o olhar dessacralizante do narrador em memorial do convento

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nesse contexto intrincado, que, a nosso ver, o romance de Memorial do Convento, de. José Saramago, publicada em 1982, está inserido. O ROMANCE  ...
O OLHAR DESSACRALIZANTE DO NARRADOR EM MEMORIAL DO CONVENTO, DE JOSÉ SARAMAGO

Nídia Moreira Früh (UFSM) Vanessa Maidana Freire (UFSM)

INTRODUÇÃO Há algum tempo, o campo literário, de modo mais amplo, presencia a emergência de uma série de textos narrativos cada vez mais inquietantes e complexos, não apenas pelo tema que abordam, mas também pela profundidade teórica que congregam e pela acentuada crítica social que suscitam. Essas narrativas que embora possam ser nomeadas como romances históricos, uma vez que nelas verificamos um profundo entrelaçamento entre narração ficcional e narrações históricas, afastam-se do modo como o romance histórico tradicional organiza o texto narrativo. É justamente nesse contexto intrincado, que, a nosso ver, o romance de Memorial do Convento, de José Saramago, publicada em 1982, está inserido.

O ROMANCE HISTÓRICO CLÁSSICO E O NOVO ROMANCE HISTÓRICO: CONSIDERAÇÕES INICIAIS.

Ao pensarmos no romance histórico tradicional por excelência (gênero literário surgido no início do século XIX), não podemos deixar de mencionar Walter Scott como o precursor do gênero. É a partir de obras como Waverley (1814) e Ivanhoé (1819), de Scott, entre outras, que George Lukács propõe um dos primeiros textos que procuram elucidar aspectos pertinentes ao gênero. Em O romance histórico, publicado na íntegra em 1966, vemos discutidos os pilares do romance histórico clássico (tradicional). De acordo com Lukács a particularidade primordial para que os romances históricos existam é a incorporação de fatos verídicos, anteriores ao presente do escritor, para a organização de um ambiente histórico detalhadamente reconstruído. Entre as marcas apontadas por George Lukács (2011), como sendo essenciais para o arranjo de um discurso que se pretenda como um romance histórico, três delas merecem ser mencionadas, pois antagonizam com a organização do discurso que encontramos em Memorial do Convento (1999). O primeiro aspecto diz respeito às

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personagens: no romance histórico clássico, as figuras marginais, apesar de importantes, já que ajudam no desenvolvimento da trama contada, não se apresentam como centrais, ou seja, não são principais na focalização do narrador. O segundo traço está associado ao narrador, que, em geral, apresenta-se em terceira pessoa do discurso, o que confere ao texto (em tese) um maior distanciamento e imparcialidade, técnica que remete aos discursos Históricos. O terceiro elemento liga-se a tentativa de emprestar ao texto uma aura de verdade incontestável, através do uso de dados e detalhes históricos. Contudo, por ser essencialmente híbrido e plástico (Bakhtin: 1988) o romance, e consequentemente o romance histórico, modifica-se ao longo da história, adaptando-se às condições sócio-históricas e às necessidades de representação de cada época. Assim, contrapondo-se ao modelo de romance histórico tradicional (Scottiano), analisado por Lukács, o romance histórico contemporâneo ganha outras tonalidades e acaba pondo em relevo a discussão acerca das novas concepções a respeito do saber histórico, bem como as várias transformações pelas quais o conceito de História passou. Coloca-se em questionamento a possibilidade concreta do artista/historiador apreender a realidade (ou a verdade) em sua totalidade. A partir disso, a figura do autor passa a ser vista como o agente capaz de arquitetar mundos paralelos, com regras próprias sujeitas a uma lógica interna que não está condicionada a uma realidade exterior ao texto literário. Em função do surgimento dessas obras diferenciadas, muitos autores dedicam suas pesquisas a compreender tais narrativas e os impasses e problemas teóricos delas oriundos. Alguns nomes merecem reconhecimento especial no estudo dos romances históricos, entre eles: Fernando Aínsa (primeiro a utilizar o termo “novo romance histórico”), Seymour Menton e Linda Hutcheon (que desenvolve o conceito de “metaficção historiográfica”). Os mencionados críticos diferenciam-se, sobretudo, pela grande contribuição que prestam ao procurarem demonstrar a evolução do gênero e por indicarem traços particulares ao romance histórico contemporâneo. Aínsa (1991), em artigo chamado La nueva novela Latinoamericana, no qual analisa narrativas Latino Americanas produzidas a partir da década de 80 salienta que é possível percebermos uma transformação significativa entre o romance histórico clássico e o novo romance histórico, mudanças que segundo Antônio Roberto Esteves [...] rompe com um modelo estético único. Os novos romances em questão apresentam uma polifonia de estilos e modalidades baseadas, especialmente, na fragmentação dos signos de identidade nacional [como é o caso do convento de Mafra], realizada a partir da desconstrução dos valores tradicionais. (ESTEVES, 2010:36).

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No texto teórico supracitado, Aínsa (1991) enumera uma dezena de características que distanciam os dois modelos de romance histórico. Alguns desses apontamentos interessam-nos sobremaneira, pois estão refletidos diretamente no texto a que nos dedicamos nesse estudo, como veremos posteriormente. Desses salientamos, parafraseando Aínsa: Primeiro: O novo romance histórico procura propor uma releitura crítica, distanciada e de caráter paródico, a qual contesta as versões oficiais da História e, em função disso, dá voz às figuras marginalizadas, aos silenciados e perseguidos, entes que foram calados pela Historiografia tradicional. Segundo: Presença de uma multiplicidade de perspectivas e a consciência de que frente ao fato histórico não há uma única verdade. Terceiro: Fim da distância épica, assinalado por Bakhtin (1988).

Na mesma linha de pensamento proposta por Aínsa, Seymour Menton (1993:43) identifica outras singularidades acerca do novo romance histórico, que muitos nos ajudam a compreender obras como Memorial do Convento. Duas dessas marcas diferenciais merecem ser destacadas: A primeira é “a utilização da metaficção ou comentários do narrador sobre o processo criador.” e a segunda é a “distorção consciente da história, mediante anacronismos, omissões e exageros.”.

ANÁLISE DO ROMANCE

Os itens constitutivos do romance histórico contemporâneo, assinalados pelos autores acima, especialmente o caráter altamente crítico que os novos romances históricos assumem, são bastante pertinentes ao nosso estudo da obra Memorial do Convento, uma vez que nos ajudam a compreender a obra em sua totalidade discursiva. Na narrativa de Saramago temos como plano de fundo uma Portugal do início do século XVIII, época marcada pela grande influencia da Igreja sobre o Estado e as ações punitivas do Santo Ofício. Através de um narrador onisciente, que assume diferentes perspectivas ao longo da narrativa, portando-se ora como parte integrante da história, ora como espectador que a tudo avalia, somos apresentados a uma parte dos acontecimentos nacionais que a Historiografia oficial silenciou. O episódio que motiva a trama é a construção do convento de Mafra, obra erguida por ordens de D. João V como forma de agradecimento ao milagre do

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nascimento de um herdeiro. Em torno desse evento central o romance traz à luz aspectos pouco louváveis, a saber: As intrigas da corte, a sordidez da nobreza, a corrupção religiosa, os autos de fé, as práticas medievais, a exploração das colônias e o abuso das classes dominantes sobre os menos favorecidos, entre outros. Paralelamente, o enredo preocupa-se ainda em dar visibilidade às histórias de vida dos vários operários anônimos que contribuíram para a construção do Convento de Mafra. Entre esses, enfatiza-se a de Baltasar Sete-Sóis, um retornado da guerra que perdeu a mão esquerda em combate, focaliza, entre outras coisas, o seu grande amor por Blimunda, Sete-Luas, figura dotada do estranho poder de ver o interior das pessoas. Desde o começo do texto literário, encontramos elementos que contrastam com a narrativa tradicional, cujo modelo é Scott. Nas páginas iniciais do romance, causa grande estranhamento ao leitor o vocabulário impróprio e baixo utilizado pelo narrador para referir-se ao rei e a rainha:

D. João, quinto do nome da tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Josefa, que chegou da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou. Mas nem a persistência do rei [...] nem a paciência e humildade da rainha que, a mais das preces, se sacrifica a uma imobilidade total depois de retirarse de si e da cama o esposo, para que não se perturbem em seu gerativo acomodamento os líquidos comuns, escassos por falta de estímulo e tempo [...] (SARAMAGO, 1999:11 – grifos nossos.) É por causa deste cobertor sufocante que D. JoãoV não passa toda a noite com a rainha, ao principio sim, por ainda superar a novidade ao incomodo de sentir-se banhado em suores próprios e alheios, com uma rainha [...] recozendo cheiros e secreções. [...] (SARAMAGO, 1999:15– grifos nossos.)

Destaca-se nas citações a cena descrita pelo narrador: o encontro íntimo de D. João e D. Ana Josefa. Nela, um episódio privado é exposto de modo vulgar, chamando atenção o uso de um vocabulário inadequado (como o verbo “emprenhar”) para tratar da realeza. Tal emprego gera o efeito de desfazer o aspecto solene que reveste a família real e busca dessacralizar a imagem de duas figuras emblemáticas na História de Portugal.

Diferentemente

do

romance

histórico

clássico,

em

Memorial

do

Convento facetas pouco dignificantes das personagens históricas são desmascaradas, fazendo com que suas imagens sejam desmitificadas e mostradas em toda a sua crueza. Ainda nesse sentido, verificamos uma inversão de valores e papéis sociais, no qual as personagens exóticas, Baltasar e Blimunda, ganham papel de destaque e são

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valoradas de modo positivo, diferentemente das figuras históricas do rei e a rainha, que são rebaixadas e tem os seus aspectos negativos postos em evidencia. Essa constatação é possível através da análise comparativa entre as passagens nas quais o narrador faz referencia aos membros centrais da nobreza e aquelas nas quais trata das duas personagens marginalizadas, Baltasar e Blimunda. Dona Ana Maria Josefa é apresentada, ao longo do texto, como vítima de um casamento arranjado, submissa e frágil. Vejamos: Há quem prefira a oração, é o caso da rainha, devota parideira que veio ao mundo só para isso [...] não se atreve a ir ao convento das Oldivelas, todos adivinham porquê, é uma triste e enganada a rainha que só de rezar não se desengana, todos os dias e todas as horas dele, ora com motivo, ora sem ter certeza de o ter, pelo marido leviano, pelos parentes tão longe, pela terra que não é sua e filhos só pela metade [...] (SARAMAGO, 1999:109 – grifos nossos.)

Dom João V, a figura mais importante da corte portuguesa, é rebaixado, caracterizado como um homem freirático: Enfim, el-rei abriu os olhos, escapou, não foi desta, mas fica com as pernas frouxas, as mãos trémulas, o rosto pálido, nem parece aquele galante homem que derruba freiras com um gesto, e quem diz freiras diz as que o não são, ainda o ano passado teve uma francesa um filho da sua lavra, se agora o vissem as amantes reclusas e libertas não reconheceriam neste murcho e apagado homenzinho o real e infatigável cobridor. (SARAMAGO, 1999:110 – grifos nossos.)

Vaidoso e megalômano: No dia seguinte, D. João V mandou chamar o arquitecto de Mafra, um tal João Frederico Ludovice, que é alemão escrito à portuguesa, e disse-lhe sem outros rodeios, É minha vontade que seja construída na corte uma igreja como a de S. Pedro de Roma, e, tendo assim dito olhou severamente o artista. [...] Enfim o rei bate na testa, resplandece-lhe a fronte, rodeia-a o nimbo da inspiração, E se aumentássemos para duzentos frades o convento de Mafra, [...]Sejam trezentos, não se discute mais, é esta a minha vontade, [...] (SARAMAGO, 1999: 270-272 – grifos nossos.)

E, por fim, como opressor e tirano, como vemos em: Ordeno que a todos os corregedores do reino se mande que reúnam e enviem para Mafra quantos operários se encontrarem nas suas jurisdições [...] retirando-os, ainda que por violência, dos seus mesteres, e que sob nenhum pretexto os deixem ficar, não lhes valendo considerações de família, dependência ou anterior obrigação,

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porque nada está acima da vontade real, salvo a vontade divina, e a esta ninguém poderá invocar, que o fará em vão, porque precisamente para serviço dela se ordena esta providência, tenho dito. [...] Foram as ordens, vieram os homens. [...] à força quase todos. [...] e quando eram mais que os carcereiros atavam-nos com cordas, variando o modo, ora presos pela cintura uns aos outros, ora com improvisada pescoceira, ora ligados pelos tornozelos, como galés ou escravos. (SARAMAGO, 1999:282-283 – grifos nossos.)

Blimunda, uma personagem marginalizada socialmente, é singularizada como uma figura enigmática por possuir poderes místicos e como sendo uma mulher fiel ao amor intenso que sente por Baltasar, seu esposo ilegítimo. Vejamos os trechos: [...] ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra. (SARAMAGO, 1999:53 – grifos nossos.) Em profunda escuridão se procuraram, nus, sôfrego entrou ele nela, ela o recebeu ansiosa, depois a sofreguidão dela, a ânsia dele, enfim os corpos encontrados, os movimentos, a voz que vem do ser profundo, aquele que não tem voz, o grito nascido, prolongado, interrompido, o soluço seco, a lágrima inesperada, e a máquina a tremer, a vibrar, porventura não está já na terra, rasgou a cortina de silvas e enleios, pairou na alta noite, entre as nuvens, Blimunda, Baltasar, pesa o corpo dele sobre o dela, e ambos pesam sobre a terra, afinal estão aqui, foram e voltaram. (SARAMAGO, 1999:261-262)

Baltasar Sete-Sóis pode ser considerado como o “anti-herói” do romance, caracterizado como um mutilado de guerra. Uma personagem pícara, cuja santidade é feita por semelhança: assim como Deus, ele também não tem mão esquerda. Observemos alguns fragmentos:

Sete-Sóis, mutilado, caminhava para Lisboa pela estrada real, credor de uma mão esquerda que ficara parte em Espanha e parte em Portugal, [...] se completos ou manetas, se inteiros ou mancos, salvo se deixar membros cortados no campo ou vidas perdidas não é apenas sina de quem tiver de nome soldado e para se sentar o chão ou pouco mais. [...] Não há pior vida que a do soldado. (SARAMAGO, 1999: 35-38) Baltasar recuou assustado, persignou-se rapidamente, como para não dar tempo ao diabo de concluir as suas obras, Que está a dizer, padre Bartolomeu Lourenço, onde é que se escreveu que Deus é maneta, Ninguém escreveu, não está escrito, só eu digo que Deus não tem a mão esquerda, porque é à sua direita, à sua mão direita, que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mão esquerda de Deus, nem as

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Sagradas Escrituras, nem os Doutores da Igreja, à esquerda de Deus não se senta ninguém, é o vazio, o nada, a ausência, portanto Deus é maneta. Respirou fundo o padre, e concluiu, Da mão esquerda. [...] Se Deus é maneta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o arame que hão-de voar. (SARAMAGO, 1999: 65-66 – grifos nossos.)

O conjunto de passagens selecionadas, nas quais as personagens excêntricas são valorizadas em comparação às personagens históricas, são elucidativas para percebermos a conotação crítica dada pelo narrador ao texto literário. Em contraste com o casal configurado pelo rei e da rainha, cuja relação é de conveniência, Blimunda e Baltasar, apesar de serem um casal “em pecado” já que não são casados oficialmente na fé católica, vivem um amor puro, singular e pleno. Em função desse amor verdadeiro, vivem mais em Deus, do que o casal real que tanto realce dá à religiosidade e a fé. Deste modo, nas palavras do narrador: “entre o amor dos que ali dormiram e a santa missa não há diferença nenhuma, ou, se a houvesse, a missa perderia.” (SARAMAGO, 1999:135) Os julgamentos do narrador e mesmo as falas das personalidades subalternas são de extrema importância para demonstrar o juízo de valor que reelabora – e até certo ponto desconstrói - o fato histórico que deu origem a construção do Convento de Mafra. Observemos os dois fragmentos abaixo, o primeiro, no qual o narrador comenta o transporte da colossal pedra à vila de Mafra e o segundo no qual seu julgamento dessacralizador perpassa o discurso do rei: É uma pedra só, por via destes e outros tolos orgulhos é que se vai disseminando o ludíbrio geral, com suas formas nacionais e particulares, como esta de afirmar nos compêndios e histórias, Devese a construção do convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse um filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha, e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz. (SARAMAGO, 1999:248 – grifos nossos.) [...] eu, rei e varrasco, bem sabeis como as monjas são esposas do senhor, é uma verdade santa, pois a mim como a Senhor me recebem em suas camas, e é por ser eu o Senhor que gozam e suspiram segurando na mão o rosário, carne mística, misturada, confundida, enquanto os santos nos oratórios apuram o ouvido às ardentes palavras que debaixo do sobrecéu murmuram, sobrecéu que sobre o céu está, este é o céu e não há melhor, e o Crucificado deixa pender a cabeça para o ombro, coitado, talvez dorido dos tormentos, talvez para melhor poder ver Paula quando se despe [...] o filho é meu, não vale a pena mandar anunciar outra vez [...] (SARAMAGO, 1999:152 – grifos nossos.)

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Os fragmentos destacados revelam um posicionamento profundamente avaliativo por parte do narrador. No primeiro, de modo direto, ao exagero que representado pela obra de Mafra, suntuosidade possibilitada por anos de sofrimento passados pelos trabalhadores pobres. No segundo caso, a censura (revelada via voz de Dom João V), à falsa moralidade religiosa e a promiscuidade entre as relações entre o Estado e a igreja. Para além das avaliações a respeito do mundo narrado, encontramos também no texto comentários do narrador sobre o processo de criação ficcional, mais precisamente sobre o papel do escritor, o que revela mais uma das marcas do novo romance histórico, apontadas por Menton. Analisemos o trecho do romance:

[...] tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar- lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende. [...] (SARAMAGO, 1999:233 – grifos nossos.)

Acrescidos aos elementos já indiciados, outros traços avolumam-se na obra a fim de acirrar ainda mais a intenção paródica do texto, como é o caso do uso de anacronias e dos diferentes graus de intertextualidade. Em Memorial do convento é possível identificarmos uma grande mistura de registros discursivos, como é o caso da incorporação de passagens bíblicas, a utilização de técnicas que remetem à estética Barroca, a recuperação na trama do mito de Ícaro, a inclusão de contos populares como partes integrantes da trama, entre outros exemplos. Atentemos para um exemplo, a referência ao canto IV, estrofes 90 e 91, de Os Lusíadas, de Camões: “ó doce e amado esposo, [...] ó filho, a quem eu tinha só para refrigério e doce amparo desta cansada já velhice minha, [...]” (SARAMAGO, 1999: 284). Além disso, intercessões temporais são perceptíveis no romance e reavivam o sentido avaliativo (e por que não provocador) do texto. Concomitantemente à narração de fatos anteriores ao tempo presente do escritor (fatos datados entre 1711 a 1738 – num espaço de 28 anos), encontramos referências que remetem ao presente da enunciação (século XX). Segundo indica Fernando Aínsa (1991), o que se dá é um dos traços marcantes do novo romance histórico, ou seja, a sobreposição de tempos históricos (anacronia temporal), como veremos nestas duas passagens significativas:

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[...] quando um dia se acabarem palmos e pés por se terem achado metros na terra, irão outros homens a tirar outras medidas e encontrarão sete metros, três metros, sessenta e quatro centímetros, tome nota, e porque também os pesos velhos levaram o caminho das medidas velhas, em vez de duas mil cento e doze arrobas, diremos que o peso da pedra da varanda da casa a que se chamará de Benedictione é de trinta e um mil e vinte e um quilos, trinta e uma toneladas em números redondos, senhoras e senhores visitantes, e agora passemos à sala seguinte, que ainda temos muito que andar. (SARAMAGO, 1999:236 – grifos nossos.) [...] se achar que não tem o caso supremas dificuldades é porque não levou esta pedra de Pêro Pinheiro a Mafra e apenas assistiu sentado, ou se limita a olhar de longe, do lugar e do tempo desta página. (SARAMAGO,1999:249 – grifos nossos.)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelos aspectos analisados, o que vemos destacado na narrativa de Saramago é a utilização dos mais diversos recursos propiciados pela língua a fim de dessacralizar a versão hegemônica a respeito da construção de Mafra e sobre os eventos atrelados a esse período. Nessa revisão dos relatos oficiais, a função do narrador torna-se primordial, uma vez que a releitura crítica é possibilitada por meio de estratégias discursivas como o uso de vocabulário impróprio ou anacrônico, a mistura de registros e tons discursivos (intertextualidade), a constatação de distorções (e exageros) conscientes da História, a inversão de valores e papéis sociais, a recorrente utilização da paródia e ênfase na apresentação e valoração de personagens marginalizados em detrimento de figuras históricas e, especialmente, pelos contínuos comentários do narrador sobre o mundo narrado e o fazer literário. Por fim, o modo como o discurso romanesco está organizado acaba por abolir a distância épica assinalada por Bakhtin, a fim de problematizar um passado que só existe no imaginário Português. Memorial do convento além de ser uma obra riquíssima, do ponto de vista estético, possibilita-nos, sobretudo, refletirmos sobre um ponto de vista extremamente aguçado e, ao mesmo tempo, desestabilizante e questionador a respeito da idealização do passado, assim sendo, revela-se como um discurso literário que revela “verdades” caladas ao longo dos séculos pela nação Portuguesa.

REFERÊNCIAS

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AÍNSA, F. La nueva novela histórica latinoamericana. México: Plural, 1991, p.82-85.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 1988.

ESTEVES. Antônio R. O romance histórico contemporâneo. São Paulo: Ed. UNESP, 2010.

LUKÁCS, George. O romance histórico. Tradução Rubens Enderle. Brasil: Boitempo Editorial, 2011.

MENTON, Seymour. La nueva novela histórica: definiciones y orígenes. In: La nueva novela histórica de la América Latina. México: Fondo de la Cultura Económica, 1993.

SARAMAGO, José. Memorial do Convento. 24. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

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