Melissa Maria da Silva de Lima - Mackenzie

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de Rouletabille, do francês Gaston Leroux; também autor do aclamado O Fantasma da Ópera. Tal análise foi desenvolvida partindo da comparação entre  ...
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A MULHER NO UNIVERSO MASCULINO DO ROMANCE POLICIAL: LE CRIME DE ROULETABILLE – UMA OBRA POUCO CONVENCIONAL Melissa Maria da Silva de Lima (IC) e Glória Carneiro do Amaral (Orientadora) Apoio: PIBIC Mackenzie/MackPesquisa

Resumo Este artigo visa apresentar a análise do papel da personagem feminina no romance policial Le Crime de Rouletabille, do francês Gaston Leroux; também autor do aclamado O Fantasma da Ópera. Tal análise foi desenvolvida partindo da comparação entre contos de Edgar Allan Poe (que deram início ao gênero), e o romance-estreia de uma personagem que o imortalizou: o famoso detetive Sherlock Holmes, de Artur Conan Doyle. A pesquisa foi desenvolvida levando em conta a participação e relevância das personagens femininas nessas obras, em comparação às presentes no romance de Leroux. No primeiro caso, a mulher não tem um papel ativo na trama, sua personalidade é pouco explorada e sua importância é mínima. O centro da narrativa é o detetive e a maneira que conduz o inquérito: seus métodos são puramente lógicos e sua personalidade é marcadamente racional. Segundo alguns teóricos do policial, um relacionamento amoroso ou um envolvimento emocional com o crime, atrapalharia seu trabalho intelectual, interferindo na elucidação do mistério. Assim, Holmes e Dupin não estarão afetivamente envolvidos em seus casos ou partilharão uma vida amorosa com alguém. Porém, no romance analisado, o detetive Joseph Rouletabille está imerso no caso “até a alma”; o crime que soluciona é o assassinato de sua esposa, do qual é o principal suspeito. Os resultados apontam para uma inovação ligada também à mudança do papel social da mulher e da personagem feminina na literatura em geral. O romance de Leroux ultrapassa os clichês; é uma obra que transcende o próprio gênero. Palavras-chave: policial, personagem, feminina

Abstract This paper aims at analyzing the role of female characters in detective fiction of Le Crime de Rouletabille, French Gaston Leroux; also the author of the acclaimed The Phantom of the Opera. This analysis was developed from the comparison of stories by Edgar Allan Poe (who started the genre), and the debut novel of a character who immortalized him: the famous detective Sherlock Holmes, from Arthur Conan Doyle. Based on books, literary theory, the research was developed taking into account the contribution and relevance of the female characters in the opuses cited in comparison to those present in Leroux's novel. In the first case, the woman has an active role in the plot, his personality is not explored and its importance is minimal. The center of the narrative is the detective and the way it conducts its investigation, its methods are purely logical, and his personality is remarkably rational. According to some theorists of the police, a relationship or an emotional involvement with the crime supposedly interfered with its intellectual work, interfering in the elucidation of the mystery. This way Holmes and Dupin will be not emotionally involved in their cases or share a love life with someone. However, in the novel object of research, the detective Joseph Rouletabille is involved in the case "to the soul"; the solved crime is the murder of his wife, of which he is the prime suspect. The results point to an innovation also linked to the change of woman's social role and the female character in the literature in general. Leroux's novel goes beyond the cliches, it is a opus that transcends the genre itself. Key-words: police, character, female

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1 INTRODUÇÃO Todos já ouvimos falar do famoso detetive Sherlock Holmes e seus feitos extraordinários, registrados pelo seu “caro” amigo Watson. Porém, nunca de uma personagem feminina que estivesse intimamente ligada ao protagonista, tampouco em seu lugar. Em sua estreia, Holmes investiga crimes cometidos para vingar o assassinato de uma mulher. Muito embora, a narrativa não tem nesse motivo, seu principal objeto. O foco do autor é a elucidação do mistério; a maneira extraordinária como nosso herói conduz as investigações. Isso ocorre desde o nascimento do gênero romance policial, com o conto The Murders in the Rue Morgue, de Edgar Allan Poe. O detetive é um homem de caráter racionalista: é por meio da análise, observação das evidências e da dedução que soluciona os enigmas. O trunfo da narrativa está em impressionar o leitor com a capacidade dedutiva do protagonista. Dupin, o detetive de Poe, resolve o mistério que perturbou os investigadores mais experientes da polícia e aterrorizou os moradores da cidade. Através da simples constatação dos fatos, da observação do local do crime e da aplicação de sua capacidade dedutiva. Tais crimes também foram cometidos contra mulheres que novamente não estavam no papel central. Talvez, por uma herança literária em que a mulher é convencionalmente um ser frágil. Ou ainda, pela influência do ambiente social em que essas literaturas ganharam espaço: a segunda metade do século XVIII e início do XIX, períodos em que a figura masculina estava a frente da sociedade. O homem é motor da civilização moderna: o burguês, o operário, o cientista. Dupin e Sherlock inspiraram uma vasta gama de escritores ao redor do mundo, em diferentes épocas. Algumas convenções genéricas sofreram alterações no desenvolvimento e expansão do policial, porém as características do detetive foram, em sua maioria, mantidas. Ambos são homens reservados, cultuadores do raciocínio lógico, que não se deixam levar por emoções. Não se apaixonam ou têm relacionamentos amorosos. As narrativas são completamente voltadas para si e seus dons intelectuais. Já no romance analisado, o detetive Joseph Rouletabille, dotado de uma personalidade mais leve, porém também adepto “do bom lado da razão”, tem que investigar a morte de sua própria esposa da qual ele é acusado. Além dessas novidades, o romance conta com mais duas personagens-chave, ambas femininas. Qual a importância destas personagens no desenrolar da trama? Qual será o resultado do envolvimento afetivo do detetive? Ele realmente terá seu trabalho prejudicado? Que papel social desempenha a mulher? É sobre estes questionamentos que esta pesquisa pretende se desenrolar.

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2 REFERENCIAL TEÓRICO Os conceitos presentes na pesquisa foram retirados das fontes a seguir. Serão apresentadas de maneira linear ao desenvolvimento dos estudos: Sandra Lúcia Reimão (1989) faz a ligação do surgimento do romance policial com as correntes de pensamento do contexto social. Na época da Revolução Industrial a ideologia que ganha força é o Positivismo. A imprensa também evolui e inicia a publicação da literatura de massa através do romance-folhetim. O gênero policial tem aí seu início, com os contos publicados por Edgar Allan Poe. O detetive é o cientista social que estuda o comportamento do novo homem urbano. Em seguida, Tzvetan Todorov (2006) trata da tipologia do romance, dividindo-o em duas formas que, segundo Boileau e Narcejac (1964 apud TODOROV, 2006) não são subdivisões e sim, formas historicamente distintas. São elas o romance de enigma aquele que mais se aproxima do tradicional (de Poe), e o romance negro, cujas características são encontradas em Le crime de Rouletabille. Todorov cita também autores do gênero que buscaram estudálos, como S.S. Vin Dine (1928 apud TODOROV, 2006), o enumerador das regras necessárias para se obter um bom romance policial. Através de Hauser (1998), pudemos aproximar de maneira mais concreta a análise do conteúdo do romance (personagens, temas, etc.), com o contexto social. Pois trata do vínculo entre o enunciado e a situação enunciativa. Este artigo é baseado principalmente nessas obras; toma como ponto de partida do gênero os contos publicados nos periódicos do início do século XIX; faz a distinção entre as formas do romance policial e a ligação entre o a cena enunciativa e o discurso do narrador (REIMAO, 1989; BOILEAU e NARCEJAC (1964 apud TODOROV, 2006); DINE (1928 apud TODOROV, 2006); TODOROV, 2006; HAUSER, 1998).

3 MÉTODO Antes de entrarmos no estudo do romance propriamente dito, passamos por algumas etapas com a intenção de sistematizar e, assim, simplificar o desenvolvimento da pesquisa. Em primeiro lugar, foi feito um estudo literário para identificar o surgimento do gênero. Por meio de livros teóricos mais abrangentes, foi possível constatar a época de seu nascimento e nomes de autores pioneiros e de seus seguidores. Assim chegamos aos contos de Edgar Allan Poe e ao romance de Artur Conan Doyle. Em seguida, um levantamento dos aspectos referentes a estas narrativas: como eram os detetives, quais as circunstâncias dos crimes, quem eram os envolvidos, como foram solucionados, etc.

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Então, a pesquisa voltou-se aos livros mais específicos. Aqui foi constatada a existência de duas formas historicamente distintas: primeira, contendo mais influência dos contos originários e a segunda, apresentando algumas novidades. Também foram descobertas supostas regras de elaboração desse tipo de narrativa. Essas novidades foram mais estruturais do que temáticas. Para passar do papel da mulher no contexto social ao papel da personagem nas narrativas literárias, o vínculo entre a obra e seu contexto social começou a ser estabelecido. Neste momento, foi possível evoluir também na análise das narrativas. Finalmente, o romance tornou-se o foco da pesquisa. Seu enredo, suas personagens e seus temas foram levantados e discutidos, com base nos estudos já concluídos. Após levantar estes aspectos mais gerais, as personagens femininas foram focalizadas para concluir a pesquisa e fundamentar as hipóteses levantadas a princípio. Os principais resultados do trabalho científico desenvolvidos foram: a descoberta da época e do surgimento do gênero; seus principais nomes; a influência social na literatura; as convenções do romance policial; os aspectos comuns e diferentes existentes entre as obras comparadas; e finalmente, como o romance central poderia ser visto como um retrato do papel moderno da mulher, tanto social, quanto literário. A pesquisa não seguiu o cronograma esperado. Isto ocorreu principalmente pela necessidade de responder perguntas que não estavam previstas. Os resultados também superaram as expectativas do projeto, formulado há doze meses: na época a proposta era um pouco mais superficial, no que diz respeito aos motivos da pesquisa. O que chamou atenção no romance, em primeiro lugar, foi o envolvimento afetivo do detetive com uma mulher, não era esperado que tal aspecto fosse tão significativo, quanto à imagem feminina social e literária. Estas novas descobertas e, consequentemente, as novas dúvidas influenciaram também no foco da pesquisa, seu eixo de desenvolvimento foi ligeiramente alterado, pois também não era esperado que o estudo de uma única obra envolvesse tantas outras e fosse tão carente de precedentes. Os resultados finais serão apresentados mais detalhadamente a seguir.

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO 4.1 CONTEXTUALIZAÇÃO 4.1.1 Os antecedentes do gênero policial Com a expansão da Revolução Industrial, tudo o que se refere à vida urbana começa a ganhar a forma que tem hoje, como por exemplo, a formação da polícia e a concepção de 4

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inimigo público. No início do século XIX, a polícia francesa era majoritariamente composta por ex-condenados, recrutados para servir a lei em troca de sua liberdade. O mais famoso dentre eles era o detetive Vidocq (1775-1857), que em 1828 publica suas memórias mostrando como funcionava a mente de um contraventor. Era através da convivência com condenados e ex-condenados que conseguia solucionar todos os casos em que trabalhava, por conhecer interiormente o pensamento criminoso. Porém a sociedade começa a ver o infrator da lei como um inimigo não meramente individual, este passa a se tornar um inimigo público; uma vez evidente o contato da polícia com o crime, começa a desconfiar da instituição. Assim, os detetives particulares ganham maior prestígio. É ainda no século XIX que a imprensa se torna popular e surgem os grandes jornais, que tratam de tudo quanto diz respeito à vida na cidade. Estes jornais começam a publicar, além dos textos informativos, textos fictícios, dando origem à literatura de massa, uma forma de arte popular que se vale da exploração do grotesco, das ciências, da urbanização e seus problemas, enfim, de tudo o que dizia respeito ao homem moderno. Com teor realista e um pouco de sensacionalismo, a população era chamada a contemplar seu próprio cotidiano de maneira fantástica. Dentro deste universo, estão narrativas que evoluíram e resultaram em gêneros literários ainda hoje cultuados em grande escala. Como é o caso do romance policial. A narrativa policial que deu início ao gênero foi The Murders in the Rue Morgue publicada na revista Gramham’s em abril de 1841, nos Estados Unidos, por Edgar Allan Poe. O conto de Poe apresentou certos aspectos e características que viriam a se tornar convenções do gênero. Trata-se de uma narrativa em primeira pessoa, cujo narrador é um amigo fiel (não nomeado) do protagonista, na qual um crime pouco atroz é cometido em um quarto fechado. Atraídas por gritos, quando as testemunhas chegam ao local do crime, têm que arrombar a porta, porém, não encontram culpado. A cena do crime, o quarto, não apresenta alternativa de fuga. Este crime é, aparentemente, de solução impossível. A polícia não consegue resolver o caso e o enigma toma grandes proporções. O protagonista, Auguste Dupin, é uma espécie de detetive cientista que preza acima de tudo a razão e passa a ter como objetivo desvendar o mistério. Há uma atmosfera constante de mistério, fundamentada num estilo descritivo repleto de indagações. 4.1.2 O pensamento da época A ideologia que ganhava força, no contexto histórico, era o Positivismo. Tal ideologia prescrevia que todos os fenômenos naturais eram regidos por leis naturais superiores e, sendo o homem parte dessa cadeia, estaria ele também submetido a tais leis, como qualquer outro componente da natureza. Outra corrente muito forte na época era o

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Cientificismo, ou seja, a compreensão desse universo através de teorias que partiam da observação desses fenômenos e experimentos que buscavam validar tais teorias. Ambos os pensamentos eram de cunho estritamente racional e são frutos de uma época em que o homem acreditava em uma verdade universal, objetiva. Assim, não há espaço para crenças religiosas, uma vez que a existência de um mundo metafísico não podia ser provada de maneira concreta. A verdade que o homem buscava deveria ser plena e partilhada por toda a humanidade. A emotividade exacerbada dá lugar ao racionalismo e ao pensamento lógico; o idealismo romântico é substituído pelo objetivismo realista, fruto de todas essas mudanças sociais e ideológicas. O conceito de realismo deve ser tomado como a filosofia que se opõe ao idealismo romântico. Ao movimento artístico fruto desse pensamento, dar-se-á o nome de naturalismo. Hauser fala a respeito do estilo realista; diz que o naturalismo tem como principal critério a probabilidade do empirismo das ciências naturais. Seu conceito de verdade psicológica é baseado no principio de causalidade; ou seja, no desenvolvimento de uma trama que elimina a influência do acaso e da metafísica. Seu principio é descrever o ambiente para fundamentar a ideia de que cada fenômeno natural está ligado a uma cadeia de motivos. A utilização desse recurso que pretende detalhar o objeto narrado, ou a cena, ou os envolvidos, é característico do método de observação científica, que não deve desprezar detalhe algum, por mínimo que seja (HAUSER, 2003). O detetive de Poe é aquele que busca dominar as leis gerais, através desse processo de observação, assim como seu narrador também será aquele que observa seu herói. Seu olhar investigará o homem em seu habitat: a cidade grande. Um pensador por excelência, conhecedor de todos os aspectos da vida urbana que, através da associação de ideias, é capaz de resolver qualquer enigma que seja apresentado, inclusive o crime aparentemente sem solução. Dupin toma conhecimento dos fatos através da notícia de um jornal local e desvenda o mistério, depois de um exame cuidadoso do local do crime. Seu trabalho é estritamente intelectual em oposição ao chefe Vidocq, cujo contato criminal era empírico. Outra oposição a este é o fato de Dupin solucionar enigmas por hobby e não como um funcionário da lei, que, como já visto, perdia a credibilidade na esfera social. O período em questão é aquele no qual a burguesia estava ascendendo, isso irá repercutir na literatura tornando o escritor um comerciante de sua arte, esta por sua vez será o produto e o leitor se tornará o freguês. Tendo em vista esse mecanismo, o sucesso de Poe foi imediato. Escreveu mais dois contos na mesma linha: The Mistery of Marie Roget (1842-43) e The Purloined Letter (1845).

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4.1.3 Disseminação do gênero “Seu detetive, Dupin, deu vida a toda uma geração de personagens literárias populares – aos heróis da moderna ficção policial: o Inspetor Bucket de Dickens, o Sargento Cuff de Willkie, o Lecop de Gaboriau, o Sherlock Holmes de Conan Doyle e dúzias de outros.” (ZABEL, 1947) A produção policial de Poe encerra-se nos três textos citados, mais tarde publicados em coletâneas de contos e traduzidos pelo mundo todo. Na França, tornou-se conhecido através das traduções de Charles Baudelaire (1821-1867), publicadas em 1848. Tais contos inspiraram autores de muitas gerações que lançaram mão das convenções estabelecidas e foram acrescentando outros aspectos; assim nasceu o romance policial. Este acréscimo de aspectos (ou supressão, como veremos adiante) deu ao romance policial varias faces pelas quais discorreremos a fim de enquadrar o nosso. Boileau-Narcejac diz que “o gênero policial não se subdivide em espécies. Apenas apresenta formas historicamente diferentes” (1964, apud TODOROV, 2006). Como herança da literatura clássica, a classificação das obras precediam a própria obra, ou seja, o gênero e suas convenções teriam de ser obedecidos, assim, a obra mais valorizada era a que se enquadrava perfeitamente e não a que apresentava “originalidade”. A partir do romantismo, a criação literária quebra esse estigma: a obra passa a ser valorizada em si, negando as regras e até a noção de sua existência; ela (obra) ganhava primeiro plano. Há também na escola romântica o mito de que a arte é a expressão mais íntima do ser; de que o escritor supostamente sentiu ou viveu aquilo que escreveu. Num homem fruto de uma sociedade capitalista, a literatura que ganhará prestígio é justamente esta que valorizará o indivíduo, que será essa suposta expressão íntima. O escritor burguês é aquele que vai comercializar sua arte como uma mercadoria. A novidade e a identidade com o leitor será sua propaganda. As escolas seguintes negarão muitos preceitos românticos, mas conservarão outros: vão buscar motivos nas pessoas, no fait divers, na vida real. É por isso, por exemplo, que Poe suprime nomes e datas em seus contos: supostamente para proteger a imagem de pessoas reais, para dando-lhes um tom realista, aproximando assim, o leitor da leitura. Outro aspecto mantido é a obra que antecede ao gênero e à própria literatura, é o produto, que se eleva cada vez mais numa sociedade consumista. Desde então o estudo dos gêneros é pouco desenvolvido, o que há é uma busca pelo meio termo entre: o estudo da literatura em geral, como instituição; suas subdivisões (os gêneros); e o objeto de sua realização: a obra. A tipologia provém e é proveniente da descrição desses objetos. Avança até a estrutura em que se enquadra, dando margem às

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novas estruturas resultantes da descrição de novos textos, como um ciclo que se distanciou de sua origem e está longe de terminar. (TODOROV, 2006) 4.2 TIPOLOGIA 4.2.1 O romance de enigma Nesse tipo de romance, a primeira história, ou a do crime, contém o que supostamente aconteceu; é a realidade evocada; os acontecimentos mundanos; a ordem natural. É o que importa, porém está ausente: é uma imagem filtrada pelo narrador. É o que aconteceu no passado precedente à narrativa. Por estar encerrada no momento em que começa a segunda estória, ou a da investigação, o detetive goza de imunidade. Nada pode lhe acontecer, uma vez que esse trabalho é essencialmente psicológico, ele apenas segue os indícios. Essa segunda estória pode ser perfeitamente ilustrada pelo ato de completar um quebra-cabeças: o crime é a imagem em sua totalidade, as peças seriam as pistas e o mistério é ilustrado pelas peças soltas.

Cada pista possui um pequeno fragmento que

complementa a imagem total. O trabalho do detetive é descobrir onde se encaixam até remontar a imagem do crime, mas nada poderá fazer que altere o resultado final. Essa estória é escrita em forma de livro, ou seja, narrada como memórias de um observador, amigo do detetive. Leva em conta essa realidade de livro, construída metalinguisticamente. O propósito do narrador é restringido a registrar os feitos do amigo. Este narrador revela-nos como ele tomou conhecimento dos fatos e o leitor, por sua vez, vai tomando conhecimento à mesma medida que ele. Aqui é onde o quebra-cabeças pode ser montado sem seguir uma ordem, as peças não serão postas necessariamente em sequência, elas vão sendo postas à medida que o narrador toma conhecimento dos acontecimentos, o que deixa algumas lacunas e mantém o mistério até as últimas páginas. A função do narrador, supostamente, não passa de intermediar o contato entre o que teria ocorrido e o leitor. Hipoteticamente não é importante em si. Só existe em função do passado. A característica constitutiva da narrativa são seus temas. Eles justificam-na e naturalizam-na. Por isso deve ser tida como livro, para que, dentro de seu contexto, a situação expressa faça sentido. Portanto, quanto mais neutro, o estilo da narração, melhor. Ela ignora a existência de um narrador. 4.2.2 o romance negro A outra vertente do policial é o romance negro. Nasce também nos Estados Unidos e ganha grande prestígio na França, onde é conhecido como série noire. Este tipo funde as duas histórias antes separadas, ou dá vida à segunda, fazendo-a coincidir com a ação da primeira. Não é um memorial por não haver um ponto de chegada a partir de onde se faz um retrospecto. Este dá lugar à prospecção. O detetive perde sua imunidade, não se sabe se 8

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chegará vivo até o fim da narrativa e sequer se um crime será cometido, pois os fatos são tão moldáveis que seria possível impedi-lo. Trabalha a curiosidade do leitor de maneira absoluta, pois sua atmosfera é toda envolvida no suspense, não que no primeiro estilo não seja, mas sabe-se que o crime terá uma solução. Já aqui cabe a dúvida, pois as personagens são vulneráveis à ação. Sustenta a expectativa em torno do que irá acontecer. É o “to be continued” tão famoso ainda hoje. A elucidação ganha segundo lugar, quando vidas estão em jogo. Aquilo que diferencia os dois tipo do policial, é justamente a oposição entre as duas histórias. Porém, os gêneros não se constituem apenas em conformidade com as descrições estruturais. O romance negro é constituído também por temas que podem variar de acordo com o momento histórico. A segunda história adquire papel central e o mistério dá lugar ao suspense em torno do que pode ou não acontecer. Embora haja uma aproximação dos dois termos, a diferença está no fato de que, ao iniciar a leitura de um romance de enigma, o leitor sabe que o crime será solucionado. Já no segundo, os acontecimentos são passíveis de mudanças tão impressionantes que podem influir no desfecho; é aí onde mora o suspense. 4.2.3 As regras de cada tipo Há romancistas que prescrevem a elaboração do romance policial, como S.S. Vin Dine (1928 apud TODOROV, 2006). Há teóricos que descrevem tal processo, como Todorov. Partindo das regras de Vin Dine vamos procurar enquadrar Leroux ou apenas descrevê-lo no ponto em que não for possível prescrevê-lo. Ele elabora uma lista de vinte, que Todorov reduz à oito, por julga-las redundantes, postura que adotaremos. Uma parte delas diz respeito à toda produção policial, a outra se restringe ao romance de enigma: É permitido apenas um detetive e um culpado; o culpado não pode ser um profissional, nem o detetive nem o crime deve ter razões pessoais; o amor não tem lugar no romance policial; o culpado deve gozar de certa importância, não podendo ser, na suposta vida extratextual, um empregado ou de procedência humilde e, no livro, ser uma das personagens principais. Até aqui, vimos características do romance de enigma, as que se seguem aplicam-se também ao romance negro: a explicação deve ser racional, não dando margem ao sobrenatural; não há lugar para descrições nem para análises psicológicas; é preciso evitar o que Vin Dine chama de “soluções banais” como, por exemplo, o culpado ser o mordomo; existe a seguinte homologia: autor=culpado x leitor=detetive, ou seja, o autor, no momento que está narrando, sabe tanto quanto o culpado, já o leitor, se equipara ao detetive. Se nos detivermos um pouco nestas regras, é possível notar que as regras aplicáveis ao romance de enigma, dizem respeito à primeira história, à suposta vida real, já as outras são 9

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do âmbito da trama, de como se apresenta a vida real. Isto é a prova de que no romance negro, a segunda estória ganha vida, pois o estilo do narrador deve fazer-se presente; segue regras. Nos romances de Leroux há variações como: há mais de um detetive, um deles é o próprio criminoso e que é também um profissional. Por outro lado, seus motivos são pessoais. Porém, sua estrutura narrativa e outros aspectos são suficientes para enquadrar Leroux na série noire. 4.3 A SÉRIE NOIRE 4.3.1 Um estudo em vermelho Em 1887, o inglês Artur Conan Doyle lançou A study in Scarlet, romance de estreia de uma personagem que ganhou fama mundial e atemporal: o famosíssimo detetive Sherlock Holmes e seu fiel amigo, o “caro Watson”, que assume papel de narrador em primeira pessoa. A narrativa apresenta, como no conto de Poe, um enigma aparentemente insolúvel, a incapacidade da polícia, o mistério, sua solução por parte do detetive cientista através de seu trabalho intelectual, etc. Esta narrativa é mais longa e se diferencia da de Poe em certos aspectos; por exemplo, enquanto na segunda os fatos são intermediados puramente pela concepção do narrador, que têm acesso aos fatos através dos jornais e “assumem” o caso como um hobby; no segundo caso

o detetive é profissional, procurado pessoalmente.

Assim, a vítima, o criminoso e o crime em si, ganham um foco maior: a certa altura do romance, o narrador deixa de ser o dr. Watson, este outro, não nomeado e onisciente, faz uma extensa narração dos antecedentes até chegar ao crime. Neste momento o detetive sequer é citado. Outro aspecto diferente é que novos assassinatos ocorrem durante o tempo narrativo, ou tempo cronológico. Com o crime em primeiro plano e os acontecimentos “em aberto”, temos um romance negro, o primeiro de uma série lida e apreciada até os dias atuais. 4.3.2 Leroux e a tradição policial Em 1907, influenciado principalmente por ambos (Poe e Doyle), Gaston Leroux lança Le Mystère de la Chambre Jaune, livro que retoma a ideia do crime cometido num quarto hermeticamente fechado, sem alternativas de fuga e sem suspeito no local. O caso é resolvido pelo jovem repórter Joseph Rouletabille, que tem acesso direto ao crime devido a sua profissão A trama é narrada por seu fiel amigo, monsieur Sainclair. Leroux ganhou grande prestígio e foi logo reconhecido como autêntico seguidor de Poe e Conan Doyle. Jean Cocteau, em seu prefácio para este livro, diz: “Num gênero em que Edgar Allan Poe foi rei, Gaston Leroux, sem dúvida, foi príncipe.” (1999) 10

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4.4 ANÁLISE 4.4.1 Madame e Mademoiselle L'Espanaye, Marie Rogêt, Madamme “…” e Lucy Ferrier, motivos livres Nos três contos de Poe em que o detetive Dupin aparece, há personagens femininas que não estão envolvidas diretamente na trama. Em The Murders in the Rue Morgue, o fato das vítimas serem mulheres não tira o mérito do detetive e a atmosfera sombria da narrativa, nem interfere na solução do crime. Este dado serviria apenas para aumentar o teor trágico: o leitor, já abalado pela narrativa incisiva de Poe e sua ambientação sombria, ao se deparar com o assassinato de duas mulheres cujo vínculo familiar é tão relevante (mãe e filha), se vê frente a um assassino brutal; afinal, quem ou o que seria capaz de fazer mal a criaturas tão inofensivas? Visto isso, podemos facilmente concluir que se trata de um recurso estético, da trama, um motivo livre. O mesmo ocorre com The Purloined Letter. Somente em The Mistery of Marie Roget o fato de a vítima ser uma mulher tem caráter de motivo associado, pois se trata de um crime passional. Muito embora, não é o que poderia ser considerada uma personagem decisiva em certo ponto de vista que trataremos logo mais. Há uma grande semelhança entre Lucy Ferrier de Doyle e Marie Roget: a narrativa também gira em torno de um crime passional, portanto sua existência como mulher passa a ser relevante. O que também pode ser relativo: se virmos da perspectiva do crime, é indispensável. Porém, da ótica da investigação, novamente o papel dela perde seu valor: ainda que tenha certa relevância sua personalidade é pouco explorada, no sentido de ser padronizada e até clichê literário: é a mais bela da cidade onde cresce, é uma filha exemplar e sonha com um amor ideal. Nestes dois casos, são personagens poucos desenvolvidas na trama, não têm voz no texto e, se considerarmos o ponto de vista da segunda estória, a da investigação, são facilmente esquecidas e, assim, tidas como motivos livres. Já da perspectiva da primeira estória, a do crime, tornam-se relevantes se o virmos como o ponto de partida do romance. Mesmo assim encontraremos questões igualmente relevantes. Por exemplo: a doutrina da comunidade em que Lucy e seu pai viviam não lhes agradava. O fato dos mórmons praticarem a poligamia levou os dois a fugirem e a serem perseguidos; seu pai é morto e Lucy obrigada a casar e morre logo em seguida, por conta do abalo psicológico que sofreu. O noivo, por sua vez, comete os crimes investigados por Holmes, como um ato de vingança. Ainda que consideremos os antecedentes do crime, não podemos esquecer que o romance policial é voltado mais à sua solução. Podemos dizer, num olhar mais abrangente, o fato de serem personagens femininas é de pouca ou nenhuma importância. Para ilustrar, podemos ressaltar que, em momento algum

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dos contos, as personagens tem um discurso direto, e no caso do romance, suas falas são pouco significativas. O discurso direto seria justamente a voz da personagem, como se a pena fosse posta de lado para dar certa independência à criatura. 4.4.2 Paráfrase de Le Crime de Rouletabille O romance é a história de um jovem repórter investigativo, Joseph Rouletabille, acusado de ser assassino de Roland Boulanger, um renomado cientista, e de Ivana Vilitchkov, sua própria esposa. Ivana era pesquisadora do Instituto Roland Boulanger. Devido a sua dedicação e competência, tornou-se a segunda assistente do grande homem. Apesar de ser um cientista famoso, Roland não era bem quisto por todos. Um pouco por seus trabalhos e teorias polêmicas e inovadoras para a época, um pouco por sua personalidade. Tinha fama de mulherengo e se envolveu em vários escândalos amorosos. Sua esposa era totalmente dedicada. Apesar de sua formação literária, seu amor por ele fez com que adquirisse grande conhecimento cientifico e tornou-a seu braço direito, sendo ela a primeira assistente. Ela fazia vista grossa aos casos extraconjugais do marido, até que um deles chegou a ameaçar seu trabalho e sua saúde: Roland se envolveu com uma cortesã, Theodora Luigi. Ela era viciada em ópio. Com medo de que o vício prejudicasse a saúde de seu marido e até o futuro da medicina laboratorial, Thérèse intervém contra a relação dos dois. Com a partida de Theodora, tudo volta ao normal, mas por medo de que Roland não a tivesse esquecido, Thérèse pede à Ivana que seduza seu marido, para que esqueça a amante de vez. Ivana aceita, com o consentimento de seu marido. Porém Theodora volta à Paris e Roland tem uma recaída. Vendo que seu plano não havia funcionado, Thérèse resolve tomar medidas drásticas: matar ambos, porém acaba matando Ivana por engano. O caso que vem a público e Rouletabille passa a ser o principal suspeito. Chega a ser perseguido e agora, além de lutar contra a dor da perda, terá que desvendar o caso para honrar o nome de sua esposa e se livrar da acusação. É importante ressaltar que, já aqui, podemos constatar a relevância das personagens femininas , pois não poderiam ser deixadas de lado da fábula, ou seja, são motivos associados. Indispensáveis ao enredo. 4.4.3 “Elementar, mon cher Sainclair!” O romance é estruturado a partir de uma narrativa em primeira pessoa, do ponto de vista do amigo do protagonista, monsieur Sainclair. O tempo psicológico são as memórias deste amigo já anos distantes do ocorrido. Quanto ao cronológico e à ambientação, trata-se de 12

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Paris do século XIX: a cidade das luzes está em pleno desenvolvimento urbano, social, científico e comercial. É sinônimo de requinte e modernidade. A classe social dominante é a alta burguesia. Entre os tipos de narrador, o mais comum entre o gênero policial, ou ao menos entre as obras abordadas, é o aquele em primeira pessoa. O que implica em um narrador envolvido com os acontecimentos que narra, mas não necessariamente em uma personagem principal. Convencionalmente o narrador é um amigo íntimo do detetive, que vai, de maneira discreta, persuadindo o leitor a se identificar com o protagonista, através de seu olhar fraterno e de admiração. Logo no primeiro parágrafo, do primeiro capítulo, intitulado Réflexions et souvenirs d'un ami1, tal intenção fica clara: “Avec quelle émotion nouvelle, à plus de dix ans de distance, moi, Sainclair, je reprends une plume qui a tracé le sensationel > du Mystère de la Chambre Jaune et les premiers hauts faits du jeune reporter[...]”2 (LEROUX, 1976) O narrador então faz uma pequena introdução relembrando antigos feitos de seu amigo, referindo-se a romances anteriores, que ele chama de relatórios (rapports no original). Aqui ele retoma o primeiro livro da série, Le Mystère de la Chambre Jaune, no qual Rouletabille resolve seu primeiro grande caso e ganha fama. Depois faz referências aos romances nos quais conheceu e se casou com Ivana. Rouletabille chez le Tzar e Les Stranges Noces de Rouletabille, respectivamente). A história começa quando ele é convidado por seu amigo a fazer-lhe companhia em Deauville, local das dependências dos Boulanger. A proximidade lhe possibilita construir um perfil do protagonista, apontando seus hábitos, ideias, valores e até mesmo características físicas que não são necessariamente objetivas, que ajudam a convencer o leitor, por terem um aspecto de testemunho, de observação. A credibilidade é alcançada também pela disposição do narrador a tratar um ser que merece notoriedade. Colocar-se em segundo plano já atribui certa importância ao protagonista, de maneira tão sútil que o leitor mal percebe a artimanha. Indo além, o narrador em primeira pessoa e a narrativa em forma de memória, não são apenas ferramentas usadas para destacar o protagonista, afinal, é através de sua mediação que tomamos conhecimento de todos os fatos e demais personagens do romance. Como a narrativa é póstuma, ela dá dicas que, num primeiro momento passam despercebidas,

1 “Reflexões e lembranças de um amigo” (N. A.). 2 “Com a mesma emoção da época, mais de dez anos depois, eu, Sainclair, retomo a pena que registrou o sensacional do Mistério do Quarto Amarelo e os primeiros grandes feitos do jovem repórter.” (N.A.)

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porém um leitor mais atento entenderá que são presságios do que está por vir. Também na primeira página, temos um exemplo: “Le Crime de Rouletabille, sombre tragédie où roulent d'effroyables ténèbres et sur le seuil de laquelle apparait le doux monstre à la tête de sphinx: l'éternel féminin!...”3 “O Crime de Rouletabille, sombria tragédia na qual pairam trevas tenebronas e sobre aquela Além de preparar o leitor para acontecimentos “terríveis”, o narrador já introduz a importância da mulher no romance. De si mesmo fala pouco, talvez para dar credibilidade ao relato, talvez como marca de seu temperamento retraído e discreto. 4.4.4 Rouletabille e “le bon bout de la raison” A imagem que Sainclair constrói de Rouletabille, a princípio, é de um jovem repórter bemsucedido e brilhante, de um bom humor constante e que conquista a simpatia de qualquer um por ser dotado de um “espírito original”. Possui um talento nato de detetive amador que transparece em suas reportagens ao redor de mistérios tão complexos capazes de enganar até os investigadores mais experientes. Já desvendou casos importantíssimos e até fora de seu país. É famoso por seus feitos. A descrição é repleta de adjetivos, superlativos e outras figuras de linguagem que denotam afetividade. Seu método é lógico, consiste em encontrar “o lado certo da razão”, reconhecido por ser aquele considerado incorruptível, que não é passível de erros. Observa os fatos e deduz aquilo que não está explícito, esgotando as possibilidades. Apesar de seu caráter racionalíssimo, é apaixonado por sua esposa, a jovem Ivana que exerce grande influência em si. Conheceram-se em meio a casos passados: envolvida em um dos mistérios que ele investigava, estava a jovem. Rouletabille a viu pela primeira vez no Hospital Pitié-Salpêtrière, um dos maiores centros de estudos medicinais da época. Em outro romance, alguns acontecimentos sangrentos em torno da Guerra dos Balcãs serviram de prólogo para seu casamento com o jovem repórter na Igreja de Madeleine, localizada ao centro de Paris. A medida que o romance avança, o humor de Rouletabille se transforma. Tal transformação é fácil de ser constada pela proximidade de ambos (protagonista e narrador). Apesar de não transparecer no início, Rouletabille fica enciumado com o plano de Thérèse, mas não nega seu pedido desesperado, por ter um “bom coração” e por confiar em sua esposa.

3 "O Crime de Rouletabille, tragédia sombria na qual se desenrola uma tenebrosa escuridão e sobre o limiar da qual aparece o doce monstro na cabeça da esfinge: a mulher eterna" (N. A.) 14

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No início Sainclair não sabe do arranjo; depois, passa a ser contra, principalmente por notar o efeito que ele tem sobre seu amigo. Aqui a empatia do narrador começa a atingir o leitor mais diretamente. Embora incomodado com a situação, Rouletabille a suporta. Chega a ter algumas crises, mas em segredo e só as partilha com Sainclair, por medo inclusive de ofender sua esposa. 4.4.5 Ivana Vilitchkov De uma beleza exótica, Ivana Vilitchkov é nascida na Bulgária, pertence a uma das famílias mais ilustres da cidade de Sófia. Veio à Paris ainda muito jovem a fim de estudar medicina. Envolveu-se em um dos casos que Rouletabille cobria, foi assim que o conheceu e tornouse sua esposa. Foi enfermeira na Primeira Guerra Mundial. Com o seu fim, dedica-se completamente à pesquisa e à medicina laboratorial, é assim que se envolve com o Instituto Roland Boulanger, referência da área na época. Além de ser constantemente exaltada por sua beleza, o é também por sua competência profissional e seu caráter: é bondosa e fiel a seu marido. O século das descobertas é um ambiente de prevalência masculina, porém Ivana é inserida neste universo, o que pode ser interpretado como um sinal de que os tempos estavam mudando, que a mulher estava ganhando outros espaços, inclusive na literatura. O próprio narrador representa um certo conservadorismo a este respeito. Sainclair diz, logo nos primeiros capítulos, que em ocasião de uma festa da alta sociedade, ficou chocado com a vestimenta de algumas mulheres, pois suas costas estavam nuas, o que ele, evidentemente reprovou. Aqui temos duas marcas: o conservadorismo masculino e os sinais da mudança do comportamento feminino. a mulher fica mais ousada, mostrar as costas, no contexto, pode ser considerada como uma atitude a frente de seu tempo. Ele critica também, de maneira sublime, uma espécie de submissão de Rouletabille à sua esposa: em diversos momentos da narrativa, deixa claro a opinião de que a culpa do desastre é da permissividade do amigo. O fato de Rouletabille ceder ao pedido de irem morar nas dependências do cientista, teria sido o princípio de tudo. Novamente, o narrador nos diz que o desfecho tem a ver com o papel da mulher no romance e se mostra conservador. Sainclair sugere que seu amigo é incapaz de raciocinar perante os encantos de sua mulher. Isso é novidade no romance policial: o amor carnal leva o detetive a ir contra o que pensa, contra a sua razão. Dessa forma, ele perde o controle sobre o desfecho; a responsabilidade deste passa a ser dos “caprichos femininos”, ou seja, da vontade da mulher.

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Porém, o próprio Rouletabille rebate essa ideia, afirmando que a decisão estava nas mãos de ambos e foi tomada com o propósito de ajudar uma a amiga. Porém, em alguns momentos ele fica prestes a perder o controle. A novidade então, é justamente a divisão do detetive entre a razão e a emotividade. Embora contrariado, aceita o trato e busca controlar suas emoções. E quando cede e decide por um fim no acordo, a decisão já não estava em suas mãos; os acontecimentos levam quase que automaticamente para isso: Theodora estava em Paris. Ela e Roland se encontrariam na ocasião de um baile. Com exceção de Thérèse, todos são testemunhas do fracasso do plano. Ela produz Ivana caprichosamente, para que detenha a atenção de todos e não deixe que o brilho de Theodora lhe ofusque. O narrador a descreve como detentora de uma beleza angelical e ao mesmo tempo sensual. Chama a atenção de todos; os olhares de Roland fazem com que Rouletabille perca o controle e decida por um fim naquilo tudo. Porém, o fracasso do plano é que leva a este fim. Na cena em que Ivana disputa a atenção de Roland com Theodora, segundo o narrador, há certa vaidade por parte de Ivana. Se a vaidade estava presente em Ivana ou não, é passível de dúvidas, pois é o narrador quem nos passa tal informação. Independente disso, fazendo uma análise mais profunda da cena, certa disputa de atenção fica clara. Se não vaidosa, Ivana foi no mínimo ousada. O fato de ter uma carreira profissional, além do papel de esposa, denota alguma independência conjugal. Outro aspecto é o fato de não terem filhos. Duas novidades para o contexto, no qual a mulher era basicamente, mãe e esposa. Considerando as narrativas de Poe e de Doyle, antes do romance de Leroux, no gênero não houve uma mulher cujo papel não se limitasse a filha dedicada, amante fiel, mãe carinhosa, etc. Primeiro, a mulher era idealizada. Era posta num plano superior. O homem buscava em vão a mulher de seus sonhos, seu amor nunca se concretizava em vida. Um pouco mais adiante, no realismo, a mulher perde essa aura, mas não o papel na sociedade. O amor passa a ser carnal e a mulher começa a perder a atmosfera angelical. A sociedade burguesa mantém costumes denunciados por esse período literário, como por exemplo, o casamento por interesse. O homem era educado para cuidar dos negócios enquanto o papel da mulher era o de cuidar do lar, dos filhos e do marido. Com a transformação da sociedade, na qual a mulher passa a ter um papel mais ativo, ela ganha um outro espaço também na literatura.

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Até aqui podemos constatar uma mulher de personalidade complexa. É angelical e ao mesmo tempo sedutora. Esposa dedicada e profissional competente. É um exemplo prematuro da mulher moderna: a “multi” mulher. Vira também um mártir, pois na ocasião de sua morte, foi ao encontro de Roland para interceder a favor de sua amiga. 4.4.6 Thérèse Boulanger No princípio, o que sabemos de Thérèse é que é não tem outra ambição pessoal que não seja seu marido. Era viúva, herdeira de grande fortuna, quando se apaixonou por Roland. Nesta época, seu nome já era destaque na medicina, porém trabalhava na área clínica para poder financiar suas pesquisas. Com o casamento, ele abre seu próprio centro de pesquisas. Se por um lado temos um casamento de interesse por parte dele, por outro temos uma mulher que de certa forma “compra” o amor de seu objeto de desejo. Ainda que viva em função de seu marido, que esteja submissa a ele, é, de certo modo, manipuladora, pois usa o dinheiro para conseguir o que quer. O fato de seu marido não amá-la de verdade não a incomoda, como ela mesma diz, em certo ponto, aceitava que tivesse quantos casos desejasse, desde que nunca a abandonasse. Traços de uma personalidade possessiva. Não fazia questão de que seu nome viesse a público ligado ao sucesso de Roland, tanto que o instituto financiado por ela, carregava apenas o nome de seu marido. Havia boatos de que tinha grande participação em algumas de suas descobertas, mas era a primeira a negar tais boatos. É, talvez, a personagem mais emotiva. Representa a esposa submissa a seu amor, ou ao desejo de possuir o amado. É controladora nesse aspecto. O próprio pedido de que Ivana seduzisse seu marido, prova que queria ter o controle da situação, pois ela era quem planejava tudo. Ao notar que o plano não havia funcionado, a personagem sofre transformações: vive doente, cabisbaixa, pelos cantos. Começa a seguir seu marido, suborna criados, compra informações para sondar o caso. Assim, descobre que Roland pretende fugir com Theodora. Então perde o controle e decide mata-los. Mesmo ao ver o amigo que tanto a ajudou sendo acusado pelo crime que ela cometeu, não se entrega. Em nenhum momento o narrador desconfia dela. Este fato somado aos demais, nos mostra uma mulher de má índole, manipuladora, dissimulada e até desiquilibrada psicologicamente. Mesmo quando, em julgamento Rouletabille a aponta como autora dos

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crimes, ela tenta negar, porém sua saúde psicológica está tão abalada que é incapaz de sustentar a mentira por mais tempo. Finalmente morre, abalada por todos os acontecimentos. É outra mulher trabalhada através da dualidade, porém de maneira mais contrastante, mais elevada. 4.4.7 Theodora Luigi As informações que temos e que podem ser consideradas concretas são: a de que era cortesã (pois era conhecida por todos), era usuária de ópio (segundo sua própria criada) e que mantinha relacionamentos extraconjugais, após se casar com o príncipe da Albânia. Sua fama é de mulher extravagante, sedutora e independente. Quanto ao seu relacionamento com Roland, nada podemos afirmar a respeito de suas intenções ou sentimentos, pois, como dito antes, essas informações são dadas através do narrador. Esta parece ser a mais revolucionária das mulheres. É tida por Sainclair como a grande vilã da história. Mesmo depois de saber que Thérèse cometeu os crimes, atribui à primeira a culpa de tudo. Porém não podemos esquecer que o narrador tem uma visão, apesar do que pretende, marcadamente subjetiva. Sendo conservador, é um antagonista direto de Theodora, que é um símbolo muito forte contra os bons costumes: era cortesã e viciada em ópio. Tudo o que é dito a seu respeito, é através de Thérèse ou de Sainclair, personagens que têm motivos diretos para vilanizá-la. Porém, em momento algum temos uma confirmação exata de sua perversidade. Não podemos esquecer o caráter de Roland e nem sua paixão. Há rumores de que pretende fugir com Roland, mas no encontro em que supostamente iriam acertar tudo, ela não aparece. É como se ela própria não o amasse, ou não estivesse subjugada a qualquer sentimento. Mesmo que tomemos tudo o que é dito a seu respeito como verdade, essa mulher posta como vilã, pode ser também um símbolo da mulher a frente de seu tempo, pois até então, nos romances já citados, o comum era que ela fosse boa, fiel, honesta e angelical. 5 CONCLUSÃO O romance policial é um gênero popular. Apresenta duas vertentes, mesmo assim, há pouca possibilidade de inovação em qualquer uma das duas. Na arte popular não há espaço para a dialética entre gênero e obra: a melhor é a que mais se enquadra, mas difere da estética classicista por seu caráter popular. O romance policial por excelência, considerado de massa, é aquele que se adapta às regras. Destes nada temos a dizer, porém, aquele que as “quebra” sai do âmbito prescritivo, acabando assim, por fazer literatura.

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Após o fim da pesquisa, foi possível constatar que o romance escolhido além de uma simples narrativa policial. As novidades presentes nas que evoluíram dos exemplares originários, são de ordem estrutural. Muitos escritores fizeram fama seguindo essa receita, porém poucos apresentaram originalidade, como é o caso de Leroux. A temática presente em sua obra dialoga com seu momento histórico: o século XIX. Através das personagens e ambientes, ele representa e analisa seu meio social. O objeto desta pesquisa era o papel feminino. O grande trunfo do autor é justamente como são trabalhados: suas personalidades são fortes e distintas. As características femininas vão além do clichê; a mulher apresenta uma dualidade, mesmo a bela e angelical esposa do protagonista, é vista, em muitos momentos, por uma ótica que contradiz estes preceitos e explora seu psicológico de um modo mais complexo. Além de girar em torno de duas outras, tão importantes quanto a primeira. A novidade não se detém na figura feminina, o detetive também é outro: seu humor é mais maleável, esta entre a razão e a emoção, se apaixona e vive um grande amor. Rouletabille é protagonista de muitas aventuras, mas com certeza, poucas são tão marcantes quanto esta que encerra seu ciclo com chave-de-ouro. REFERÊNCIAS DOYLE, A. C. Um estudo em vermelho. São Paulo: Ática, 1996. HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura; tradução Álvaro Cabral, São Paulo, Martins Fontes, 1998, 4ª edição. LEROUX, G. O mistério do quarto amarelo. Trad. De Duda Machado, Apresentação de Marcos Rey e Posfácio de Geraldo Galvão Ferraz. São Paulo: Ática,1999. p. 7-9, 271-277. LEROUX, G. Le crime de Rouletabille. França: Brodart et Taupin, 1976. 222 p. POE, E. A. Histórias extraordinárias. Trad. de Brenno Silveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. REIMÃO, S. L. O que é romance policial. São Paulo: Brasiliense, 1989. 87 p. (Coleção Primeiros Passos, v. 109) TODOROV, T. A. As estruturas narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2006 ZABEL, D. M. A literatura dos Estados Unidos: suas tradições, mestres e problemas. Trad. De Célia Neves. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1947. p. 81-102.

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