em sentimentos:
O enunciado de que a água é mais pesada que a madeira pode ser verificado pela experiência, que demonstra que o enunciado conforma-se com os fatos. Enunciados sobre fatos baseiam-se, é verdade, na percepção de nossos sentidos, controlados por nossa razão, e, portanto, também são subjetivos, em certo sentido. Mas as percepções de nossos sentidos estão sob o controle de nossa razão em um grau muito maior do que estão nossos sentimentos e, na verdade, ninguém duvida que a água é mais pesada que a madeira46.
A democracia procedimental é entendida como um método que cria a ordem social. A regra da maioria, que está na essência do funcionamento da democracia, é responsável por garantir a liberdade do maior número possível de indivíduos, esta liberdade é a liberdade social, a qual possibilita ao indivíduo participar da criação da ordem social a qual 43
Kelsen, Hans. O que é Justiça?. 3ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 24. Idem, Ibidem. 45 Idem, p.25. 46 Idem, p. 293. 44
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se submete. A cosmovisão que serve para justificar a democracia kelseniana é a relativista, também fundada na liberdade, já que o indivíduo é livre (autônomo) para criar suas verdades e seus valores 47. Assim, o cidadão da democracia procedimental está protegido da submissão à vontade de um indivíduo ou grupo que se diga detentor da verdade absoluta e de valores absolutos, está protegido de ideologias irracionais, as quais sustentam o poder do governante autocrata. A democracia procedimental é essencialmente racionalista, antimetafísica, positivista e relativista. Na democracia representativa os membros que representam os órgãos especializados são nomeados por eleição popular, a autodeterminação do indivíduo limita-se ao processo de eleição dos membros. O órgão especializado que exerce a função legislativa é o parlamento eleito pelo povo, a função administrativa e a função judiciária são exercidas por funcionários igualmente eleitos pelo voto popular. Estes funcionários têm responsabilidade política e judicial perante o eleitorado. Daí que para Kelsen, os Estados modernos que se dizem democracias representativas, na realidade não funcionam como tal. O que se pode observar nos Estado modernos é que os membros do judiciário e da administração jamais são nomeados pelo método da eleição popular. O parlamento é o único órgão eleito pelo povo, porém seus membros não possuem qualquer vínculo jurídico com seu eleitorado:
Para se estabelecer uma verdadeira relação de representação, não basta que o representante seja nomeado ou eleito pelos representados. É necessário que o representante seja juridicamente obrigado a executar a vontade dos representados, e que o cumprimento dessa obrigação seja juridicamente garantido. A garantia típica é o poder dos representados de cassar o mandato do representante caso a atividade deste não se conforme aos seus desejos48.
Os indivíduos que participam do processo eleitoral possuem o direito de sufrágio, que é um dever jurídico de exercer a função de votar, o direito de sufrágio deve ser o mais universal e igualitário possível: “É especialmente incompatível com a idéia de sufrágio universal excluir mulheres ou indivíduos pertencentes a certas profissões (...)” 49. No entanto, um indivíduo sozinho tem pouca influência sobre a organização do Estado, e para que obtenha mais influência, deve se reunir com outros indivíduos que compartilhem sua visão política, daí surgem os partidos políticos.
47
Barzotto, Luis Fernando. A Democracia na Constituição. 1ªed., São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, p. 137. 48 Idem, p. 414. 49 Idem, p. 420.
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O parlamento que forma a vontade do Estado é fundado sobre o sistema eleitoral proporcional. De acordo com Kelsen o sistema eleitoral proporcional impede o domínio da vontade da maioria sobre a vontade da minoria. Pressupondo a organização dos cidadãos em partidos. Um partido político deve ter um mínimo de eleitores para eleger seus representantes, e quanto maior este número, mais representantes terá no parlamento: “Para ser eleito não é necessário realmente obter maioria de votos, mas é suficiente obter um ‘mínimo’, cujo cálculo constitui a característica da técnica proporcional” 50. Kelsen prega uma reforma do parlamentarismo, entendo ser possível mesclar elementos da democracia direta com a democracia representativa (indireta), com isso seria possível que o povo participasse em grau maior da criação da ordem estatal. Os mecanismos para concretizar esta participação popular seriam o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular de leis51. Para impedir que a democracia da maioria se torne uma autocracia da maioria, se pressupõe a existência de uma minoria que não pode ser anulada, nem desrespeitada pela maioria. Assim, um Estado verdadeiramente democrático é aquele em que a ordem social é criada através da permanente discussão entre maioria e minoria, onde existe liberdade de opinião:
Essa discussão tem lugar não apenas no parlamento, mas também, e em primeiro lugar, em encontros políticos, jornais, livros e outros veículos de opinião. Uma democracia sem opinião pública é uma contradição em termos 52.
Daí se pode observar que a democracia não abandona por completo os ideais do liberalismo político: “A democracia moderna não pode estar desvinculada do liberalismo político” 53. O liberalismo político parte do princípio da restrição do poder do Estado frente a algumas esferas do interesse individual, o indivíduo deve ser protegido por lei contra a intervenção estatal, esta é a origem dos direitos fundamentais e das liberdades fundamentais. A democracia, para não virar uma tirania da maioria, se vale dos ideais liberais. Porém, não mais com o propósito de proteger o indivíduo, mas para proteger a minoria contra a ação arbitrária da maioria.
50
Kelsen, Hans. A Democracia. 1ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 72. Idem, p. 53 -59. 52 Kelsen, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3ª ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1998, p. 410. 53 Kelsen, Hans. A Democracia. 1ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 183. 51
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Tendo em vista que a existência da minoria é essencial para a democracia, esta deve ser protegida, devendo ter a possibilidade de recorrer à jurisdição constitucional. No corpo legislativo constitucional de uma democracia procedimental deve ter catalogado o rol de direitos e liberdades fundamentais, indispensável para proteção da minoria. Para ser criada, modificado ou revogada a lei constitucional é preciso um quorum qualificado, assim necessariamente, deve haver um acordo entre maioria e minoria. Esta autolimitação é representada pelo princípio da legalidade, onde as regras procedimentais democráticas devem, obrigatoriamente, ser obedecidas:
Essa autolimitação significa que o rol dos direitos fundamentais e das liberdades fundamentais se transforma de instrumento de proteção do indivíduo contra o Estado, em instrumento de proteção da minoria (...) contra a maioria puramente absoluta; significa que as disposições referentes a certos interesses nacionais, religiosos, econômicos ou espirituais só podem ser decididos depois da aprovação de uma minoria qualificada, portanto só se maioria e minoria estiverem de acordo 54.
A democracia de Kelsen deve ser entendida como a forma de governo onde os indivíduos participam da criação das normas jurídicas, as quais estão subordinados. Isso significa dizer que são os indivíduos a partir de atos que são atribuídos ao Estado, baseados na ordem jurídica, que criam o Direito, este é o Estado de Direito que satisfaz “aos requisitos da democracia e da segurança jurídica”
55
. É no Estado de Direito entendido como ordem
jurídica relativamente centralizada, onde a criação da ordem social é estabelecida por um parlamento eleito pelo povo, que a liberdade política, os direitos fundamentais e as liberdades fundamentais encontram-se garantidas. A democracia procedimental entendida como forma de governo, ou de Estado, é um método capaz de criar a ordem jurídica. Efetivamente, frente a impossibilidade de uma democracia direta, é o parlamento o responsável pela criação de normas, e por isso, também o responsável por criar a vontade do Estado. Uma vez que a regra da maioria é um princípio indispensável para a existência da democracia, a vontade do Estado deve coincidir com a vontade política da maioria. Frente a uma concepção de mundo relativista, não é mais possível evocar o poder dizendo-se detentor de verdades absolutas e valores absolutos, uma vez que os indivíduos são livres para criar suas verdades e valores. A vontade do indivíduo pretende unicamente realizar seus próprios interesses. Para conciliar estas vontades a melhor forma de 54 55
Idem, p. 68. Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 346.
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governo é a democracia procedimental, fundada na regra da maioria, maximiza as liberdades individuais, satisfazendo o maior número de vontades.
4. Norberto Bobbio: a democracia minimalista – uma análise do nosso tempo
A democracia, para Bobbio, é uma via, que estabelece as regras do jogo, ou seja, estabelece quais são as pessoas responsáveis por tomar decisões coletivas e quais os procedimentos para a tomada de decisões. Estas regras são os chamados universais processuais, que são enumerados resumidamente por Bobbio:
1) todos os cidadãos que tenham alcançado a maioridade etária sem distinção de raça, religião, condição econômica, sexo, devem gozar de direitos políticos, isto é, cada um deles deve gozar do direito de expressar sua própria opinião ou de escolher quem a expresse por ele; 2) o voto de todo o cidadão deve ter igual peso; 3) todos aqueles que gozam dos direitos políticos devem ser livres para votar segundo sua própria opinião formada, ao máximo possível, livremente, isto é, em uma livre disputa entre grupos políticos organizados em concorrência entre si; 4) devem ser livres também no sentido de que devem ser colocados em condições de escolher entre diferentes soluções, isto é, entre partidos que tenham programas distintos e alternativos; 5) seja para as eleições, seja para as decisões coletivas, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido de que será considerado eleito o candidato ou será considerada válida a decisão que obtiver o maior número de votos; 6) nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar por sua vez maioria em igualdade de condições56.
A definição mínima de democracia, como conjunto de regras do jogo, uma destas regras é a regra da maioria. Pressupõe que é indispensável que os indivíduos chamados a decidir, possam fazer exercer seus direitos políticos livremente, e para isso, necessariamente devem existir limites constitucionais, como os direitos individuais invioláveis (direitos de liberdade de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião de associação, etc.). Estes direitos formam a base de um Estado Liberal, daí o entendimento que o Estado Liberal é o pressuposto histórico e jurídico do Estado democrático. Bobbio considera que a regra da maioria é simplesmente uma regra para o cálculo dos votos, não pode ser considerada como um ideal no qual se sustenta um sistema democrático. Neste ponto, Bobbio diverge de Kelsen, já que, para Kelsen a regra da maioria é 56
Bobbio, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. 6ª ed. Rio de Janeiro: Campos, 2000, p. 427.
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a regra fundamental da democracia, assim, de acordo com argumentos axiológicos, justifica a regra da maioria como sendo a síntese das idéias de liberdade e igualdade. Bobbio afirma que o princípio da maioria não pressupõe a idéia de igualdade, e que por isso a igualdade não pode servir para justificar o princípio da maioria, exemplifica que em muitos casos o princípio da maioria pode ser respeitado, no entanto os votos não são igualmente considerados:
(...) uma hipotética votação política com voto múltiplo (mas vigora com freqüência a regra de que, em caso de empate de votos, o voto do presidente conta por dois) não contraria o princípio da maioria, embora não respeitando o princípio democrático do valor igual dos indivíduos 57.
O ideal que realmente sustenta um sistema democrático é a supremacia do poder ascendente, que vai da base ao vértice, sobre o poder dissidente, que é sua absoluta oposição. Porém, este ideal só poderá ser concretizado onde existir o sufrágio mais universal possível, ou seja, onde o poder ascendente é alargado ao maior número de indivíduos. Bobbio constata que ao lado da regra da maioria como mecanismo de formação da vontade coletiva, existe também, o acordo firmado entre partes independentes visando à formação de uma vontade comum, como um contrato ou uma negociação. Seguindo a teoria dos jogos, Bobbio entende que existe uma vontade coletiva formada por um compromisso como tendo um resultado positivo, ou seja, onde ambas as partes acabam ganhando alguma coisa; diferentemente da vontade coletiva formada por maioria, que sempre haverá uma parte que ganha e outra que perde: “(...) de fato, no que se refere ao que está em jogo, a maioria vence enquanto a minoria perde, e a minoria perde aquilo que a maioria vence”
58
. O
princípio da livre contratação, em uma sociedade pluralista como as que constituem os Estados modernos, deverá persistir. Afinal, o ideal de democracia está diretamente ligado a idéia de acordo entre os indivíduos sobre as regras de convivência, mesmo que se trate de uma única regra: a da maioria. Assim conclui:
A razão dessa persistência está no fato de que é difícil, senão impossível, dissociar o ideal de uma sociedade livre da prática, para além do princípio de maioria, estendido ao maior número, da contratação entre indivíduos ou grupos formalmente livres e iguais59.
57
Idem, p. 434. Idem, p. 440. 59 Idem, p. 441. 58
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Considerando o exposto, o principio da maioria é considerado apenas como um elemento utilizado para o cálculo dos votos em uma democracia. Bobbio identifica três espécies de limites do princípio da maioria: o limite de validade, os limites de aplicação e os limites de eficácia. O limite de validade da regra da maioria coloca o problema de saber se a regra da maioria vale em qualquer caso, ou seja, possui uma validade absoluta, até mesmo se for utilizada para tomar a decisão de abolir o próprio princípio da maioria; ou pelo contrário, a validade da regra da maioria não é absoluta, e assim, está subordinada a uma regra superior, a qual impede a abolição do princípio da maioria. A única resposta ao problema que Bobbio entende como persuasiva é a de considerar a princípio da maioria como meta-regra do jogo. Esta regra em especial devem ser aceitas por unanimidade, senão torna impossível o desenvolvimento do jogo. Assim quem aceita participar da formação de uma determinada decisão ou eleição, deve aceitar a regra da maioria como um procedimento, que faz parte das regras do jogo:
(...) a maior força vinculadora das regras do jogo com relação a todas as outras esteja na consideração que cada jogador faz acerca da prevalência do interesse geral de manter as regras do jogo sobre o interesse partículas de fazer vencer a própria parte em uma decisão específica 60.
Os limites da aplicação da regra da maioria deve ser entendido tendo em vista que existem algumas matérias sobre as quais o princípio da maioria não pode ser aplicado na decisão, sob pena de promover uma decisão injusta, ou inadequada. Poderia se tomar como exemplo uma decisão por maioria que violasse os direitos do homem e do cidadão, contemplados por quase todas as constituições modernas, seria assim uma decisão injusta, mesmo que decidida por maioria. Aqui se entra no limite do que é opinável, e Bobbio afirma que certas matérias não são passíveis de ser opináveis, como é o caso dos direitos fundamentais que são postulados éticos. Também, não podem ser decidas por maioria questões científicas e técnica, não por não serem opináveis, mas por razões objetivas e pela complexidade do procedimento de decisão. Outro limite de aplicação da regra da maioria é quanto as questões de credo, ou seja, matérias de “foro intimo”, assim Bobbio exemplifica: “(...) pode-se submeter a referendo a escolha entre monarquia e república, não se pode
60
Idem, p. 443.
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submeter a referendo a escolha entre cristianismo e ateísmo, entre a obrigação de adorara a um Deus, a outro, ou a nenhum” 61. Os limites de eficácia da regra da maioria são todas aquelas promessas que a aplicação da regra pretendia, mas que acabou não podendo ser cumprido. Uma das promessas não cumpridas seria a possibilidade de reversão das decisões tomada, assim, caso a minoria se tornasse maioria, seria possível esta nova maioria modificar as decisões anteriores tomadas por aquela outra. Na prática, muitas das decisões anteriores são irreversíveis: ”(...) são dificilmente reversíveis as situações criadas por grandes reformas, tais como a divisão de latifúndios ou a nacionalização de uma indústria (...)” 62. A democracia minimalista é um método ou uma via para a tomada de decisões coletivas, isto é, o conjunto de regras que possibilita a decisão coletiva. Sustentada pelo ideal do poder ascendente, o qual para ser concretizado necessita do sufrágio universal, e mais, necessita de garantias constitucionais que efetivamente possibilitem o exercício da liberdade política e de opinião. Aqui está a medida para um governo ser verdadeiramente democrático e o que o diferencia de uma oligarquia, ou seja, é a constatação de “quantas pessoas são chamadas a expressar seu próprio consenso (ou dissenso)”
63
. O princípio da maioria é
entendido apenas como um dos elementos para o bom funcionamento da democracia, mesmo que tal procedimento possua limites e nem sempre funcione: “a regra da maioria resiste a todas as críticas porque ainda não se descobriu nada melhor” 64. Bobbio realiza uma das mais lúcidas análises acerca dos ideais democráticos e a efetiva realização destes ideais, isto é, uma análise do que foi prometido e do que de fato foi realizado. Entendemos que o estudo deste ponto particular da obra de Bobbio é de enorme relevância prática, especialmente em país como o Brasil que está paulatinamente se desenvolvendo e se aperfeiçoando como um Estado democrático. Em uma bela passagem da obra O Futuro da Democracia, Bobbio citando o poeta russo Boris L. Pasternak, encontra a “matéria bruta”:
(...) um interlocutor chamou minha atenção para as palavras conclusivas que Pasternak põe na boca de Gordon, o amigo do doutor Jivago: ‘ Aconteceu mais vezes na história. O que foi concebido como nobre e elevado tornou-se matéria bruta. Assim a Grécia virou Roma, assim o iluminismo russo tornou-se a revolução russa ’. Assim, acrescento eu, o pensamento liberal e democrático de um Locke, de um Rousseau, de um Tocqueville, de um 61
Idem, p. 445. Idem, p. 447. 63 Idem, p. 438. 64 Idem, p. 447. 62
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Bentham e de um John Stuart Mill tornou-se a ação de... (coloquem vocês o nome que preferirem; tenho certeza de que não terão dificuldade para encontrar mais um) 65.
O primeiro contraste entre o mais “nobre e elevado” ideal de democracia e a “matéria bruta” resultada, diz respeito à concepção individualista da sociedade. Uma concepção individualista pressupõe que a sociedade é fruto da vontade individual, assim a sociedade política, ou qualquer outra sociedade, somente é criada porque os indivíduos soberanos estando de acordo conciliam as suas vontades, aqui o que se pretende é não deixar espaço para centros de poder intermediários. É da sociedade idealizada por uma visão de mundo individualista que surge a democracia, porém o que se observa é que este ideal de sociedade não foi cumprido: “(...) sujeitos politicamente relevantes tornaram-se sempre mais os grupos, grandes organizações, associações (...) e sempre menos os indivíduos”
66
. Na
sociedade moderna não existe um centro específico de poder, porém vários. Daí a classificação feita pelos estudiosos de que a sociedade moderna é policêntrica ou poliárquica, isto é, possui vários centros de poder. A democracia frente à complexidade da sociedade moderna surge como democracia representativa, os representantes eleitos representam à vontade da nação, jamais poderiam estar vinculados a interesses particulares, daí a proibição de um mandato imperativo. Em uma democracia representativa geralmente a constituição contempla a proibição do mandato imperativo. Porém o que se observa de fato é a explícita violação desta norma constitucional. Bobbio com indignação questiona: “Mas o que representa a disciplina partidária se não uma aberta violação da proibição de mandatos imperativos?”67. Os representantes eleitos por um determinado partido acabam por estar vinculados aos interesses particulares do partido. O neocorporativismo que é o sistema típico de tomada de decisões que envolve interesses particulares, é estabelecido por uma relação triangular entre grupos de interesses que se opõem e o parlamento que representa os interesses nacionais. Tal procedimento se caracteriza por ser a “expressão típica de representação dos interesses”
68
. O
neocorporativismo é: “Uma confirmação da revanche (ousaria dizer definitiva) da representação dos interesses sobre a representação política (...)” 69.
65
Bobbio, Norberto. O Futuro da Democracia. 7ª ed., São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 34. Idem, p. 35. 67 Idem, p. 37. 68 Idem, p. 38. 69 Idem, p. 37. 66
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Uma outra promessa não cumprida seria o intento de eliminar por completo o poder oligárquico, o poder da elite. Todo o ideal de democracia está fundado no princípio da liberdade entendido como autodeterminação, ou seja, os indivíduos são autônomos e assim somente se submetem às leis que eles próprios instituem. Bobbio entende que a democracia representativa por si só renúncia ao princípio da liberdade como autodeterminação, uma vez que quem tem a prerrogativa de decidir é o representante. A democracia representativa moderna não eliminou as elites, mas ao contrário, tem por característica a existência de muitas elites que disputam para conquistar o voto popular. A democracia moderna também se mostrou incapaz de preencher todos os espaços de tomada de decisões na sociedade. Bobbio defende a passagem da democracia política para a democracia social, que caracterizaria uma evolução da democracia. Para isso o desenvolvimento de uma democracia deve ser medido não pelo aumento do número dos que tem direitos de expressar sua opinião mediante o voto na esfera política, mas, sobretudo, devem ser observados todos os espaços sociais em que os indivíduos podem exercer este direito de votar:
(...) pode-se dizer que, se hoje se deve falar de um desenvolvimento da democracia, ele consiste não tanto, como erroneamente muitas vezes se diz, na substituição da democracia representativa pela democracia direta (substituição que é de fato, nas grandes organizações, impossível), mas na passagem da democracia na esfera política, isto é, na esfera em que o indivíduo é considerado como cidadão, para a democracia na esfera social, onde o indivíduo é considerado na multiplicidade de seus status, por exemplo de pai e de filho, de cônjuge, de empresário e de trabalhador, de professor e de estudante e até de pai de estudante, de médico e de doente, de oficial e de soldado, de administrador e de administrado, de produtor e de consumidor, de gestor de serviços públicos e de usuário, etc.; em outras palavras, na extensão das formas de poder ascendente, que até então havia ocupado quase exclusivamente o campo da grande sociedade política (e das pequenas e muitas vezes politicamente irrelevantes associações voluntárias), ao campo da sociedade civil em suas várias articulações, da escola à fabrica 70.
Bobbio observa que na democracia ideal oriunda dos grandes pensadores se pretendia eliminar por completo a presença do chamado “poder invisível”, para isso este ideal de democracia foi fundado sobre o princípio da mais ampla publicidade dos atos do governo. O princípio da publicidade é indispensável não apenas para que o cidadão tome ciência das
70
Bobbio, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política. 9ª ed., São Paulo: Paz e Terra, 2001, p.155-156.
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atitudes dos governantes e assim possa fiscalizar, mas principalmente porque o princípio da publicidade exerce naturalmente o poder de distinguir um ato lícito de um ato ilícito:
(...) a democracia nasceu com a perspectiva de eliminar para sempre das sociedades humanas o poder invisível e de dar vida a um governo cujas ações deveriam ser desenvolvidas publicamente, “au grand jour” (para usar a expressão de Maurice Joly) 71.
Entendemos ser de grande importância citar a passagem em que Bobbio identifica a presença do poder invisível na Itália. Já que seguramente esta passagem poderia ter sido escrita por qualquer cidadão brasileiro atento ao desenrolar da política de nosso país, apenas substituindo Itália por Brasil:
Talvez eu esteja particularmente influenciado por aquilo que acontece na Itália, onde a presença do poder invisível (máfia, camorra, lojas maçônica anômalas, serviços secretos incontroláveis e acobertados dos subversivos que deveriam combater) é, permitam-me o jogo de palavras, visibilíssima 72.
O controle dos atos do governo pelos cidadãos na democracia real é efetivamente necessário, principalmente pelo fato de que com as novas tecnologias se tornou possível para os detentores do poder controlar tudo o que fazem os cidadãos. Este tipo de controle foi sempre o desejo de todo e qualquer governo despótico, agora este temeroso desejo é alcançável. Assim conclui Bobbio:
Nenhum déspota da antiguidade, nenhum monarca absoluto da idade moderna, apesar de cercados por mil espiões, jamais conseguiu ter sobre seus súditos todas as informações que o mais democrático dos governos atuais pode obter com o uso dos cérebros eletrônicos. A velha pergunta que percorre toda a história do pensamento político – “Quem custodia os custódios?” – hoje pode ser repetida com esta outra fórmula: “Quem controla os controladores?” Se não conseguir encontrar uma resposta adequada para esta pergunta, a democracia, como advento do governo visível, está perdida 73.
A última promessa não cumprida, segundo a análise de Bobbio, é quanto à educação para a cidadania. A democracia ideal quer transformar súditos em cidadãos e para isso os indivíduos recebem direitos que possibilitam a formação de opinião livre e a
71
Bobbio, Norberto. O Futuro da Democracia. 7ª ed., São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 41. Idem, Ibidem. 73 Idem, p. 43. 72
22
participação eleitoral efetiva, esta é a forma de exercício da prática democrática, com ela surge a educação para a cidadania. O bom cidadão é aquele que não está voltado para seus interesses pessoais, ou para as vantagens pessoais que do voto pode tirar, mas é um membro consciente de uma comunidade e vota com base em uma opinião política. Bobbio constata que na democracia real existe uma apatia política, um verdadeiro desinteresse sobre a vida política. Entende haver razões para acreditar que o voto por opinião esteja diminuindo, e o que se observa é um aumento do voto em troca de favores pessoal. Tendo em vista esta análise crítica feita por Bobbio sobre a realidade da democracia moderna, e o seu mau funcionamento, se poderia esperar que o autor desacreditasse no futuro da democracia. No entanto, Bobbio defende a democracia com convicção em seu futuro. E diz que mesmo com a constatação de promessas não cumpridas, a democracia não se transformou em um regime autocrático que é o seu abominável oposto, pois o conteúdo mínimo do Estado democrático persiste, uma vez que as democracias modernas continuam garantindo os principais direitos de liberdade, o sufrágio universal, os vários partidos concorrentes, as eleições periódicas e as decisões tomadas com base no princípio da maioria antecedidas de um longo debate entre as partes. Bobbio acredita que a democracia necessita de pressupostos éticos. Então enumera como primeiro ideal o da tolerância, e afirma: “Se hoje existe uma ameaça à paz mundial, esta vem ainda uma vez do fanatismo, ou seja, da crença cega na própria verdade e na força capaz de impô-la”
74
. O segundo ideal é o da não-violência, uma vez que a
democracia estabelece regras, com as quais os conflitos sociais podem ser resolvidos sem o recurso à violência: “(...) onde essas regras são respeitadas o adversário não é mais inimigo (que deve ser destruído), mas um opositor que amanhã poderá ocupar o nosso lugar”
75
.O
terceiro ideal é o da renovação gradual da sociedade através do livre debate e a possibilidade de mudança de mentalidades e de estilo de vida:
(...) apenas a democracia permite a formação e a expansão das revoluções silenciosas, como foi por exemplo nestas últimas décadas a transformação das relações entre os sexos – que talvez seja a maior revolução dos nossos tempos 76.
74
Idem, p. 51. Idem, p. 52. 76 Idem, p. 52. 75
23
O último ideal é o ideal da irmandade ou fraternidade. Bobbio conclui chamando a atenção para o futuro que é um destino comum aos homens, e pede consciência para com as conseqüências:
Em nenhum país do mundo o método democrático pode perdurar sem tornar-se um costume. Mas pode tornar-se um costume sem o reconhecimento da irmandade que une todos os homens num destino comum? Um reconhecimento ainda mais necessário hoje, quando nos tornamos a cada dia mais conscientes deste destino comum e deveríamos, por aquele pequeno facho de razão que clareia nosso caminho, agir de modo conseqüente 77.
Para Bobbio o processo democrático necessita de pressupostos éticos. E enumera quatro ideais: ideal da tolerância, ideal da não violência, ideal da renovação gradual da sociedade através do livre debate e da mudança de atitude e o ideal da fraternidade ou irmandade. Neste ponto a democracia minimalista de Bobbio vai absolutamente contra a democracia procedimental de Kelsen, já que para Kelsen a ética é um caminho de invenção de valores por parte dos indivíduos. Uma vez que Bobbio reconhece a existência de princípios éticos, uma nova concepção de sociedade deve ser construída sobre esta nova base valorativa.
5. Considerações Finais
A principal semelhança entre os três pensadores estudados é a importância para a democracia da existência de um intenso diálogo entre os cidadãos, seja em busca da verdade prática orientada pela prudência (razão prática) em Aristóteles, ou devido a necessidade da discussão entre maioria e minoria nos idéias democráticos de Kelsen e Bobbio. A concepção de mundo teleológica dos antigos, aqui representados por Aristóteles e dos modernos relativistas, representados principalmente por Kelsen, uma vez que este pensador defende sua posição de forma profunda e enfática, é sem dúvida a maior diferença entre os dois pensadores estudados. Para Aristóteles o homem em sua essência é um animal racional e social, é o “animal cívico”, e através de um governo dos muitos (a democracia deliberativa) encontra condições ideais para desenvolver a razão prática, e pode garantir um governo que possibilite o ideal da vida humana que é o telos (o bem dos homens).
77
Idem, Ibidem.
24
Já para Kelsen, o homem é um indivíduo anti-social e auto-interessado por natureza, o homem exige liberdade e a vontade do indivíduo pretende unicamente realizar seus próprios interesses. A forma de governo que possibilita, de certa forma, conciliar estas vontades antagônicas é a democracia procedimental que maximiza as liberdades individuais. A regra da maioria, frente à complexidade dos Estados modernos e a impossibilidade de uma democracia direta, o que era possível para os antigos gregos, é parte relevante dos estudos da grande maioria dos autores modernos que tratam do tema democracia. Daí umas das principais diferenças entre o pensamento de Kelsen e de Bobbio. Para Kelsen a democracia procedimental é fundada na regra da maioria, assim a regra da maioria é característica essencial para o funcionamento da democracia, é ela que preserva a liberdade do maior número de indivíduos na sociedade. Já para Bobbio a regra da maioria é mais uma das regras do jogo da democracia, é apenas um elemento utilizado para o cálculo dos votos, assim acredita que a regra da maioria não pode ser considerada um ideal no qual se sustenta um sistema democrático. Bobbio defende seu entendimento observando os limites e o mau funcionamento do princípio da maioria nos Estados democráticos atuais. Outro ponto divergente das teorias de Kelsen e Bobbio é quanto ao mandato imperativo dos representantes eleitos pelos cidadãos. Kelsen entende que para uma verdadeira relação de representação é necessário que o representante tenha sido eleito pelos representados, e ainda, que o representante seja juridicamente obrigado a executar a vontade dos representados, desta forma, os representados estariam legitimados a cassar o mandato do representante. Para Kelsen o mandato imperativo é fundamental para o bom funcionamento da democracia. Todavia, Bobbio acredita que os representantes eleitos passam a representar à vontade da nação, não podem estar vinculados com interesses particulares, ou seja, o mandato imperativo deve ser proibido para o bom funcionamento da democracia. Bobbio constata que esta proibição, que inclusive está contemplada nas constituições modernas, é explicitamente violada, principalmente se observarmos que uma vez eleitos, os representantes sempre estão vinculados aos interesses dos partidos aos quais pertencem, não existe nenhuma autonomia para representar a vontade da nação, são sim representantes das vontades dos partidos. Após a exposição da semelhança e das diferenças entre os três autores estudados, gostaríamos de ressaltar, as observações feita por Bobbio sobre o mau funcionamento da democracia e suas promessas não cumpridas, ele observa o que na teoria foi concebido como nobre e elevado, e o resultado, a “matéria bruta”: ou a democracia “real”.
25
Bobbio conclui acreditando que a democracia necessita de pressupostos éticos, e enumera: o ideal da tolerância, o ideal da não-violência, o ideal da renovação gradual da sociedade através do livre debate, e o ideal da irmandade ou fraternidade. Este último, ressaltamos, é a irmandade que une todos os homens em um destino comum. Daí vale citar Bobbio ao observar a importância do reconhecimento desse destino comum para a sociedade moderna: “Um reconhecimento ainda mais necessário hoje, quando nos tornamos a cada dia mais conscientes deste destino comum e deveríamos, por aquele pequeno facho de razão que clareia nosso caminho, agir de modo conseqüente 78”. Por reconhecer a complexidade do tema estudado e os limites que possuímos, se concluí o presente trabalho com muitas dúvidas e com uma vontade enorme de continuar os estudos sobre a democracia. Também, terminamos o trabalho com certo pessimismo, certamente provocado pela lúcida constatação de Bobbio sobre o mau funcionamento da democracia italiana, nos parece ser inevitável a comparação com a democracia brasileira. Assim, limitamos-nos a transcrever uma passagem da obra A Náusea de Sartre, que mistura pessimismo e dúvida:
Vejo o futuro. Está ali, pousado na rua, um nadinha mais pálido do que o presente. Que necessidade tem de se realizar? Que vantagem lhe trará isso? A velha se afasta coxeando, pára, ajeita uma mecha grisalha que escapou do fichu. Caminha, estava ali, agora está aqui... já me perdi: será que vejo seus gestos ou os prevejo? Já não distingo o presente do futuro e no entanto isso tem uma duração, realiza-se pouco a pouco; a velha avança na rua deserta; desloca seus sapatões de homem. É isso o tempo, o tempo inteiramente nu, que vem lentamente à existência, que se faz esperar e, quando chega, nos sentimos enfastiados porque percebemos que já estava ali havia muito tempo 79.
Será que uma definição mínima de democracia, como procedimento capaz de orientar o jogo do poder, é completa? As administrações públicas e privadas controlam e manipulam a vida pessoal, e ainda fazem prevalecer seus interesses particulares? Estaríamos diante, novamente, e repetidamente, da onipotência dos senhores do dinheiro e da informação? Estaríamos satisfeitos com o papel de reprodutores de um sistema fechado? São perguntas que ao final do trabalho surgem, gerando angústia, mas que servem para reflexão.
78 79
Bobbio, Norberto. O Futuro da Democracia. 7ª ed., São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 52. Sartre. Jean-Paul. A Náusea. 1ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 47.
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Bibliografia
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