SUBJETIVIDADE DA LINGUAGEM EM VIDAS SECAS: DISCURSO ...

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Vidas Secas é uma narrativa em treze capítulos, curtos, aparentemente .... Alfredo Bosi no artigo “Sobre Vidas Secas” do livro Os pobres na literatura brasi-.
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SUBJETIVIDADE DA LINGUAGEM EM VIDAS SECAS: DISCURSO POPULAR E IDENTIDADE Cintia Cecilia Barreto (UFRJ; UNEC)

Vidas Secas é uma narrativa em treze capítulos, curtos, aparentemente independentes, pois foram publicados, a princípio, como contos, mas que, ao longo da história, formam um todo pela recorrência de motivos e temas. Outra divisão, em três partes, também é proposta por alguns críticos, em: fuga, permanência e fuga novamente. Nesse livro, é contada a história de uma família de retirantes: Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais novo, o menino mais velho e a cachorra Baleia. Essa família sofre com a seca, com a fome e com a iminência, a todo tempo, da morte. Na obra, o autor narra, então, a luta desses viventes para sobreviverem apesar de. Apesar da seca, apesar da falta de estudos, apesar da falta de comunicação entre os membros da família, apesar do abuso de poder, apesar das perdas, apesar da falta de perspectivas futuras, apesar de suas próprias vidas . . . secas. A angústia toma conta da história. Os sonhos são pequenos. Seus nomes são pequenos. Seus filhos são pequenos. Seus vocábulos são pequenos, seus sons guturais, secos de certas palavras, assim como de palavras certas. Secas são suas vidas. Secas estão suas esperanças. Seca e dura é a cama de Sinhá Vitória. Secos são os sentimentos de Fabiano. Seca é a terra. Seco é o céu. Seca é a história sobre os viventes. A obra é feita de ausências: de água, de nomes, sobrenomes, de palavras, de dinheiro, de respeito. O silêncio fala muitas vezes por eles e, Graciliano mostra, a partir de comparações entre homens e animais, a zoomorfização dos homens ― Fabiano se compara, intermitentemente, a um bicho, assim como seu filho ― e a antropomorfização do animal ― Baleia, embora cachorra, possui as sensações mais humanas da história e cabe a ela também o momento mais dramático da narrativa. A ela, Graciliano provê alegrias e tristezas, vida e morte; aos demais personagens, cabe apenas a sobrevivência. O homem que vive aspira. Dessa forma, Sinhá Vitória aspira a uma cama de verdade, macia. O menino mais novo cobiça ser igual ao pai, vaqueiro, imponente. O menino mais velho contenta-se com a amiga Baleia e aspira às respostas que os pais não podem fornecer. Fabiano almeja ver os filhos estudando, Sinhá Vitória bonita, com roupas novas. Baleia deseja um céu cheio de preás. Todos aspiram à vida. São viventes. São sertanejos natos. E sertanejo, já disse Guimarães, “é sobretudo um forte”. Graciliano: uma espécie de fabiano A partir do contexto sócio-político-econômico do Brasil dessa década de 30, não é difícil entender o surgimento na prosa brasileira do tema regional, apontando os problemas sociais da época. Escritor regionalista que foi, Graciliano narrou a realidade de uma determinada região e as injustiças sofridas pelas camadas desprestigiadas, assim como ascensão e queda de determinadas estruturas político-sociais.

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Em Ficção e confissão (1992), de Antonio Candido, Graciliano, ao agradecer os cinco artigos escritos pelo crítico sobre sua obra, confessou-se “uma espécie de Fabiano”, como se pode constatar em: Onde as nossas opiniões coincidem é no julgamento de Angústia. Sempre achei absurdos os elogios concedidos a este livro, e alguns, verdadeiros disparates, me exasperavam, pois nunca tive semelhança com Dostoievski nem com outros gigantes. O que sou é uma espécie de Fabiano, e seria Fabiano completo se a seca houvesse destruído a minha gente, como V. muito bem reconhece. (RAMOS, 1992, p. 8)

É fato também que Graciliano, ao julgar-se uma espécie de Fabiano — apenas com um pouco mais de sorte — ratifica, a princípio, a subjetividade de sua linguagem, principalmente, no que tange a elaboração de Vidas Secas. Seria, então, Fabiano o alter-ego do autor? Parece que sim. Segundo Stuart Hall, “psicanaliticamente, nós continuamos buscando a ‘identidade’ e construindo biografias que tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque procuramos recapturar esse prazer fantasiado da plenitude.” (2003, p. 39). Assim, a partir de Vidas Secas, o autor alagoano escreve a história de um povo sertanejo, buscando uma identidade regional por intermédio de um discurso popular, questionador, político. A voz, ou melhor, o pensamento de Fabiano confundese, vez ou outra, com o pensamento de um intelectual da época e da região. Foi possível Graciliano escrever a história da família de retirantes sobretudo porque, assim como Fabiano, o autor viu de perto a pobreza, a seca, o abuso do poder e o descaso com as pessoas do sertão. Graciliano, nesse sentido, imprime sua identidade no discurso do narrador e busca com ele a identificação de um povo numa terra chamada Brasil. O criador: o eu-comunicante/Graciliano Como diz M.Pêcheux (1975), “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido”. Em Linhas tortas (1962), Graciliano, em capítulo intitulado “A propósito da seca”, salienta a questão do acúmulo de gente num território desértico que, mesmo sem seca, nutriria a fome que assola até hoje o sertão. Sabe-se que o problema, nessa região, vai além da seca. Diz ele: “o êxodo dos flagelados é um modo de falar. Não há êxodo. Mas sai muita gente.” (LT, 2002:129). Acrescenta reforçando a idéia de que o tipo heróico do cangaceiro é uma figura que desapareceu. Agora “o cangaceiro é uma criatura que luta para não morrer de fome.” (LT,2002:130). Assim, Graciliano descarta a possibilidade de romantização da figura do vaqueiro. O que se tem, a partir da visão do autor alagoano, é uma nítida visão de que o que era aparentemente desértico é habitado por figuras como Fabiano e sal família. Nesse momento, cria-se a identidade de um povo do sertão. Cria-se a identidade regional.

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Ao se analisar um texto como realização de um ato discursivo, deve-se levar em consideração a identidade dos sujeitos — comunicante, enunciador, destinatário e interpretante —, a intenção do emissor, os papéis sociais que são desempenhados pelos sujeitos envolvidos, o contrato comunicativo e as estratégias enunciativas utilizadas pelo locutor para atribuir coesão e coerência à sua enunciação. Charaudeau (1983) considera o ato de linguagem como ato interacional em que é preciso observar os tipos de sujeito existentes no discurso. Ele propõe quatro tipos de sujeito: EU-comunicante, EU-enunciador, TU-destinatário e TU-interpretante. Entende-se por EU-comunicante, o sujeito que está por trás do enunciado. O EUc é o sujeito que age instituindo-se emissor e articulador de fala: “Ele é o iniciador do processo de produção que ele constrói em função das circunstâncias do discurso que o ligam ao TU e ao ELE, e que constituem sua intencionalidade. O EUc é assim a testemunha de um certo real, o de seu universo de discurso (CHARAUDEAU, 1983).

Em Vidas Secas, Graciliano Ramos é o EU-comunicante, uma vez que é ele o responsável pela elaboração do texto, pelas escolhas lexicais, pelas idéias propostas. Ele como autor é quem estabelece o contrato comunicativo, e se utiliza de estratégias enunciativas para construir o tecido da obra. Não se pode perder de vista o que se quer averiguar aqui que é, principalmente, de que forma o EU-comunicante é identificado no texto, ou melhor, como o discurso de Graciliano pode ser percebido e entendido na obra. Compreende-se que o Eu-comunicante esconde-se atrás do EU-enunciador, como diz Charaudeau: “O EUe é uma máscara de fala colocada sobre EUc. Eis porque o EUc, consciente desse estado, poderá jogar com fins estratégicos, tanto o jogo da transparência entre EUe e EUc, quanto o da ocultação do EUc por EUe”. Na obra, então, coberto pela máscara do EU-enunciador, o EUc se revela. Ou seja, escondido sob o véu do narrador e das demais personagens o autor de Vidas Secas pôde proferir o seu discurso. Pôde, assim, denunciar a falta de atenção às famílias do Nordeste. Pôde mostrar as mazelas pelas quais os sertanejos, como ele, passam todos os dias. Pôde mostrar o abuso daqueles que apresentavam alguma forma de poder, a partir de personagens como: o patrão, o funcionário da prefeitura e o soldado amarelo. Pôde mostrar a importância da educação e da linguagem para os seres humanos, pois sem a linguagem, evidencia Graciliano, o homem retorna ao estado primitivo e é reduzido à condição animal. Sem o domínio da linguagem, Fabiano é apenas um bruto, um bicho. Dessa forma, Graciliano Ramos — o criador — protegido por suas personagens relata e denuncia a luta de uma família para sobreviver no sertão nordestino. Mais do que isso, o autor, a partir da família de Fabiano, delata a negligência e os abusos sofridos por todos no pós-guerra e em plena ditadura. Há, na obra, um discurso político e um discurso popular por baixo da história que está na superfície.

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Vidas Secas: o ethos e a cenografia É preciso considerar dois aspectos discursivos a fim de melhor observar os implícitos e a subjetividade da linguagem na obra: o ethos e a cenografia. O ethos é um termo emprestado da retórica aristotélica que “designa a imagem que o locutor constrói em seu discurso para exercer uma influência sobre seu alocutário.” (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004:220). Ele indica o caráter do enunciador, a imagem que o sujeito que fala faz de si mesmo. Para Maingueneau, o ethos é “a personalidade do enunciador”. A noção de ethos está ligada também à idéia que o locutor faz “do modo como seus alocutários o percebem”. O ethos, assim, simula o que o Eu-enunciador é, ou melhor, ele mostra o que o Eu-enunciador quer parecer ser diante de seu Eu-destinatário. Associada ao ethos está a cenografia, ou a “cena de encenação”. Ela refere-se à “situação de comunicação”. Designa um espaço instituído, é o próprio espaço de enunciação. A cenografia é parte integrante do ato de fala. Maingueneau propõe três cenas distintas de enunciação: a cena englobante, a cena genérica e a cenografia. A cena englobante é relativa ao tipo de discurso; a cena genérica é relativa aos gêneros discursivos e a cenografia é instituída pelo próprio discurso. Em Vidas Secas, Fabiano define-se como um bicho, como um bruto. Graciliano, através desse personagem, apresenta o ethos do sertanejo de forma explícita a seus destinatários, como se pode comprovar em:

— Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta. Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra. Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigia-a, murmurando: — Você é um bicho, Fabiano. Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho capaz de vencer dificuldades. Chegara naquela situação medonha — e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha. — Um bicho, Fabiano. (VS, 1997, p. 18)

De quem é a voz que diz: “E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros”. Essa pergunta foi feita por Alfredo Bosi no artigo “Sobre Vidas Secas” do livro Os pobres na literatura brasileira (1983) organizado por Roberto Schwartz. Bosi sugere “Graciliano aceita aqui a verdade e a palavra do seu vaqueiro e reforça-as com o aval do narrador que tudo sabe”. (BOSI, 1983, p. 153). Nesse sentido, pode-se observar também que a imagem construída por Fabiano de si mesmo (seu caráter) está intimamente ligada à cenografia do texto. Ou seja, o vaqueiro, como pessoa que cuida de terra alheia e pessoa Discursos e Identidade Cultural

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submissa aos brancos, sente-se inferior a eles, não se admite homem, e assume uma condição infra-humana. Esse é o ethos de Fabiano diante da cenografia da obra: um ser animalizado. No trecho em evidência, percebe-se ainda a polifonia, a alternância das vozes do narrador e de Fabiano. O discurso de Fabiano é marcado pelo discurso direto, a partir do uso de travessões e o discurso do narrador é marcado pelos pronomes anafóricos pessoais que remetem a uma terceira pessoa — ele — Fabiano e do possessivo — seu — referente à terceira pessoa. Por mais que, num primeiro momento, Fabiano se acreditasse homem, não conseguia se sentir homem, porque ele, como ser social, não era visto como homem. Infere-se isso, porque, embora fosse fisicamente aceitável como homem, uma vez que era “vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos”, ele, socialmente, não era homem, pois “vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos”. Esse jogo antitético é marcado lingüisticamente pelo conectivo adversativo — mas — que integra a oposição em ser homem e ser animal. Em fim, após um balanço de si mesmo, “julga-se cabra”. Dessa forma, tanto Fabiano quanto o narrador participam da mesma cena de enunciação e dividem a mesma opinião quanto ao caráter do vaqueiro, pois não só o ethos discursivo é apresentado pelo personagem central como ele é ratificado pelo narrador, quando assume o discurso do outro para referendá-lo. Cabe aqui lembrar também a questão da verossimilhança para o autor alagoano, já que: Para Graciliano a verossimilhança assenta basicamente na conformidade do discurso do relato com o discurso da opinião pública, na linha de Platão e Aristóteles. Aquilo que a maioria crê como real, possível e coerente — tal é o padrão comparativo para o discurso narrativo do escritor, que não hesita em submeter-lhe a ficção e as memórias, uma vez asseguradas as modificações de expressão próprias do gênero respectivo. (CRISTÓVÃO, 1975, p. 29)

A verossimilhança atribui credibilidade a quem fala, tornando seu discurso legítimo e aceitável para quem o compartilha. Assim, mesmo quando se encontra na obra o personagem Seu Tomás da bolandeira, representante da cultura, pois fala bem e por isso é respeitado por todos e admirado por Fabiano que gostaria de falar igual a ele, o que se nota é que a desgraça produzida pela cenografia, pela seca, chega até ele da mesma forma. De uma forma ou de outra, o ethos e a cenografia se fazem presentes e são, assim, importantes objetos de análise do discurso do vaqueiro bem como dos demais personagens que atuam na cena de enunciação que é Vidas Secas. Linguagem: as diferentes manisfestações de Fabiano No romance Vidas Secas, pode-se assistir às diferentes manifestações de Fabiano – que, segundo o Dicionário da língua portuguesa, de Antônio Houaiss,

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significa “pessoa simplória e/ou inofensiva” e ainda “sinonímia de joão-ninguém”. Com isso, nota-se, a princípio, que a escolha onomástica dos personagens não foi aleatória e sim, ao contrário, muito significativa para compreensão dos discurso existente na história. Assim, Fabiano é aquele que conhece, seu lugar no mundo, ou melhor, sua falta de espaço. Julga-se, como já foi mostrado, a todo tempo, um bicho, um ser infra-humano. Os meninos — mais novo e mais velho — também carregam, na falta de nomes próprios, uma força semântica ligada à anulação no campo social, pois, se falta sobrenome à sinhá Vitória e a Fabiano, a essas pobres criaturas faltam nome e sobrenome. Quanto às escolhas lingüísticas, é possível perceber a utilização de um vocabulário ligado ao sertão nordestino. Palavras como: “aió”, “pederneira”, “alpercatas”, são utilizadas para fixar a narrativa que se passa no sertão. Tais escolhas conferem verossimilhança ao texto regional e possibilitam a reconstrução da realidade de forma ficcional. Tem-se, a partir disso, a realidade discursiva. É certo que ocorre a modalização da linguagem na obra. Isso é percebido em diferentes momentos. Cabe ao narrador a linguagem polida, culta, com utilização de vocábulos ligados ao sertão, como se pode notar em: “Sinha Vitória tinha amanhecido nos seus azeites. Fora de propósito, dissera ao marido umas inconveniências a respeito da cama de varas. Fabiano, que não esperava semelhante desatino, apenas grunhira” (VS, p. 40). Por outro lado, quando surge a voz de Fabiano, a linguagem se adequa à sua situação de vaqueiro analfabeto: “Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as palavras de seu Tomás da bolandeira: — Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme.” (VS, p. 27).

Essa variação de linguagem, ou melhor, essa modalização fica evidente em passagens nas quais o discurso polifônico prevalece. Nesse momento, pode-se notar, com mais nitidez, tanto o duplo discurso quanto a dupla manifestação da linguagem: “E insultou Fabiano, porque ele tinha deixado a bodega sem se despedir. — Lorota, gaguejou o matuto. Eu tenho culpa de vossemecê esbagaçar os seus possuídos no jogo?” (VS, 1997: 29). Nesse trecho, percebe-se duas vozes: a do narrador — com o uso de verbos no pretérito perfeito e a de Fabiano com a ocorrência de travessão e a utilização do sujeito da ação — Eu — na indagação. Em todo texto isso ocorre: as vozes dos personagens transpassam o relato do narrador. É bem verdade que os diálogos são raros e os relatos, em sua maioria, são feitos por um narrador culto, já que os personagens centrais não conseguem expor bem suas idéias. Algumas vezes, são as interjeições guturais que revelam suas intenções, como no trecho a seguir em que Fabiano não sendo capaz de estabelecer um diálogo, muito menos uma discussão, com a mulher, apenas emite sons de reprovação:

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Sinha Vitória tinha amanhecido nos seus azeites. Fora de propósito, dissera ao marido umas inconveniências a respeito da cama de varas. Fabiano, que não esperava semelhante desatino, apenas grunhira: ‘— Hum! hum!’ E amunhecara, porque realmente mulher é bicho difícil de entender, deitara-se na rede e pegara no sono. (VS, 1997: 40)

Vale a pena lembrar a respeito da inversão de papéis de alguns personagens, a partir de utilização de metáforas, pois, se por um lado, Fabiano apresentase numa condição infra-humana, pois a todo momento é comparado a um bicho; por outro, a cachorra Baleia encontra-se numa condição supra-animal, já que tem seu pensamento divulgado pela voz de um narrador onipresente. Com essa inversão de papéis, chega-se, na verdade, à semelhança entre homens e animais. Não se pode esquecer que também o menino mais velho teve sua linguagem comparada à do papagaio. É válido observar a caracterização das personagens-tipo, personagens que retratam um grupo regional. Essas personagens também são planas, na medida em que não sofrem grandes alterações de comportamento durante a trama. Eles mantêm sua personalidade do começo ao fim, de forma que era previsível que Fabiano não mataria o Soldado Amarelo, no capítulo de mesmo nome, pois o vaqueiro foi apresentado durante a narrativa como uma pessoa ingênua, com rompantes de violência, mas que, de uma forma geral, não conseguiria machucar nem matar ninguém. Também é pertinente observar como Graciliano Ramos utilizou-se de estratégias como a ocorrência de metalinguagem — no capítulo “Inverno” — e recorrências a episódios como a morte da cachorra Baleia, a morte do papagaio e o desejo de Sinhá Vitória por uma cama de couro para construir um texto coeso e coerente. Isso fica evidente, porque, apesar de se ter capítulos, a priori, independentes, com as constantes retomadas temporais, ou seja, com as freqüentes alusões aos fatos passados, é possível compreender a obra como um todo e não como um somatório de capítulos isolados. Outro aspecto que confere coerência à obra e requinte no trato à linguagem é, como já foi mostrado, a utilização da temática central para construir a “cena de fala” e a cenografia do romance, pois, ao intitular seu livro de Vidas Secas, não só faz alusão à falta de água no sertão nordestino, como também sugere a seca de educação, de cultura, de sentimentos, de vozes, de oportunidades, de identidades, de sonhos, de futuro dos seus protagonistas. Tudo resulta no estilo do autor. Pode-se, ainda, analisar o caráter cíclico do texto que inicia com uma fuga da família, no capítulo chamado “Mudança”, e finaliza com a família se retirando, mais uma vez, em busca de um lugar que seja viável sobreviver, no último capítulo, chamado “Fuga”, como uma espécie de denuncia do Eu-comunicante à falta de interesse do governo pelos habitantes do sertão brasileiro. A seca é cíclica, logo, cíclico é o problema da família de Fabiano, uma prole discursiva que representa muitas outras reais. Como resultado, tem-se em Vidas Secas uma narrativa concisa, a utilização, freqüente, de orações coordenadas, a predominância do discurso indireto livre, Discursos e Identidade Cultural

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a ocorrência de onomatopéias, de interjeições guturais, preferência por substantivos — até os adjetivos são substantivados — bem como o efeito da polifonia com a manifestação de diferentes vozes no momento da enunciação. O discurso do poder: “governo é governo” Além do Eu-comunicante passar suas idéias pelo discurso dos excluídos, o discurso do poder também ocorre em Vidas Secas. Esse discurso é representado por aqueles que exercem algum cargo que lhes atribui poder, por isso são chamados de “Governo”, são eles: o soldado amarelo, o dono da fazenda e o fiscal da prefeitura. Com esses três personagens, pode-se analisar o que o Eu-comunicante quer, incessantemente, denunciar: a injustiça social e os abusos da ditadura. Quando Fabiano se diz bicho, isso ocorre não porque ele de fato se considere assim, mas “ele” sabe que esse é um julgamento coletivo. No capítulo “Cadeia”, é possível confirmar essa afirmação: Atrevassaram a bodega, o corredor, desembocaram numa sala onde vários tipos jogavam cartas em cima de uma esteira. — Desafasta, ordenou o polícia. Aqui tem gente. (VS, p. 27)

Sabe-se que Graciliano Ramos tinha respeito ao governo tanto que, quando foi preso não fugiu, não praguejou, seguiu resignado com o policial que estava cumprindo apenas ordens. Ainda no capítulo “Cadeia”, encontram-se as idéias do Eu-comunicante em relação ao “governo” a partir do pensamento de Fabiano: E, por mais que forcejasse, não se convencia de que o soldado amarelo fosse governo. Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar. O soldado amarelo estava ali perto, além da grade, era fraco e ruim, jogava na esteira com os matutos e provocavaos depois. O governo não devia consentir tão grande safadeza. (VS, p. 33-34)

No capítulo “Contas”, também é notório o abuso de poder e a resignação de Fabiano diante daqueles que detêm a força e a influência. Nesse episódio, Sinhá Vitória convence o marido que o patrão o está enganando nas contas e Fabiano resolve falar com o dono da fazenda a esse respeito: Com certeza havia erro no papel do branco. Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria! O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o vaqueiro fosse procurar serviço noutra fazenda. Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem. Não era preciso barulho não. Se havia dito palavra à-toa, pedia desculpa. Era bruto, não fora ensinado. Atrevimento não tinha, conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia lá puxar questão com gente rica? Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os homens. Devia ser ignorância da mulher. Até estranhara as contas dela. Enfim, como não sabia ler (um bruto, sim senhor), acreditara na sua velha. Mas pedia desculpa e jurava não cair noutra. (VS, p. 96)

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Nota-se que não era permitido a Fabiano reclamar, lutar pelos seus direitos. Direitos? Que direitos! Fica evidente a denúncia da intolerância e da resignação obrigatória do vaqueiro diante de tamanha desonestidade. Como se pode comprovar no trecho abaixo: “Porque reclamara, achara a coisa uma exorbitância, o branco se levantara furioso, com quatro pedras na mão. Para que tanto espalhafato? — Hum! Hum!” (VS, p. 94) Nesse mesmo capítulo, ainda surge a lembrança do episódio ocorrido anos atrás, quando Fabiano foi vender um porco e descobriu que precisava pagar imposto ao governo: O agente se aborrecera, insultara-o, e Fabiano se encolhera. Bem, bem. Deus o livrasse de história com o governo. Julgava que podia dispor dos seus troços. Não entendia de imposto. — Um bruto, está percebendo? Supunha que o cevado era dele. Agora se a prefeitura tinha uma parte, estava acabado. Pois ia voltar para casa e comer carne. Podia comer a carne? Podia ou não podia? O funcionário batera o pé agastado e Fabiano se desculpara, o chapéu de couro na mão, o espinhaço curvo: — Quem foi que disse que eu queria brigar? O melhor é a gente acabar com isso. Despedira-se, metera a carne no saco e fora vendê-la noutra rua, escondido. Mas, atracado pelo cobrador, gemera no imposto e na multa. Daquele dia em diante não criara mais porcos. Era perigoso criá-los. (VS, p. 94-95)

Nesse trecho, percebe-se a polifonia, ou seja, surgem três vozes distintas: a do narrador, a de Fabiano e a do Eu-comunicante. O narrador inicia o fragmento descrevendo a cena, mas, logo em seguida, surgem as interjeições de Fabiano “Bem, bem”. No entanto, o Eu-enunciador, ao se utilizar de uma referência exofórica “— Um bruto, está percebendo?”, possibilita inferir que Graciliano recruta o leitor a concordar com ele no que diz respeito ao marido de Sinhá Vitória, ou melhor, alerta seu Eu-destinatário para uma afirmativa que ocorreu, exaustivamente, no romance, que é de Fabiano ser e se considerar um bruto. Ou seja, um ser primitivo, rústico que desconhece as regras da sociedade, uma vez que está excluído dela. O outro discurso de Fabiano é apresentado a partir do travessão, seguido de uma indagação do sujeito de cena “— Quem foi que disse que eu queria brigar? O melhor é a gente acabar com isso.”, que permite deduzir que o vaqueiro, mais uma vez, sabia seu “lugar”, ou melhor, sua falta de “lugar” na sociedade vigente. Ele não quer brigar. Não quer e não pode brigar com o “governo”, porque não tem subsídios para isso. Vale lembrar que o soldado amarelo, além de aparecer no capítulo “Cadeia” — que alude à prisão do próprio Graciliano Ramos que há pouco mais de um ano havia saído da prisão, surge, aqui e ali, nos pensamentos do vaqueiro e reaparece no capítulo que leva seu “nome”. Com sua narrativa, podem-se ouvir os gritos de protesto do Eu-comunicante diante da sua situação — “ainda com a cabeça raspada — lembrança da temporada na Ilha Grande — , começa a gestação de Vidas Secas.” (CASTRO, 2001, p. 24) — e dos seus, pessoas do sertão, que passam até hoje, por humilhação, por falta de respeito Discursos e Identidade Cultural

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das autoridades, sendo considerados, de uma forma geral, como “brutos”. Ao final do capítulo “O Soldado Amarelo”, Fabiano profere sua máxima: “Governo é governo”: Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro. — Governo é governo. Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo. (VS, 1997, p. 107)

Como resultado, compreende-se que, em nenhum momento, o Eu-comunicante sugere uma revolução das massas oprimidas, mas escolhe o caminho da denuncia, a partir de sua obra, a partir da história e da postura, do ethos, de seus personagens e da cenografia do texto alerta a seus destinatários e interpretantes a situação pela qual passam centenas de nordestinos. Referências Bibliográficas CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. CASTRO, Dácio Antônio de. Roteiro de leitura: Vidas Secas de Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 2001. CHARAUDEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004. CHARAUDEAU, Patrick. O ato de linguagem como encenação. In: Language et Discours: éléments de semiolinguistique. Paris: Hachette, 1983. CRISTÓVÃO, Fernando Alves. Graciliano Ramos: estrutura e valores de um modo de narrar. Brasília: Ed. Brasília/MEC, 1975. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. HOUAISS, Antônio. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2004. RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. São Paulo: Record, 2002. ______. Vidas secas. Rio, São Paulo: Record, 1997. SCHWARZ, Roberto (org.). Os pobres na literatura brasileira.São Paulo: Brasiliense, 1983.

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