7 set. 2008 ... Vagava pelas ladeiras e praças de Potosí, na esperança de .... visualiza o corpo
e o exalta, como se matasse a saudade de ambos. O discurso ...
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENAL III CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL
4 a 7 DE SETEMBRO DE 2008 NITERÓI-RJ BRASIL
Tema Livre:
VULNERABILIDADE PSÍQUICA, MISCIGENAÇÃO E PODER O romance Manchay Puytu: El Amor que quiso ocultar Dios Thiago Quintella de Mattos1
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Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense e advogado.
RESUMO O presente trabalho é um desmembramento da dissertação de mestrado em Ciência Política defendida pelo autor, na Universidade Federal Fluminense, em 2007, sob orientação do Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho. Discute-se a Vulnerabilidade Psíquica dos miscigenados, do ponto de vista étnico e ideológico, diante do poder autoritário político e religioso, consoante estudo e análise do romance histórico do escritor boliviano, Néstor Taboada Terán, Manchay Puytu: El amor que quiso ocultar Dios, (1977). A sustentação científica terá alicerce em Neuroses de Transferência, de Sigmund Freud; nos textos Esquizofrenia e Miscigenação, de Manoel Tosta Berlinck, Caterina Koltai e Ana Irene Canongia (2001); Édipo e o Excesso (2002), A Ideologia do Favor e a Ignorância Simbólica da Lei (1993), de Gisálio Cerqueira Filho e Emoção e Política: (a)ventura e imaginação sociológica para o século XXI (1997), este último em coautoria com Gizlene Neder.
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1 — INTRODUÇÃO
O conceito Vulnerabilidade Psíquica vem sendo desenvolvido por Gisálio Cerqueira Filho em sucessivas obras: “A Ideologia do Favor e a Ignorância Simbólica da Lei” (Imprensa Oficial, Rio de Janeiro, 1993); “Emoção e Política: (a)ventura e imaginação sociológica para o século XXI”, co-autoria com Gizlene Neder (Sérgio Fabri Editor, Porto Alegre, 1997); “Édipo e o Excesso: Reflexões sobre a Lei e Política” (Sérgio Fabri Editor, Porto Alegre, 2002) e mais recentemente, “Autoritarismo Afetivo: A Prússia como Sentimento” (Editora Escuta, São Paulo, 2005). Vulnerabilidade
Psíquica
está
implicada
no
conceito
vulnerabilidade
criminológica, do jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni e no construto insuficiência imunológica psíquica do sociólogo e psicanalista Manoel Tosta Berlinck. Ademais, o engajamento teórico será embasado na obra “Neuroses de Transferência: uma síntese”, de Sigmund Freud. Em “Neuroses de Transferência” Freud ousa explicar o quanto os fatores filogenéticos e ontogenéticos fazem parte da fundação do comportamento do homem. Dentro da história de sua evolução biológica, entende-se por filogenética a abordagem dos aspetos particulares que formam o indivíduo; ontogenética, por sua vez, abordará o homem dentro de sua espécie. Freud quer demonstrar que a formação do ser humano é gerada pelo encontro do biológico com o cultural, inscritos um no outro de modo a torná-los inseparáveis. A este encontro denominou pulsão, caracterizando um aspecto emocional amalgamado a um biológico, físico. Freud esgotou suas fontes de pesquisa e raciocínio de modo indutivo e dedutivo e houve de se atrelar à abdução. A carência sentimental, a ausência daquilo que não se recupera mais, tal qual não recuperamos uma parte de nosso corpo, são conseqüentes e/ ou confluentes ao trauma físico. Isso significa que somos originários de um trauma também psíquico e passamos a viver com este traumatismo. Mas se o sentimento jamais foi palpável, como verificar a falta dele e conseguir suportes para essa perda? O sofrimento é o sintoma. Nesse ponto Freud explica a existência da fantasia como fator que suprime a dor da falta sentimental ou busca atenuantes para ela. A fim de provar a importância da fantasia, — daí a explicação da ontogênese — usou, pois, a própria fantasia, numa representação heurística. Remeteu-se, então, a uma catástrofe da humanidade, à glaciação da pré-história, para demonstrar o quanto de biológico e cultural, ou seja, o que de pulsional haveria na fundação do ser humano e da 3
humanidade. Freud imaginou o sofrimento físico diante de uma catástrofe natural como desencadeadora de impactos comportamentais e sentimentais, tanto no próprio indivíduo como na sociedade, sendo esses traumas ainda hoje latentes. Não há como colher provas visíveis e experimentais pelo método da abdução, isso, porém, não exime o pesquisador de demonstrar algo coerente, razoável, verossímil. Para isso, são necessárias as associações refletidas pelo comportamento humano. O vácuo do sofrimento é relacionado ao oco do desejo. As manifestações desses sofrimentos e as fantasias deles construídas podem ser estudadas por analogias culturais de uma sociedade, ou de toda a humanidade. A linguagem e a arte, por exemplo, são campos disponíveis para trazer a verossimilhança necessária e “aprovar” a prova heurística. Freud vê a ontogênese manifestada na arte e na cultura, explicando-a, como já aludido, pelo heurístico exemplo de uma catástrofe da era glacial. Por seu turno, a Psicopatologia Fundamental será refletida na linguagem e fará uma analogia das catástrofes com a atualidade dos respectivos estudos, por exemplo, com o genocídio e holocausto constantes, o colonialismo e imperialismo, etc. O sociólogo e psicanalista Manoel Tosta Berlinck associa o holocausto aos fenômenos naturais. Em seu artigo Insuficiência Imunológica Psíquica, aborda as variáveis formas de resistências de povos submetidos a ataques violentos e virulentos vindos do exterior e até de opressores do mesmo território. Apesar das diferentes reações dos povos violentados — da guerrilha à incorporação e submissão ao censor — Berlinck considera os aspectos emocionais como preponderantes. Estas reações, no entanto, sofrem tamanhas conseqüências que seriam equivalentes a uma catástrofe natural, pois cria no povo violentado, em sua maioria, um comportamento não só de ausência de resistência, mas de incorporação da censura imposta pelo opressor, que acarreta em sintomas biológicos. Portanto, Berlinck questiona como determinados povos apresentam pouca ou nenhuma resistência eficaz ao ataque virulento externo, chegando ao limite de aceitar esse ataque criando fantasias que vão condescender com a situação catastrófica (holocausto, genocídio). Além de sofrerem diretamente no corpo, durante os atos violentos, sofreram no âmbito psíquico, como no caso do amor ao opressor e censor. Os exemplos de povos que não demonstraram resistências eficazes, consoante Berlinck, foram os índios do continente americano durante a invasão dos ibéricos; e os judeus durante o genocídio nazista. Por que, então, estes povos se tornaram mais 4
vulneráveis que outros, diferente dos angolanos e moçambicanos, ou os vietcongs, segundo as próprias pesquisas do sociólogo e psicanalista paulista? Quais fenômenos motivaram essa insuficiência imunológica psíquica nos povos nativos do continente americano diante da Invasão Ibérica? Acredito que a fantasia, o mito, prevalecera nesses povos de maneira diferente dos outros exemplos. Diante da catástrofe, arranjaram forças para suportar, ou imaginar, fantasiar uma resistência. O conceito de vulnerabilidade criminológica foi desenvolvido por Eugenio Raúl Zaffaroni. O jurista argentino acredita que dentro de uma sociedade os fatores que definem a estratificação social e a exclusão de determinadas classes, tornam seus membros mais vulneráveis não só à prática criminosa tipificada, mas também à opressão e à punição incontinenti aplicada a essa pessoa. Fatores como etnia, cor de pele, locais de moradia afastados dos centros, ou seja, os guetos longe das denominadas áreas nobres, determinam a intensidade da atividade policial do Estado, ainda que não aparentem suspeição de crime. São vítimas de um imaginário preconceituosamente arrebatador, calcado na ilusão, no ideal de perfeição tomista (hegemonia tomista na cristandade ocidental) da qual a classe dominante, a igreja e o próprio Estado se fazem representantes. Tais ideais reificam-se cada vez mais dentro dos diversos discursos na sociedade. Desses dois conceitos forma-se a expressão vulnerabilidade psíquica. Em breves linhas conceituais, a expressão quer trabalhar o quanto de vulnerabilidade está inclusa não só no corpo de um indivíduo, mas em seu sentimento. E é no romance do boliviano Néstor Taboada Terán, Manchay Puytu: El amor que quiso ocultar Dios, onde buscaremos capturar indícios que evidenciam a vulnerabilidade psíquica do miscigenado, na perspectiva étnica e ideológica, diante do poder autoritário e opressor.
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2 — BREVE BIOGRAFIA DE TABOADA TERÁN
Néstor Taboada Terán nasceu em La Paz no dia 8 de setembro de 1929. Seus estudos básicos se dividiram entre sua cidade natal e Oruro. No início da adolescência, rondando os 14 anos de idade, ingressa na Academia de Belas Artes de La Paz, pois desejava ser artista plástico. Estabelece amizade com Armodio Tamayo, filho do insigne poeta e político Franz Tamayo de quem o contato amiúde, freqüentando sua casa, aguçara seu interesse pela cultura nacional e universal. É nessa época que um fato curioso na vida do jovem estudante pode ser considerado o principal impulso para o desenvolvimento de sua vocação intelectual e ação política mediante o jornalismo e a literatura. Ao voltar da casa de seu amigo Armodio, depara-se com a manchete numa banca de jornal: “Bolívia se vai a pique” anunciada no então novo diário, La Estampa. Espantado, dirigiu-se imediatamente à redação do jornal e, num misto de valentia e ingenuidade se oferece para salvar seu país2. Apesar do aspecto cômico dessa cena, os jornalistas e redatores do La Estampa não ignoraram essa curiosa atitude e fizeram uma reportagem sobre esse fato, enaltecendo a iniciativa de um garoto de 14 anos a salvar seu país. Logo, passou a freqüentar diariamente o jornal trabalhando como voluntário, sem salários, alegando que assim contribuiria para seu objetivo máximo. Desse modo, aumentou seu contato com as informações sobre seu país, sobre o mundo e passou a conhecer jornalistas e escritores, dando mais um passo para o que seria sua carreira de escritor, abandonando de vez as artes plásticas. Usando sua exímia qualidade como linotipista, garantia emprego em diversos diários e jornais. Ganhando o gosto pelas idéias, pela escrita e em contato mais íntimo com as notícias, aproveitava a operação com o linotipo para imprimir seus escritos. Em 1948, aos 19 anos, publica “Claroscuro”, seu primeiro conto. O primeiro romance veio em 1960, “El precio del estaño”, recebendo menção honrosa no Prêmio Nacional de Literatura. No início daquela década, já inserido nas atividades culturais e políticas de seu país, começa seus estudos de Artes Gráficas pelo SENAI, no Rio de Janeiro, onde se relaciona com Jorge Amado e Cândido Portinari. No Equador, inicia seu curso de Jornalismo pela Universidade de Quito.
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"Les dije yo me ofrezco para salvarla". Taboada Terán, em entrevista ao jornalista Michel Zelada Cabrera, do jornal eletrônico Los Tiempos, www.lostiempos.com, em 26 de março de 2006.
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Quebrando um pouco a seqüência cronológica de sua vida, é necessário que apresentemos uma frase de Taboada Terán dita em 2006 à Associação Boliviana de Imprensa durante a entrevista no lançamento de seu trabalho, “Tierra Mártir — Del socialismo de David Toro al de Evo Morales”: “Em toda minha vida me caracterizei por ser um escritor revolucionário, um escritor com princípios, inconformado com a realidade que impusera a oligarquia desde 1825. Então, toda minha obra não é mais que essa expressão rebelde”.
Tanto na história boliviana quanto na da América Latina não raros foram os momentos que a “oligarquia imposta” se fundava como ditadura ou nela se transformava. Nos anos sessenta e setenta, obra e autor sofreram perseguições políticas. Em 1968, seu livro de contos, “Indios en rebelión”, foi publicado na Argentina, para que não fosse censurado pelo autoritarismo militar do general René Barrientos. A UNESCO instituiu o ano de 1972 como o “Ano Internacional do Livro”. Esse ato, que por uma razoável acepção poderia ser considerado uma motivação à leitura e à escrita no mundo, pelo menos nos países membros da ONU, foi interpretado pelo general Hugo Banzer Suarez, das sacadas do Palácio Quemado, residência maior da República da Bolívia, como a oportunidade de se incinerar os livros de muitos autores, dentre eles, três de Taboada Terán: “El precio del estaño”, “Índios en. rebelión” e “Mientras se oficia el escárnio”, na Praça 14 de setembro, em Cochabamba. A Polícia Política de Banzer decretou a prisão preventiva dos autores dos livros queimados. Depois de alguns meses no cárcere, Taboada Terán se exilou na Argentina. Teve sorte, pois, parafraseando Freud, quando recebeu a notícia de que seus livros estavam sendo queimados por adeptos do Nacional-Socialismo alemão, em 1933, se fosse na época da inquisição seria o próprio autor que iria para a fogueira. Tal prática, — que não se pretende simbólica mas o é — muito comum às atitudes autoritárias do poder no decorrer da História, mostrou-se mais uma vez ineficaz: já em solo argentino, Taboada Terán se aproveitou da energia e da luz que as labaredas de seus livros alimentaram para manter acesa sua atitude revolucionária, jornalística e literária. Editou mais uma vez “Índios em rebelión”, em 1973, que atingiu a venda de 20.000 exemplares; lançou seu segundo romance: “El signo escalonado”, em 1975, e em 1977, “Manchay Puytu: el amor que quiso ocultar Dios”.
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3 — O ROMANCE “MANCHAY PUYTU: EL AMOR QUE QUISO OCULTAR DIOS”
Em setembro de 1976, Néstor Taboada Terán termina o romance em Buenos Aires. A Editorial Sudamericana publica sua primeira edição em 1977 e nesse mesmo ano recebe a Faixa de Honra (Faja de Honor) da Sociedade Argentina de Escritores por ter sido considerado o melhor romance daquele ano. Atualmente está na sexta edição, também publicado na Bolívia. A linguagem usada pelo autor é peculiar, dá ao livro a possibilidade de se considerar trilíngüe, no mínimo, pois espanhol, quéchua e latim são os idiomas usados, caracterizando, também, uma literatura miscigenada, pois o enredo deste romance é baseado numa lenda miscigenada entre nativos, miscigenados e colonizadores, que foi relatado por Orsúa y Vela, cronista do século XVII, em sua História da Vila Imperial de Potosí. O poema “Manchay Puytu” é de autor desconhecido, no entanto, foi traduzido e adaptado do quéchua para o espanhol pelo escritor, poeta, escritor e indigenista boliviano, Jesús Lara (1890-1980), que resgatou em versos a lenda sob o título Cantarillo del Miedo. A trama principal envolve o amor entre o protagonista Antonio de la Assunción e a índia María Cusilimay. Antonio é um jovem e carismático padre índio, que após sucessos na conduta de seu ofício peregrinando por diversas cidades do Vice-Reino do Alto Peru, recebe o “presente” de se estabelecer na argêntea Vila Imperial de Potosí, que na época, último quartel do século XVIII, era uma das mais ricas e populosas do mundo. María Cusilimay, por sua vez, é uma índia que se afasta de sua tribo para tentar ganhar a vida na cidade, onde seu pai já estava trabalhado, na função de carvoeiro e selador de cavalos no alojamento onde Antonio morava. Paralelamente, há a história do Bigardo, fidalgo espanhol que será enforcado pela Inquisição por ter violado 365 virgens índias e mestiças e que, como último desejo, quer mais uma virgem. Os momentos que antecedem a execução do Bigardo aparecem no prólogo do romance, concomitantemente nos é apresentado Ñauparruna, o Amauta, isto é, o sábio, o filósofo, a Testemunha dos Tempos, em fim, o líder religioso Inca, chamado pejorativamente de Feiticeiro, pelos cristãos, termo que o Amauta repudiava com veemência. O primeiro capítulo do Livro I nos mostra o regresso de padre Antonio de la Asunción à Potosí, depois de sua viagem à Lima. Nos capítulos derradeiros, Antonio
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resume sua vida em uma das tantas passagens marcantes, durante um diálogo com Ñauparruna: “Minha existência não foi mais que um agonizante relato no letal processo do medo.”3 Entretanto, para melhor identificar os traumas e sintomas do protagonista, preferi não seguir o modo diacrônico que Taboada Terán utilizou neste romance, logo, tentarei expor minhas idéias e hipóteses procurando seguir a regularidade temporal crescente. Após os primeiros anos de implacável genocídio, figurando a catástrofe hispânica para os nativos americanos, os funcionários da Coroa espanhola e os membros da Companhia de Jesus adaptaram o método de exploração e morte de acordo com a organização política e econômica dos fins do século XVIII. Chegaram a uma das tantas localidades, onde os índios viviam, com o objetivo de angariar mais homens adultos para o trabalho forçado nas minas e nas lavouras, o que significava a morte gradativa em vez da execução sumária de anos anteriores. Quanto às crianças do sexo masculino, sobravam-lhes a oportunidade de serem catequizadas, garantindo assim, uma esperança de viver. Permaneciam nas aldeias indígenas as mulheres adultas e crianças e os mais velhos, inaptos à servidão imposta pelos espanhóis. Uma das crianças dessa aldeia seria futuramente batizada de Antonio de la Asunción. Viu seu pai, pela última vez, ao ser agrilhoado pelos espanhóis enquanto ele, o menino, seguia com os Jesuítas, ouvindo os últimos gritos das mulheres, uma delas a sua mãe. Arrancado com força de sua terra, de seus pais. Desarraigado de suas origens, perdeu suas referências culturais de seu povo. Mas, dentro desta catástrofe, seguir com os Jesuítas era uma espécie de “sorte”. Teria, em breve, outra referência ideológica, a do conquistador, da Igreja Católica, para em seguida abandonar a sua original. Sua educação foi transmitida em língua quéchua transliterada para o alfabeto latino, e posteriormente, aprendera a língua espanhola e o latim. Dedicado e obediente, assimilou com méritos os ensinamentos do ministério da Santa Igreja; teve contato com a cultura do dominador, em diversas manifestações artísticas, destacando-se na poesia e na música. Tal êxito durante o processo de educação lhe permitiu o ingresso no seminário, desse modo, incluiu-se na igreja, como padre, que além das responsabilidades concernentes à sua posição, tornar-se-ia um exímio educador de crianças nativas, que, assim como ele, sofreram o desarraigamento cultural. 3
Todas as traduções são do autor deste ensaio.
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Com a missão de catequizar seus irmãos de raça, peregrinou por diversas paradas do vice-reinado do Alto Peru, além de, no início, fazer diversos outros serviços de importância vulgar, como limpeza, correio e cópias de textos. Uma empreitada que, apesar do já frisado sucesso, despertou-lhe questionamentos e angústias quanto à sua nova posição diante de seu povo. Assim divagou sobre a população: “Quando meus irmãos de raça, tímidos, pusilânimes, me beijavam os pés e as mãos — o servilismo como meio de defesa —, eu tremia de pesares e remorsos. Havia despertado uma nova sensibilidade, talvez a verdadeira dimensão da dignidade humana e os via prisioneiros de sua própria essência, temerosos, introvertidos, carentes de senso crítico.”
Padre, porém índio; culto e inteligente, carismático e sensível, adorado por seus alunos e por seu povo. Era cura em uma das trinta e três igrejas de Potosí, mas passou boa parte de sua vida em constante contato com a cultura que lhe fora extirpada. Assim, tornou-se uma criatura extremamente confusa em relação a que cultura realmente seguir; o que deveras desejava alcançar para viver; enfim, qual seria sua verdadeira referência. Sendo um culto padre índio, representava-se nele a eficiência do trabalho de catequização da Igreja Católica. A sua extrema dedicação ao ministério era sintoma de resistência ao medo de ser excomungado por qualquer deslize. Conforme o aprendido no seminário, a um índio que recebera o privilégio de entrar para a Igreja Católica e ainda ser um padre, não haveria porque manifestar desejos ou se queixar e, muito menos, ser perdoado por seus erros. Não estava livre da condição servil e obediência diante da composição hierárquica. Rigidez nas regras de conduta e nas punições. Todos seus desejos como ser humano seriam punidos se descobertos ou se confessados. “O medo é o pai da disciplina, cultivá-lo é impor a obediência”, dizia o padre para si. Contudo, em conseqüência da missão de catequizar seus irmãos de raça veio a curiosidade e o encantamento com sua cultura original. Tal curiosidade era saciada com a leitura dos livros proibidos pela Inquisição, tantos os europeus, como os dos escritores mestiços e criollos. O contato com os livros proibidos não seria o catalisador de suas angústias, pois havia algo pior: o celibato. Padre Antonio de la Asunción passou por mais uma situação traumática, desta vez ligada ao amor carnal, ao prazer sexual. Ainda nos anos finais de sua adolescência fora chamado para dar a extrema unção à Dona Dolores, uma senhora da elite espanhola de Potosí, mas que mantinha contato com a população mestiça e indígena. Não era comum chamarem padres índios e novos para exercerem essa função e muito menos terem contato com essa classe social. Entretanto, foi enganado. Quando chega ao local
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não havia nenhuma Dona Dolores moribunda, mas uma fogosa e atraente nobre, Dona Carmen Escobedo, que, com as desculpas de se confessar, trancou-se no seu aposento e recitou doces palavras, convidando o humilde padre para o ato sexual. Tamanho foi o impacto que, embora ele tivesse muito desejo de obedecer-lhe, não caiu na tentação de possuí-la. Apenas o ódio a possuiu em decorrência dessa recusa, o que a fez disparar xingamentos de ordem racial e cultural ao jovem cura: índio imbecil, filho bastardo da igreja, degenerado e “vá montar lhamas!”, dentre outras ofensas. Naturalmente, o desejo sexual do padre nessa idade era pulsante. A nobre era, inclusive, o estereotipo de beleza que lhe fora ensinado, de cor branca. Mas, vulnerável diante dos dogmas católicos, que lhe davam a condição diferenciada dos seus irmãos de raça, não seguiu seus desejos, controlou-se muito bem ao juízo de seus superiores. Não ganhou, no entanto, nenhuma menção honrosa por isso, porque não revelou o fato a ninguém, nem o confessou. As ofensas referentes à sua cultura, raça e povo feriram seus sentimentos de modo a lhe despertar algumas divagações comparativas entre os valores do que lhe fora ensinado pelo dominador e o que aprendeu de sua cultura original, tanto por meio dos Jesuítas como pelo que estava em seu inconsciente. Percebera, então, que haveria a possibilidade de, num exemplo de sincretismo religioso, não sofrer tanto por causa de um desejo recalcado, — punia-se em demasia por causa de seus pensamentos — uma vez que, segundo seus antepassados, não há nenhuma proibição para o amor entre homem e uma mulher, apesar de também haver suas regras de condutas sóciopolíticas peculiares4. Sua confusão moral e intelectual não era mero capricho ou desconhecimento. Sabe-se de sua cultura e inteligência; sua dedicação e obediência, mas, começam a aflorar seus desejos e sentimentos. Esses eram, no entanto, reprimidos internamente pelo medo de perder seus privilégios sociais e políticos — em relação ao poder diante da maioria de seus fiéis. Dois exemplos contribuíram para sua confusão: o primeiro, já dito anteriormente, é a reação da nobre mediante os xingamentos que lhes fizeram perceber que ainda que seguisse rigidamente os dogmas, mesmo que sofresse muito pela frustração de não atingir seus desejos, não receberia ao patamar que ele aprendera como o ideal. O ideal de perfeição do colonizador, do opressor. O segundo seria o fato dele viver num alojamento onde um padre espanhol mantinha tranqüilamente uma vida 4
As condutas sexuais dos incas estão no capítulo VIII do Segundo Livro do romance, que é explicado pelo Amauta Ñauparruna.
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conjugal com uma cozinheira que era também sua concubina. Ora, perguntou-se, o celibato seria só para padres índios, ou para padres que não tivessem atingido uma determinada idade? Não chegou a comentar nem a conversar com ninguém sobre essa prática comum dos padres, apesar da promessa de celibato. Portanto, não somente se usando do falso tabu entre seus colegas de ofício, como também se nutrindo da conduta sexual de seus ascendentes, guardou para si um objetivo de vida: ter uma amada. Esse desejo se acendeu com a chegada da índia Qöya Cusilimay, filha do carvoeiro Caoquí, que trabalhava e habitava o mesmo alojamento, nas suas devidas áreas. Qöya Cusilimay, por ser mulher e criança, permaneceu na tribo com seus avós, enquanto seu pai seguiria para a mita, assim que os funcionários da Igreja e da Coroa espanhola para o desarraigamento (ou recrutamento servil). Adoentou-se seriamente por duas vezes. Possivelmente causada por uma crise histérica, de acordo com o nosso saber clínico atual, mas, segundo o Amauta, Ñauparruna, que foi tentar curá-la, viu seu passado pelas folhas de coca e concluiu, dizendo aos avós dela, que Qöya Cusilimay era a reencarnação de um espírito brincalhão, ou seja, do que toma o corpo de pessoas que cometeram alguma violação às normas de conduta dos incas. Era, pois, descendente da nobre virgem Qöya, que fora violada pelos espanhóis, no início da catástrofe hispânica e em vez de recorrer ao perdão, sua antepassada preferiu se suicidar se jogando de um precipício. Com isso, sua alma seria eternamente condenada. Mas à Qöya Cusilimay não foi revelado seu passado. Assim que se recuperou da crise, decidiu ir ao encontro do pai em Potosí, para tentar ganhar a vida, porque não lhe fazia bem viver sozinha em sua tribo. É destacável aqui o trauma ocasionado pelos espanhóis às mulheres índias. Não as arrancava diretamente à força física, — com exceção de uns que se apaixonavam pelo exótico—, mas deixava a vida na aldeia impraticável, sem homens, apenas com velhos, contribuindo para a futura extinção de seu povo, obrigando-os a um exílio na tentativa de sobreviver. Qöya Cusilimay, ao chegar em Potosí, se tornou a nova empregada no alojamento onde vivia Antonio. No início, ainda com a presença do casal, trocavam somente tímidos olhares, tratavam-se formalmente, mas estavam na iminência de se apaixonarem. Após a morte do outro padre e da concubina, puderam se amar pela primeira vez. Um amor proibido, secreto, que lhes dava o prazer supremo. Passaram, então, a viver nesse pecado.
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Além do alívio natural, da felicidade de se amar, a primeira vez que tiveram relação sexual foi um ato relevante para este trabalho no que diz respeito à vanglória de poder e à construção de uma fantasia a fim de sublimar uma decepção. O local foi no quarto dos duendes, um cômodo onde eram guardadas coisas velhas e imprestáveis, como móveis, panos e, principalmente, imagens quebradas, sem as mãos e sem a cabeça. As imagens não lhes vigiariam, sem olhos e tampouco lhes puniriam, sem as mãos. Após a relação, Antonio percebeu que a índia não era virgem e por isso, apesar do prazer da relação, sentiu um certo vazio. Não lhe bastou conseguir desafogar toda sua libido acumulada por anos, apesar de ser pecado e de suas desculpas permissivas para amar como qualquer ser humano. Ele queria, também, ter sido o primeiro homem de uma mulher. Essa decepção é fruto das tradições de duas culturas mescladas em sua mente. O sacramento do casamento, que há de ser entre virgens, para a permissão do ato sexual com fins de procriação. E a condição das virgens na tradição cultural dos Incas antes da invasão dos espanhóis, a qual, sumariamente, explico: O imperador inca, chefe e representante supremo do poder paternal e divino, além de sua esposa (Mama Qöya), com a qual formaria sua dinastia, tinha o privilégio de ter um grande número de belas virgens, as Ajllakunas (Virgens do Sol), que permaneciam confinadas em local específico, denominado Ajllawasi. Propriedade do imperador, as virgens iniciavam sua vida sexual em cerimônias específicas. Havia certo número de virgens para os degraus hierárquicos mais abaixo do imperador. Portanto, considero que a posse de virgens é um ‘status’ de poder supremo para o inca e uma tradição respeitadíssima pelo seu povo, pois aos seus súditos não era obrigatório um rito ou espécie de sacramento, para o prazer do amor e do sexo, embora haja também o casamento, mas somente para fins de organização social. Entretanto, após a catástrofe hispânica, os invasores encontraram a secreta Ajllawasi e todas as virgens foram defloradas. Um dos grandes traumas do povo inca. Sua amada não era virgem, mas haveria de fantasiar uma condição para que lhe desse poder e abstenção de culpa. Na autoridade de padre, batizou sua amada de María e não deveria mais se chamar Qöya. Ela adora o seu nome, que significava “rainha”, mas, irredutível ao pedido dela, disse que daquele momento em diante seria María, o mesmo nome da Santa Virgem, Nossa Senhora. E lhe pendura um escapulário que simbolizaria o rito de passagem. Com essa fantasia, o nome María lhe dá ao mesmo tempo, alívio em ambas culturas: no catolicismo, o nome da Santa Virgem lhe recupera a virgindade,
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logo, eles não tiveram a relação sexual em pecado e, na religião e tradição incaica, ela sendo virgem é o símbolo de poder supremo, como de seu imperador ancestral. Não se tem conhecimento se alguém soube desse amor. Mas todo relacionamento deles foi um misto de temor e gozo. O desejo de ambos pendulava entre o sonho de viverem juntos e a realidade infernal de, se descobertos, irem para a corda ou o fogo. Um amor abafado, que se escondia de Deus. A vida de ambos, em pecado, continuava nessa vertente até que Padre Antonio fora convocado para uma entrevista com o bispo espanhol de Potosí e soube que faria uma viagem para Lima. O diálogo de padre Antonio com o bispo é uma excelente fonte para destacarmos a vulnerabilidade psíquica da personagem diante do opressor, imbuído de representante do ideal de perfeição. Quando soube que teria a entrevista, Antonio se desesperou, sozinho, já dando como certo que seu pecado fora desvelado. Nada disso aconteceu, o bispo não tocou em nenhum assunto sobre María, ou qualquer mulher, Quando, porém, lhe informou de sua viagem, Antonio não pôde formular uma plausível recusa porque, em seu imaginário, viajar para Lima era um presente para todo o padre índio. Partiria na manhã seguinte, de mula, para apenas comprar algumas coisas e fazer as anotações que bem entendesse. Poderia durar mais de um ano. Isto significa que era uma viagem desnecessária, ele se sentia muito bem em Potosí. Mas também, em nenhum momento, ousou conversar com o bispo sobre as condições, razões mais específicas da viagem, ou mesmo enviar outro em seu lugar. Não iria a cavalo, não é permitido aos índios, mesmo padres assimilados à cultura européia, esse tipo de conforto. Ademais, o fato de não contestar, de não manifestar, ainda que por códigos ou por mentiras o seu desejo de ficar, despediu-se do bispo com a certeza de que essa viagem lhe era uma punição pelo seu pecado que lhe oprimia cada vez mais. Chegando ao seu alojamento, não escondia seu semblante triste, e nem os carinhos de María lhe recuperaram o ânimo. Aos poucos ele foi criando coragem e, por partes, foi lhe contando a novidade até revelar o período que ficaria longe dela. Ela reagiu, inicialmente, resistindo ao desespero, mas à medida que lhe foi aparecendo o tempo que ficaria longe de seu amado, e a possibilidade de perda, chorou muito e acreditou que não conseguiria viver tanto tempo sem ele. María, símbolo oculto de seu poder, morreu poucos dias antes de seu retorno. Toda a viagem lhe foi uma morte em potencial. Por volta da metade do percurso de ida, parou em uma pequena cidade onde acontecia a festa do “Doce Nome de María”, organizada pela paróquia da Santíssima Virgem de Cocharcas. Apesar da boa recepção 14
que essas localidades tinham com os padres viajantes, Padre Antonio teve seu primeiro delírio. Tentava conciliar o sono quando, num sonho, viu María, semi-nua, lhe chamar de volta, imediatamente. Nos poucos minutos que conseguia dormir, convencia-se que voltaria no dia seguinte, montado em um corcel veloz, para os braços de sua amada. Todavia, assim que acordou, sopesou sua ousada intenção e resolveu seguir viagem à Lima, pois, o ilustríssimo bispo não gostaria de receber a notícia de uma missão incompleta, seria um ato herege. Em Lima também sonhara com María, logo depois que ouvira menções ao nome de Nossa Senhora e à virgindade. Antes de iniciar seu regresso, uma angústia tomou-lhe por completo e teve quase certeza que María estava morta, desde o dia que ele sonhou pela primeira vez com ela clamando por sua volta. Maria, durante a ausência do amado, começava a ter o aspecto de alma penada, apesar de ainda viva. Vagava pelas ladeiras e praças de Potosí, na esperança de encontrar Padre Antonio, que poderia ter voltado antes, de surpresa. Quando se deparava com os homens de batina preta, pensava ser Antonio, mas logo percebia que era apenas sua imaginação. Arrancava seus cílios, não comia. Foi ter com Ñauparruna, líder espiritual de sua religião, mas em vez de consolo teve uma drástica explicação do que fora sua vida no passado. Este amor, esta relação com Antonio está condenada desde a catástrofe hispânica. Desde a chegada do Wiraqöchas (espanhóis) não havia mais palavras como Khuyay (amar), somente Chíjnyi (ódio profundo). Sua alma havia traído seu povo, assim como ela o fez agora, amando aquele que foi para o lado dos dominadores. Duras palavras desnudadas pela verdade. María voltou para casa em turbilhão de pensamentos. Persuadia-se de que dominaria a dor, derrotaria a morte. Refletiu, sabiamente: “No choque dos titãs há um terceiro elemento que está levantando a cabeça, como uma serpente que avança rastejando sem apuros. É o mestiço produto dos transbordos genitais do conquistador. A negação da negação. Herdeiro legítimo da douta inteligência índia e a vital energia espanhola.”
Ou seja, após a catástrofe hispânica, a cultura miscigenada há de prevalecer no lugar de um maniqueísmo onde um ou outro lado seria o dono do poder. Foi sua última reflexão em vida, pois ao chegar em casa, entrava na reta final do pathos para a morte. Padre Antonio e sua mula assomam-se às portas de Potosí com os ares mais otimistas, cantando e recitando odes à Vila Imperial. Um ano e pouco de viagem. Alcança o seu alojamento, apeia a mula e chama por María. Após intensa procura por todos os cômodos, ela não está. Resistindo e negando a passível morte de sua amada,
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pensa que ela saiu com outro homem, ou que os espanhóis a levaram, como, em delírios da viagem a dava como morta. Entretanto, quem lhe dá esta notícia é Caoquí, o velho pai de María. Morrera sozinha, disseram que de inanição, mas isso ocasionado pelo desgosto, pela carência de amor, pela solidão. Caoquí não soube responder se ela tivera dor ao morrer, mas sabe que fora enterrada de favor, como uma indigente, ao lado da Dona Dolores, sem missa, sem os últimos sacramentos, porque era apenas uma índia. Despede-se de Caoquí e desaba na cama, fatigado, e sem perceber que já dormia, a alma de María o chama, insatisfeita por ele a ter deixado morrer. A partir daquele momento ele haveria de buscar novamente sua alma, para ressuscitá-la. Instalá-se, então o surto em Padre Antonio. Sua vida doravante seria a dedicação total para trazer seu amor de volta, e, caso não obtivesse êxito, restar-lhe-ia a morte. Na realidade, Antonio continuou sua vida, mas a usava somente como um passatempo entre as conversas com a alma de María e os seus planos para lhe devolver a vida. “O Dulcis Virgo Maria, María Bonita, Sumaj María”: latim, espanhol e quéchua, os símbolos de suas religiões, linguagens e culturas miscigenadas. No movimento pendular de seu estão raro estado de consciência até o desespero delirante ao se lembrar com mais clareza da morte de María, de sua maior perda, seu discurso era formado por frases nesses três idiomas. Animula, vagula, blandula; palomita mia; urpila imilla. Alma pequena, errante, carinhosa; pombinha minha; queridinha. Foi ter com o bispo a fim de atualizá-lo sobre sua missão em Lima. Só elogios à viagem, à cidade, às pessoas, aos prelados de lá e até à mula. Não disse nada que seu superior não pudesse gostar, muito menos de María e de sua morte. É lhe oferecido diversos quitutes e bebidas, mas na terceira golada de vinho, María volta a lhe chamar, exigindo dele mais dedicação para sua delirante empreitada. O povo o saúda nas ruas, fingiu bem uma normalidade entre eles, mas partiu para sua casa. Lá, desfaz as malas, dispõe os presentes que seriam para María e os livros que conseguira na capital, alguns contrabandeados, proibidos, mas que não conseguia deixar de lê-los. Arrumava os vestidos e adornos que seriam de María, quando recebe a surpresa da visita de seus amigos: Pintor Albino; Pedro, o Escultor; e Quintino, o observador de casos memoráveis, ou seja, o cronista. Grandes amigos, representantes do interesse de Padre Antonio pelas artes, e, por serem índios e miscigenados, também seus companheiros de lutas sociais e políticas. Esconde os presentes de María rápida e sorrateiramente e os convida para entrar. Simula felicidade e prazer ao reencontrá-los. Recusa a aguardente que seria um brinde, 16
fala com desgosto de Lima, e da viagem, apesar dos elogios que seus amigos fazem à cidade. Apresenta-lhes alguns livros e se empolgam com as raridades, mas, em troca, eles recebem do anfitrião o aviso ele queria descansar e que ficaria para outra oportunidade a continuação da conversa. Reparamos a diferença de opinião quanto à Lima em relação ao relatado ao bispo, pois, sem a censura do poder, diante dos amigos, considerados iguais ou inferiores, pode expor suas reais impressões. Somente rezas, orações, pedidos intensos e constantes conversas com alma de María, não as trazia do mundo “mais além”. Padre Antonio começa a formular novas estratégias. Pretende, de início, enviar a alma de alguém próximo a María para que lhe assista ao caminho de volta à vida, talvez, ela esteja nervosa, perdida, desnorteada e não consegue retornar. Caoquí, o velho pai da defunta, é o primeiro escolhido. O Padre tenta esfaqueá-lo enquanto ele dormia, entretanto, Caoquí, sagaz, não dormia plenamente e impede que seja esfaqueado. Pergunta por que queria matá-lo e o padre responde que é para a alma dele, seu pai, guiá-la pelo caminho ate chegar à vida terrena. Apesar do absurdo, Caoquí consegue persuadi-lo também entrando no delírio do padre. Disse-lhe que, se velho morresse, velha fica a alma, e demoraria muito para encontrar María no outro mundo. E também conseguiu afastar a idéia de suicídio do padre, pois María não poderia gostar de saber que ele se suicidou só para ver sua alma. Padre Antonio se convence, mas só no caso de Caoquí, pois já procurava outra vitima para seu delírio. Passou-lhe pela cabeça o Bigardo, mas concluiu que o negro angolano, Bienvenido Catanga, seria o mais indicado. Conceder-lhe-ia todos os sacramentos para uma boa morte e caminho direto para o céu. De maneira sedutora, apresenta essa proposta ao negro chamando-lhe para ouvi-la em um remoto canto da igreja de sua paróquia. Catanga estava para aceitar a proposta, feliz por morrer como um cristão, o que até então não era, mas uma condição exigida por Padre Antonio lhe fez desesperar: haveria de ser capado para então morrer, ajudar María, sem o perigo da tentação, ainda que estivessem em outro mundo. Por incrível que parece, o herege negro foi salvo pela Inquisição, pois seus arautos visitavam Potosí, e os padres gritavam o nome de Antonio para que ele participasse do evento. Bienvenido Catanga, aproveitando a distração do padre, fugiu. A frustração do padre não diminuiu, mas suas idéias ainda estavam longe de acabar. Decidiu localizar a sepultura de María. Foi ao cemitério, conversou com o coveiro não revelando os motivos reais de sua ida até, apenas disse que ela merecia ter um funeral decente como uma boa cristã. Soube onde María estava, chorou e abraçou o 17
túmulo, levando o coveiro a rir da cena insana. No dia seguinte, depois de suas obrigações de cura, voltou para casa pela tarde, aguardou, paciente e resoluto, da varanda de sua habitação, a noite chegar para agir: exumaria o cadáver de sua amada, pois, desse modo, tratando bem do seu corpo, sua alma saberiam onde ele estaria e mais celeremente lhe devolveria a vida. Conversava em quéchua e espanhol enquanto esperava o escuro dominar a cidade:
“Desde a dramática morte de Ataualpa os índios perderam o uso e costume de conversar de dia. À luz do sol pronunciavam somente monossílabos. (...) E no llanpatuta, quer dizer, na ilegalidade da noite escura se manifestavam espontâneos, loquazes, rindo e comentando à viva voz até outra vez as primeiras luzes da aurora os devolvia à irrealidade do mundo.”
Supostamente camuflado por sua batina preta e capuz, partiu reto para o cemitério, ignorando o portão fechado e o coveiro. Correu de um lado para o outro até achar a cova de María. Portava uma ferramenta chamada Chanqi, uma espécie de picareta usada pelos mitayos, os servos das minas, um símbolo da desgraça de seu povo. Mas sua maior arma, nesse momento era a fé, ou melhor, as fés: “crente apaixonado da doutrina da imortalidade da alma, que coincidia com a sábia concepção de seus antepassados”. Começa a cavar incessantemente, a terra era dura. Seu discurso de autoconvencimento era em espanhol, jamais lhe havia faltado a fé, cita a decorada passagem bíblica da ressurreição de Lázaro, e em quéchua, exaltava a alma de María, amando-a mesmo depois de uma breve passagem pelo mundo de más allá, o Ukhupacha, o da obscuridade da morte. Descomunal força conseguida pelo esforço delirante, a terra vai amolecendo, visualiza o corpo e o exalta, como se matasse a saudade de ambos. O discurso de Antonio se mistura com o passado, quando faziam amor, com suas escavação e com o desejo e felicidade de tê-la novamente em seus braços. Todavia, o seu delírio não era exclusivamente do discurso, mas do que via ao exumar María. Como já dito, ela foi enterrada por piedade, com o corpo já em início de putrefação quando foi achada em seu quarto nos moldes cristãos: o corpo estirado na horizontal e somente com a roupa do corpo e a terra jogada por cima. Antonio, porém, a via em posição fetal, com flores podres e fétidas e vestida com o phullu, um tecido que protege o corpo, tal qual o funeral dos incas. Um delírio em sincretismo religioso. Retorna para a casa e inicia a limpeza do corpo de María. O primeiro dos inúmeros esforços, de posse do cadáver, a fim de fazer com que a alma de sua amada
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compreenda o seu empenho e volte para a vida. Reza, lava-a, enxágua-a perfuma o corpo e a casa. Conversa com ela, veste-a, pinta-a, põe-lhe adereços, oferece-lhe comida e bebida. Nenhuma manifestação de vida. Torna a rezar e entende que ela necessita de calor humano, de vida para viver. Beija-a e abraça com os mais ternos carinhos. Faz amor com ela. Quando sai à cidade, para trabalho e demais afazeres, apressa-se para não deixala sozinha e indefesa. Quando fica muito tempo com ela, vai dar umas voltas no pátio, nas ruas, visita os amigos para que ela não fique enfadada. Mas nenhum dos seus esforços, ainda que com muito amor, lhe traz novamente a María viva. Por que este sofrimento? O que fazia de errado? Perguntava-se em mais angústia, mas não havia ninguém que lhe respondesse palavras. Não seria por causa de seu amor proibido, pois se convencia de que amar a alguém a uma só era exatamente a maneira que o Deus católico havia autorizado o amor entre suas criaturas. E também, amar não era pecado entre seus antepassados, não do modo que amava María. Por que a levaram? O que ele fez? Foi ter deixado María sozinha? Mas se não o fizesse, como seria sua vida excomungado? Inúmeras perguntas surgiam, carregadas de dor, sofrimento e angústia. Resolve, então, uma cartada final. Utilizar-se da música para se comunicar com a alma de María, que seu povo chama de Yaraví. Retira a tíbia do corpo de sua amada e fabrica uma quena, uma flauta que fabricada pelo seu tocador terá somente o som, único e inconfundível de que a fez. Comumente, segundo a tradição inca, ela é feita de galhos ou de osso de animais. Antonio, no entanto, para garantir uma comunicação mais eficaz, fabrica-a com a tíbia de sua amada e executa a melodia de seus antepassados pela cidade, até chegar a uma colina e, recolhido, longe dos distúrbios da população, poder pedir a volta de sua amada. Ela não voltava. Poderia não estar gostando do som, mas estava certo das partituras, certo de seu conhecimento musical. A cidade já percebia que Padre Antonio não estava muito bem. Por respeito, não lhe questionavam sobre as supostas razões de seu estranho comportamento, mas sua nova prática, sair pelas ruas tocando a quena já gerava rumores de inquietação aos habitantes. Percebendo isso, o humilde padre, a fim de não incomodar seus fiéis. Dirige-se a um oleiro amigo, e pede para escolher uma ânfora que lhe caiba na cabeça. Debaixo de risos dos que testemunhavam mais uma cena incomum, encontrou uma ânfora sob medida e pediu para que lhe fizessem dois buracos nas laterais onde pudesse enfiar as mãos folgadamente. Recebe o produto adaptado e segue para uma montanha supostamente distante. Lá, cobre sua cabeça, passa a flauta pelos orifícios e 19
começa a tocar o yaraví, com o som abafado, para que só sua amada lhe escute e não incomode a população. Em quéchua a ânfora é chamada de manchay. A acústica resultou em um som horrível, que castigava o ouvido de todos; um som infernal, um som puytu. Manchay Puytu, a canção atemorizante. María não o ouviu. Padre Antonio desistiu. Não agüentou mais o sofrimento, mas ainda exigia algumas respostas enquanto não morresse. Chegou a culpar María, por haver lhe mostrado a tentação, ela foi a responsável por sua desventura, por ter se desviado de seu verdadeiro Deus. Esconjurou-a, mas não era seu verdadeiro sentimento. De alma prostrada e resignado de seu insucesso, padre Antonio de la Asunción tenta encontrar respostas caminhando pelas margens da lagoa de las Dolores. Lá, o acaso lhe defronta com Ñauparruna, o Amauta, de quem só ouvira falar que era um feiticeiro, curandeiro idólatra e pagão. Mas o sábio já sabia de sua vida, não pelas notícias nem pelas conversas com Antonio, mas por obra de seu passado. Em diálogo travado com a Testemunha dos Tempos, Antonio desabafa todas suas desventuras, erros e sofrimentos. Sua vida não foi nada senão um relato de sofrimento. Ñauparruna apresenta-lhe, tal como fez com María, a verdade de seu ancestral, Antonio é a reencarnação de Filipillo, índio como ele, o primeiro que passou para o lado dos espanhóis, renegando, seu nome, sua cultura e sua fé, para se engajar na doutrina católica. Também não resistiu ao celibato e amou uma mulher, mas ela o traiu. Por vingança, Filipillo traiu seu povo, indicando o caminho da casa das Virgens do Sol, a última relíquia inca, cuja destruição e defloramento das virgens é marco do início da catástrofe hispânica. E umas das virgens era a ancestral de María, quem o padre amou em pecado, tanto pela igreja católica, quanto pela sua religião nativa. Um amor destinado ao sofrimento, ainda que ocultado de Deus. Ñauparruna deixou as margens da lagoa e nelas o corpo de Padre Antonio deixou de ter vida. Acharam seu corpo, Caoquí, o levou para a Igreja. A população queria beatificar o jovem padre. Entretanto, quando vasculharam sua moradia, encontraram além dos livros proibidos, o corpo de María. Descobriram que há tempos ele viva em pecado. A população se sentiu traída, o clero mais ainda. Exumaram seu corpo, recém enterrado, excomungaram-lhe post-mortem, e juntaram todos seus pertences, inclusive o corpo de María, para serem queimados. Tanto fogo jamais visto que a fumaça a fumaça dos dois se juntavam e alcançavam os céus, finalmente.
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4 — À GUISA DE CONCLUSÃO
Néstor Taboada Terán, nosso contemporâneo, remete-se a manifestações estéticas como relatos e lendas para, mediante um romance histórico, mostrar e explicar o sofrimento do povo nativo de seu país, os Incas, em decorrência do trauma experimentado com a chegada avassaladora dos conquistadores/devastadores espanhóis. E em sua arte, procurei indícios do conceito Vulnerabilidade Psíquica do que surge, a partir do novo pathos que fundará a vida do miscigenado sob a perspectiva étnica e ideológica. Aos nativos incas, a força não conseguiu prevalecer como reação ao ataque violento e virulento dos espanhóis. A reação, porém, é inevitável, ainda que seja pela fantasia. O mais apto a construir essa resistência seria o miscigenado, que não esqueceria de suas origens, mas, ao mesmo tempo, não deixaria de se adaptar à nova conjuntura. Antonio, primeiramente agraciado pela oportunidade de não ser morto, tal qual os adultos de sua comunidade, se veria, posteriormente, vítima de uma ideologia que não lhe outorgava a liberdade, a felicidade, salvação e que jamais alcançaria o ideal de perfeição preconizado pelo dominador. Quando percebe que sua cultura original, da qual foi arrancado e educado para desprezá-la, é também rica e muito mais confortante, e lhe daria o prazer físico e mental, e não a ilusão que sua ideologia adquirida lhe mostrava, insere-se numa confusão moral, intelectual e ética que somente teria a chance de se racionalizar se optasse pelas vantagens de uma e/ou de outra. Dessa maneira, após inúmeras experiências traumáticas, ele decidiu seguir seu desejo de amar a uma mulher, mesmo que fosse proibido por sua posição. Fantasiou as suas permissões, mas jamais se eximiu de um sentimento de culpa. A culpa vinha em seu sofrimento, sua mudez, obediência e submissão diante do poder do bispo; na punição por pensar em amar, pensar em sexo e ter todos os seus desejos engasgados, inclusive quando iniciou o caso com María, que sempre foi escondido. O desejo era entalado na sua alma porque ele mesmo, na sensação vã de poder diante daqueles que, ao contrário dele, não tiveram a fantasmagórica “sorte”, seus irmãos de raça, não queria largar sua condição. Apesar das explicações míticas de seu destino, por parte do líder religioso Inca, e de ter arranjado permissões dentro das concepções espanholas e católicas de ideal de perfeição, o seu imaginário lhe dava muito mais sofrimento do que satisfação. A 21
satisfação, o prazer era logo punido, por causa da ideologia que lhe fora incrustada. Não lhe apontavam mais a espada ou lhe atiravam na fogueira, por ser índio ou herege, ou seja, por contrair o dominador, porque isso, no miscigenado e para o dominador, não era mais necessário. A Vulnerabilidade Psíquica é o comportamento advindo de um traumatismo, que de tão assimilado faz com que nós mesmos, de acordo com a impossibilidade de ação ou reação fantasiemos confortos emocionais.
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